CAFARNAUM - SÓ NOS RESTA O CAOS?

31.01.2019 
Por Adeliana Bataiote

Recadinho: este texto dá informações sobre o filme, portanto, se prefere nada saber antes de assistir ao filme, deixe para depois. Este artigo é disparador de um fórum de debates do Grupo Cinema Paradiso. Qualquer pessoa interessada pode participar. 

Não se assiste impune ao filme Cafarnaum! Estão reunidas nesta história da diretora libanesa Nadine Labaki quase todas as mazelas do mundo contemporâneo: miséria, exploração infantil, os dilemas das guerras, da imigração forçada, da falta de perspectivas dos pobres num mundo globalizado, da criminalização da pobreza, do tráfico humano, do lucro de inescrupulosos em cima da miséria alheia etc. etc. etc.. Não à toa, o título Cafarnaum é traduzido como Caos. 

Em quase duas horas de projeção, os espectadores são quase que literalmente colocados no mundo de Zain, um garoto de 12 ou 13 anos (ninguém sabe sua idade ao certo, nem ele, nem seus pais, porque nenhum dos muitos filhos sequer foi registrado), que amadurece precocemente sob o peso de cuidar das irmãs e levar comida para a família, vivendo todos sob condições miseráveis num prédio decadente, na periferia miserável de uma cidade do Líbano. 

A precariedade da vida de Zain (Zain Al Rafeea), de sua família e dos demais moradores do entorno, e que aparentemente é a razão que o leva a processar os pais por tê-lo trazido ao mundo, é apresentada em flashback após a cena inicial, e não se reflete apenas na vida concreta, mas também nas relações entre seus membros, marcadas pela violência, pelo improviso e pelo desamparo. 

A revolta com o destino da irmã mais próxima, Sahar (Haita “Cedra” Izzam), que com apenas 11 anos é “trocada” pelos pais por algumas galinhas com um comerciante, vai selar o destino do protagonista, que vai para a rua em busca de uma vida menos dolorosa. 

No entanto, como veremos, apenas mudará o cenário: são outras mazelas, outros explorados, outras misérias. 

Através do olhar daquela criança, carregado de tristeza e revolta, a diretora nos conduz a um universo que a maioria de nós apenas intui, mas que é a realidade de uma imensa parcela da população, cuja existência pouco significa ou importa. 

A cena do menino com o “super-herói” Homem-Barata, que se apresenta como “primo” do Homem-Aranha, é singela e ao mesmo tempo desconcertante, porque traduz o lugar social daqueles que são como Zain para a sociedade que os cerca e não os vê: insetos. E é assim que seus pais também se veem, e aos seus filhos. 

O contraponto é que o menino, no seu desamparo, é acolhedor e sensível com os que estão próximos, tanto familiares quanto as pessoas com quem passa a conviver ao ir para a rua, dividindo com Tigest/Rahil (Yordanos Shiferaw) - uma refugiada etíope que vive ilegalmente no Líbano -, os cuidados com o bebê Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), com a mesma atenção dedicada às suas irmãs, como se suas ações pudessem modificar seu entorno. 

O filme de Nadine Labaki - que além de diretora é co-roteirista e também faz uma ponta como a advogada de Zain – é um libelo contra o abandono da infância e uma denúncia das condições desumanas em que vive um grande contingente da população, a que vive abaixo da linha da pobreza, a que é obrigada a recorrer a todo tipo de expediente para subsistir, e que só aparece como estatística, não como seres com direito a uma vida minimamente digna. 

Há que se destacar as ótimas interpretações dos personagens, especialmente porque não são atores profissionais, particularmente do protagonista Zain (ele mesmo um imigrante sírio, que na época das gravações vivia há 8 anos como refugiado no Líbano, segundo informa o site omelete.com.br), uma criança que personifica com maestria o peso do abandono e da privação, tanto material quanto afetiva. 

Alguns críticos acusaram o filme de trazer uma visão higienista e que apresenta o controle da natalidade como solução para a pobreza, criminalizando os pais pelo desamparo dos filhos, mas entendi que o intuito da diretora não é culpabilizar este ou aquele, mas sim desvendar uma realidade caótica a partir do ponto de vista de uma criança, que nasce e cresce sob uma condição que parece inalterável, mas que, ao contrário dos pais, tenta obter do próprio desamparo a força para modificá-la. 

E, no fim das contas, creio que o recado – muito bem dado! – é: somos todos responsáveis, como sociedade, pelas realidades para as quais não temos coragem de olhar, nem de denunciar.

6 comentários:

Grupo Cinema Paradiso disse...

CAFARNAUM, comentário de Esther Stiel

Quem assistiu a Assunto de Familia, como o grupo presente na reunião do dia 27/01, no meu ponto de vista, deveria assistir Cafarnaum.
Os dois tratam, a princípio, de família. Eu acredito que o termo família se modificou com o correr dos anos. Antigamente, família era constituída de avós, pais, tios, filhos, primos.... Hoje em dia, não necessariamente. Uma família pode ser constituída de membros não consanguíneos. Dois homens adotam uma criança e formam uma família. Do meu ponto de vista uma família, ou melhor um lar, deve ser um local de aconchego, de carinho e onde todos os membros se sintam bem.
Cafarnaum fala de uma família constituída por pais e irmãos, mas onde não imperam carinho nem aconchego. Assunto de Família é um filme japonês e Cafarnaum, libanês. A cultura de cada pais é bem distinta da outra. Nadine Labaki, a diretora deste último, trata com muita sensibilidade esta cultura e trata de imigrantes que lutam por sobreviver num país que não é o seu, sem documentos ou qualquer auxílio de autoridades. Oferecer uma filha em casamento com apenas 11 anos é bem cultural desta região. Não importa se é contra a vontade desta criança ou de seus irmãos. O fato do filho Zain, de 12 anos, se revoltar e fugir de casa parece ter sido um alívio para este pai e esta mãe. Ninguém vai procurá-lo. Ele se vira com pequenos trambiques, não roubos, e se torna um menino muito maduro para a sua idade. Quando volta para casa à procura de documento é recebido agressivamente e fica sabendo que sua irmãzinha morreu devido à gravidez. Revoltado, Zain pega um facão e vai se vingar do marido da irmã. É lógico que vai ser preso. A prisão, um horror, creio que pior do que as nossas. Ele é julgado pelo que fez, e fica sabendo que a mãe está grávida novamente. Na prisão ele resolve incriminar os pais e pede um julgamento. Suspense... o juiz pergunta porque ele quer que os pais sejam julgados..... Final emocionante. Prefiro não contar o final, pois sugiro que todos tentem ir ao cinema.
O filme me fez refletir sobre a situação dos imigrantes, que fogem de seus países devido à guerra, à fome, etc. Lemos nos jornais, diariamente, sobre eles e os países fechando as fronteiras para eles não entrarem. Se permitem o ingresso, os mesmos não têm emprego e, para sobreviver, usam de subterfúgios.
Esther Stiel

Ana Rosa disse...

Cafarnaum, cidade bíblica localizada junto ao Mar da Galileia, por onde Jesus Cristo supostamente passou e realizou curas milagrosas, dá ensejo à ironia do filme, quando parece estabelecer um paralelo entre Jesus e Zain, o personagem principal. A precocidade de Zain me pareceu propositalmente exagerada e fantasiosa. Zain é endurecido e revoltado com o mundo que o rodeia, e vai construindo sua raiva misturada com ternura, desejo de proteção, em cenas que parecem feitas para emocionar (e conseguem). A história, num vai e vem de passado e presente segue e culmina quando a cena inicial se junta ao momento final em que o personagem mostra como se vinga de seu “arrependimento por ter nascido”: pra ter esse tipo de experiência, melhor nem nascer. Filme imaginativo, vigoroso e bem realizado. Nota 8,0.

Grupo Cinema Paradiso disse...

Comentário de Ozíris
Vimos “Assunto de Família” e “Cafarnaum” quase em sequência. Os dois filmes têm em comum o enfoque de grupos humanos que sobrevivem abaixo dos desejáveis padrões de dignidade . Esses grupos podem ser vistos em todo o mundo, seja nos países de origem, seja movimentando-se em busca de alternativas em outras terras.
Há famílias. Em “Assunto”, a família se construiu e se mantém apoiada nos interesses de seus membros. Em “Cafarnaum”a família constituiu-se por consanguinidade, o que não é garantia de laços baseados no afeto.

Alexandre Guimarães disse...

Cafarnaum é um filme primoroso em sua narrativa e assim consegue transmitir sua denúncia pungente da barbárie social em que o mundo se encontra. A câmera ágil mostra os conjuntos habitacionais hiperdeteriorados e as favelas de cima e logo depois se detém no comportamento das pessoas dentro desse caos social, como os menores fumando e brincando de reproduzir a violência a que estão acostumados. A narrativa se divide entre a sala do júri e os acontecimentos que vao dar origem ao julgamento. O filme trabalha esses caminhos, em que a arquitetura social molda o indivíduo e em que o presente e o futuro possuem uma dependência cruel (desde o começo já sabemos que o personagem principal de menos de 12 anos esfaqueou alguém). Mas mesmo com todas as dificuldades a esperança está presente, mesmo que ela apareça na figura do homem barata, um parente distante do homem aranha. É seguindo o homem barata que o personagem principal sobe na roda gigante e vislumbra ao longe o sol iluminando o mar. Nas casas e ambientes fechados em que o menino se encontra, sempre há uma luz colorida do lado de fora, inclusive no desenho do vizinho que pode ser reproduzido e dublado pelo menino. Mas toda a esperança acaba sendo vencida em um ambiente hostil. No final do filme a responsabilidade fica pendendo, de forma mais ou menos aberta, entre o social e o individuo. De alguma forma somos todos responsáveis pelo caos social em que vivemos.

Ana Rosa disse...

Após meus comentários acima, fui dar uma olhada em outras impressões disponíveis na mídia, em particular cito duas entrevistas com Nadine Labaki: uma por ocasião do Festival de Cannes (em que ela está acompanhada de Zain, da atriz que fez a mãe do garoto Yonas e do produtor do filme) e uma outra de dezembro de 2018.
À clássica pergunta sobre a motivação do filme, Nadine Labaki falou sobre o fato de ter observado essa população pobre e invisível que sobrevive em muitas cidades do mundo e que fez com que ela escolhesse esse tema para o seu filme, pela vontade que teve de se expressar a respeito do assunto. Passou então a um trabalho de pesquisa principalmente em Beirute, conversando com membros dessas comunidades, visitando várias delas, visitando casas onde refugiados são acolhidos, prisões. Foi pesquisando e escrevendo o roteiro. Encontrou Zain que é, ele mesmo, um refugiado sírio e trabalhou arduamente com ele e com os outros participantes para chegar onde queria. Ela explica, em uma das entrevistas, que a reação mais frequente que ela pôde observar durante a pesquisa é a de letargia, a de anestesia diante da situação que aquelas pessoas enfrentam. Na opinião dela, essas crianças vão acumulando cenas e dores que, em um determinado momento, acabam por explodir. Penso que vem daí a minha impressão de que Zain é um personagem bastante elaborado mostrando maturidade, ou melhor dizendo, precocidade acentuada, por vezes além do razoável, o que enfatiza, a meu ver, a densidade do conteúdo.
Como curiosidade, o bebê Yonas é uma menina de nome Trésor. Zain conseguiu ser acolhido na Noruega, com sua família. Nadine Labaki diz que a grande diferença entre Zain real e Zain do filme é que o real tem pais amorosos. Zain real presenciou muitas cenas que se assemelham às do filme e também nunca foi à escola. A prisão que aparece no filme foi fechada.
Se comparo Carfanaum e Assunto de Família, sinto significativa diferença na maneira como cada um me toca: “ Assunto” me transporta completamente para o ambiente retratado como se eu fosse um personagem invisível dentro da cena; “Carfanaum” me deixa na platéia e em diversos momentos me diverte.

Anônimo disse...

Filme impactante demais!