O CINEMA BRASILEIRO RESISTE

04.09.2018
Por João Moris

Entre maio e agosto deste ano, foram lançados 64 filmes nacionais e coproduções brasileiras nos cinemas de São Paulo. É, sem dúvida, um número expressivo, mas a julgar pela expectativa de bilheteria, nosso cinema vai de mal a pior. A grande maioria desses lançamentos não passa de 3.000 espectadores por filme (isto considerando o país todo!) e uma parte significativa desses filmes é lançada em apenas uma ou duas salas em pouquíssimo horários.
Mas, é curioso notar que, apesar da pouca visibilidade dos filmes brasileiros e da situação crítica que o Brasil atravessa, com a área cultural totalmente desmantelada e os patrocínios minguados, o país ainda está produzindo muitos filmes, mesmo que estes filmes, no linguajar da maioria dos realizadores, sejam feitos “na raça” ou em “esquema de guerrilha”. 

Festivais em ascensão
Os festivais de cinema também estão crescendo em importância como plataforma de exibição de filmes nacionais. Anualmente, são quase 300 festivais e mostras de cinema em todo o Brasil, sendo que os festivais de Gramado e Brasília, além da Mostra de SP e do Festival do Rio, são vitrines importantes para o cinema nacional. Festivais alternativos como Olhar de Cinema de Curitiba (PR), CachoeiraDoc (BA), Tiradentes (MG), CineOP (MG), Mostra CineBH (MG), Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso (RN), Fest Aruanda (PB) e o Cine Ceará também estão atraindo muitos realizadores locais e regionais com filmes criativos e de qualidade.

Prova de que tem muita gente fazendo bom cinema neste país, principalmente jovens, e novas linguagens, estéticas e narrativas estão sendo propostas no meio audiovisual brasileiro, ampliando o leque de estilos e possibilidades. Destaco a seguir alguns filmes brasileiros lançados em circuito comercial entre maio e agosto.

O Festival Olhar de Cinema de Curitiba é uma grande vitrine da diversidade de filmes feitos no país
(Foto: Divulgação)

Horror social
O chamado gênero fantástico vem ganhando força na filmografia nacional. Entre os lançamentos recentes, e ainda em cartaz nos cinemas, está o polêmico O Animal Cordial, o primeiro longa metragem da talentosa diretora Gabriela Amaral Almeida, que cria um clima tenso, sanguinolento e catártico num restaurante fino de SP como microcosmo de vários aspectos sombrios da sociedade brasileira. Com uma impressionante atuação de Murilo Benício e uma direção de atores acertada, este filme não deixa ninguém indiferente, mesmo que não seja para todos os gostos. 

Outro filme do gênero fantástico lançado recentemente, As Boas Maneiras, da dupla paulistana Juliana Rojas e Marcos Dutra, também faz uma representação contundente da sociedade brasileira na relação entre uma mulher branca e rica (Marjorie Estiano) que contrata uma babá negra (Isabel Zuaa) para cuidar do filho que ainda não nasceu. À medida que a gravidez avança, as duas mulheres desenvolvem uma relação intensa e o filme vai ganhando contornos cada vez mais sinistros e inesperados, com direito a lua cheia e lobisomem, mas com um toque de leveza e humor característico dos filmes de Juliana Rojas e Marcos Dutra.

Murilo Benício dá um show de interpretação no filme “O Animal Cordial”
(Foto: Divulgação)

Documentários potentes
Filmes políticos de ficção são praticamente inexpressivos na recente filmografia brasileira e, quando são feitos, quase sempre viram uma caricatura, talvez refletindo a mediocridade da maioria dos nossos políticos e da nossa claudicante democracia. No entanto, temos bons exemplos de filmes documentais que buscam aprofundar nossa compreensão da realidade social e política do país. 

Três documentários recentemente lançados merecem destaque, entre eles o premiado O Processo, da veterana documentarista Maria Augusta Ramos, mostra os bastidores do longo processo que levou ao impeachment de Dilma Roussef, culminando naquele vergonhoso espetáculo de votação dos parlamentares do Congresso brasileiro em maio de 2016, quando destituíram a presidenta do cargo. Outro documentário que conta a história recente do país é o estarrecedor Missão 115, de Sílvio Dá-Rin, sobre o atentado no Riocentro em 30/04/1981, quando uma bomba de alta potência explodiu prematuramente no colo de um militar no estacionamento do local onde estava sendo realizado um show comemorativo ao Dia do Trabalhador para 18.000 pessoas. O documentário dá uma dimensão não apenas da carnificina que teria sido caso o atentado tivesse se consumado, visto que os portões do estádio foram trancados para que ninguém saísse, como também que o atentado visava o recrudescimento da ditadura no Brasil, que caminhava para a abertura política. A estratégia dos militares era jogar a culpa nos movimentos de esquerda e mergulhar o país no caos. Outro documentário importante lançado nos últimos meses é Dedo na Ferida, de Sílvio Tendler, que, como o título sugere, coloca o dedo na ferida das contradições do sistema financeiro internacional e como a lógica interesseira do capital gera desigualdades sociais e violência.

Outros documentários recém lançados também mostram a força deste gênero de filme em diferentes temas. Todos os Paulos do Mundo, de Gustavo Ribeiro e Rodrigo de Oliveira, faz jus à carreira e obra do grande ator Paulo José e não sobrepõe a vida do homem à do artista, ao contrário de muitos documentários sobre celebridades que costumam enaltecer a pessoa e não a sua obra. Já Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, de Fernanda Pessoa, atualmente em cartaz, faz uma colagem ora engraçada, ora debochada de vários filmes pornochanchadas produzidos na década de 70 e 80, evidenciando um Brasil menos careta e mais ousado em pleno auge da ditadura militar. E o documentário Vinte Anos, de Alice de Andrade, acompanha três casais cubanos entre 1993 e 2013 e como suas vidas se desenrolaram nesse período. Um retrato afetivo das transformações pelas quais Cuba e os cubanos passaram ao longo destes anos.

O documentário “Missão 115” traz dados estarrecedores sobre o atentado no Riocentro em 1981
(Foto: Divulgação)

Resgatando afetos
Talvez devido à grande influência das telenovelas brasileiras nos últimos 50 anos, o cinema de ficção brasileiro parece privilegiar dramas pessoais e familiares e há um grande número de filmes com esta temática, alguns ótimos. O tocante Café com Canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, com um elenco majoritariamente de atores negros, algo praticamente inédito no Brasil que deve ser celebrado, e o amoroso Benzinho, de Gustavo Pizzi, feito sob medida para a atriz Karine Telles, resgatam e reforçam o afeto nas relações, tendo como pano de fundo um Brasil amistoso, acolhedor e possível, sem nenhuma pieguice ou nostalgia. Ambos os filmes estão em exibição no circuito comercial e – felizmente – em mais de um cinema! 

Não posso deixar de mencionar o belíssimo filme paraguaio As Herdeiras, de Marcelo Martinessi (coproduzido com o Brasil e vários outros países), que estreou na semana passada. Conta a história de um casal de cinquentonas de família abastada que, em decadência financeira, buscam vender o casarão onde moram. O filme, praticamente todo protagonizado por mulheres, retrata o abismo social e pessoal que permeia a relação entre elas. Um filmaço que merecidamente ganhou vários prêmios em festivais no Brasil e no exterior.

As atrizes Aline Brunne e Valdinéia Soriano em cena no filme “Café com Canela”
(Foto: Divulgação)

Universo adolescente
A representação do adolescente no cinema brasileiro é quase sempre problemática, pois ou é tratado de forma infantilizada ou retratado como objeto de estudo de pais, educadores e psicólogos, distanciando-se do próprio público a que se destina. Dois filmes sobre suicídio entre adolescentes em cartaz nos cinemas trazem um olhar mais complexo sobre estes jovens. Ferrugem, do curitibano Aly Muritiba, fala do linchamento virtual sofrido por uma jovem estudante (magnífica atuação de Tiffany Dopke), que tem um vídeo da relação sexual dela com o namorado vazado pela internet. Além de uma bela fotografia, o filme tem o grande mérito de aprofundar a questão do bullying focando na adolescente na primeira parte e em outro adolescente na segunda parte, buscando entender as intenções e motivações por trás da cadeia de acontecimentos. Mas, falha na abordagem do universo masculino, com clichês sobre machismo, a dificuldade/incapacidade do homem de expressar emoções e sentimentos, que quase sempre são substituídos pelo silêncio ou atitudes impulsivas e violentas.

Yonlu, do gaúcho Hique Montanari, conta a história verídica do atormentado e sensível adolescente porto-alegrense Vinícius Gageiro Marques (interpretado por Thalles Cabral), que se suicidou em 2006 aos 16 anos. O diretor opta por mostrar os devaneios e fantasias de Yonlu através de suas músicas, desenhos e poemas, num brilhante exercício estilístico e narrativo de metalinguagem e montagem. Mas o registro realista, com cenas forçadas da relação do jovem com os pais e entrevistas com o psicólogo, sustentando que a internet foi a deflagradora do suicídio, enfraquecem o filme e saí do cinema com a impressão de que o diretor quis impor uma “tese pronta” sobre o que levou o rapaz a tirar a própria vida. 

Também cabe ressaltar que ambos os filmes retratam jovens da classe média branca e superprotegidos pela família, que, embora real, está longe da realidade da maioria dos jovens brasileiros, oriundos de classes mais baixas com pouca mobilidade e instrução, que geralmente sofrem problemas socioeconômicos e muitos preconceitos. Como seria tratado o bullying e o suicídio entre esses jovens? Portanto, o cinema brasileiro ainda tem uma grande lacuna a preencher na abordagem do universo adolescente.

Os atores Giovanni  de Lorenzi e Tiffany Dopke são os protagonistas de “Ferrugem”
(Foto: Divulgação)

Protagonismo identitário
Já há alguns anos que os movimentos identitários, principalmente as mulheres, negros e LGBTs, reivindicam maior participação no mercado audiovisual brasileiro, à frente e atrás das câmeras. A reivindicação, legítima, parece estar surtindo efeito, visto que é cada vez maior a participação desses grupos em filmes realizados no país. Apesar de ainda estar muito longe do ideal, e o cinema ainda ser uma indústria machista, branca e exclusiva, hoje há no país cada vez mais curtas, médias e longas metragens realizados por mulheres, negros, gays, trans e indígenas, conforme mostra a diversidade de filmes brasileiros exibidos no circuito comercial e em festivais. Observo também um número crescente de filmes codirigidos e roteirizados por mulheres e homens e equipes técnicas mistas e diversificadas, que acredito ser o melhor dos mundos, afinal torço para que num futuro não muito distante, todos os gêneros tenham um papel protagonista no cinema (e nas artes em geral), e que a linha estereotipada e preconceituosa que os divide seja erradicada.

2 comentários:

Helena disse...

Parabéns João pela clareza das informações cinematográficas e notícias das iniciativas dos jovens brasileiros que estão mostrando seus trabalhos mesmo com as dificuldades. Fiquei com vontade de ver: Café com Canela e Benzinho e tb o paraguaio: As Herdeiras. Feriado preenchido com boa programação de filmes. Obrigada.

João Moris disse...

Obrigado, querida Helena, por seu carinhoso retorno. Que você curta alguns destes filmes tanto quanto eu! Viva o Cinema Brasileiro!