O Filme Coringa e o “Movimento Occupy”

17.10.2019
Por Fernando Machado


Como a ficção interage com os acontecimentos do mundo real? Como começa um movimento de ocupação? Pode ser feita alguma comparação entre os movimentos dos “coletes amarelos” de Paris (2018) e o Occupy Wall Street de Nova Iorque (2011) com a ocupação de Gotham City, involuntariamente provocada pelo Coringa, mostrada no novo filme do universo de Batman, Robin & Cia? 

Naquele mundo fictício, os protestos foram motivados pela crítica à desigualdade, ao fosso que separa cada vez mais os ricos e os pobres, desfigurando inescapavelmente o tecido urbano e, com ele, a “civilidade”, nas palavras do nosso anti-herói. Essa motivação também pode ser vista nos protestos que ocorrem no mundo real. 

Mas como uma figura improvável como o Coringa pode ser responsável por essa façanha? Esse é o mote do novo filme brilhantemente protagonizado por Joaquin Phoenix. 

Antes de analisar o filme propriamente dito e os protestos mencionados, é importante voltar à criação dos personagens centrais para melhor entendê-los: Batman fez sua primeira aparição no número 27 da revista “Detective Comics”, em 1939. No ano seguinte, o sucesso do homem-morcego lhe rendeu uma revista exclusiva, cujo primeiro número trouxe ao mundo seu arqui-inimigo Coringa. Ambos foram criados pela DC Comics

O Coringa nasceu como um especialista em Química que, após cair em um tanque de resíduos, foi irremediavelmente desfigurado. Enlouquecido, resolveu utilizar sua mente privilegiada e seus conhecimentos técnicos para o mal. 

O vilão apareceu em diversas produções, destacando-se o impagável Cesar Romero na série cômica dos anos 1960 e as sombrias interpretações de Jack Nicholson (1989), Heath Ledger (2008) e Jared Leto (2016). Entre as diversas adaptações em desenho animado, temos “Batman Animated Series”, com um Coringa com a voz de Mark Hamill (o Luke de “Guerra nas Estrelas”).


Com o tempo, apareceram novas versões para a origem do Coringa. O personagem retratado neste filme de Todd Phillips não é um químico experiente, mas sim um homem simples do povo. Portador de um grave problema neurológico que o faz rir descontroladamente em momentos inapropriados, mora com a mãe doente e trabalha como palhaço. Aspira inutilmente uma ascensão social como comediante. Uma vida totalmente oposta à do rico e protegido garoto Bruce Wayne, seu futuro adversário mortal.

Uma grande sacada do filme é mostrar o aparecimento do Coringa justamente no início dos anos 80 (1981, para ser exato, o ano de estreia do filme “As duas Faces de Zorro”, que estava em cartaz num cinema de Gotham City). 

Esse é o período do primeiro mandato de Ronald Reagan como presidente. São anos de crise econômica, alto desemprego, aumento da violência e da desigualdade social. E temos uma América desencantada, que perdeu a Guerra do Vietnã e ainda estava numa corrida sem trégua para tentar superar a União Soviética, que o ex-ator eleito presidente chamaria (numa alusão Hollywoodiana) de “Império do Mal”.

E Gotham, claro, refere-se a Nova Iorque, o grande centro financeiro do país. O culto ao dinheiro que faria os anos 80 famosos pelos yuppies (Young Urban Professionals – jovens profissionais urbanos), tão bem retratados na película “Wall Street” de 1987, com o lendário personagem Gordon Gekko (Michael Douglas) como o mestre manipulador do mercado de ações. Ou no filme “O Lobo de Wall Street” (2013), em que Leonardo DiCaprio mostra o devasso e corrupto mundo do investidor Jordan Belford.


Então finalmente temos os personagens, a época e o local onde a ação vai se desenvolver. A cidade onde mora o pobre Arthur Fleck (o futuro Coringa) é fria, suja e violenta. A coleta de lixo está paralisada. Esse mundo cada vez mais perturbador, materialista e desigual o esmaga diariamente, e até sua chance de consultar periodicamente uma assistente social do governo e conseguir os remédios de que precisa para controlar sua doença lhe é tirada com os cortes de verba da prefeitura. 

A oportunidade de finalmente revidar aparece quando um colega de trabalho lhe empresta uma arma e três yuppies malvados são mortos por um Arthur vestido de palhaço no metrô. De repente, o não identificado “palhaço assassino” é notícia na mídia, polarizando as opiniões e dando início a protestos “contra os ricos” de Gotham, com manifestantes vestidos de palhaços. Arthur percebe pela primeira vez que o mundo finalmente notou sua existência... 

Thomas Wayne, o rico empresário e pai do futuro Batman, quer se candidatar à Prefeitura para “salvar a cidade”, e despreza os “que não conseguiram se dar bem na vida”, chamando-os de “palhaços” e incitando assim novos protestos. A situação começa a sair do controle.

Uma revelação bombástica sacode a vida de Arthur ao abrir uma das inúmeras cartas que sua mãe vive escrevendo para tentar inutilmente contatar seu antigo patrão Thomas Wayne: ele seria seu pai biológico... 

A polícia está finalmente avançando na identificação do “palhaço assassino” do metrô: detetives agora estão atrás de Arthur após visitarem seu antigo empregador e descobrirem que ele foi demitido ao deixar um revólver que portava cair no chão enquanto se apresentava num hospital. Sua mãe é hospitalizada com derrame cerebral depois de receber os detetives em sua casa e saber das suspeitas sobre seu filho.

Após uma visita infrutífera aos portões da mansão Wayne, em que conhece Bruce e Alfred, Arthur finalmente consegue confrontar Thomas no teatro de Gotham. Seu “pai” lhe diz que na verdade ele foi adotado e que sua mãe é insana e esteve internada no Hospital Psiquiátrico Arkham por maltratá-lo quando era criança.

Essa triste informação é confirmada quando ele consegue roubar a pasta de sua mãe em Arkham. Sua condição neurológica vai piorando, ele não distingue mais a realidade da fantasia. A sua “namorada”, que supostamente o acompanhou ao hospital e em suas apresentações, na verdade é uma vizinha que mal o conhece e que nunca o acompanhou a lugar algum... 

Ele mata sua mãe no hospital. Também mata o ex-colega de trabalho que lhe deu a arma durante uma visita a sua casa para prestar condolências. Mas Arthur poupa o outro ex-colega, anão, que sempre o “tratou bem”, e o deixa ir embora ileso. 

A tensão geral vai aumentando. Um grande protesto é armado “contra os ricos” e Arthur só consegue escapar dos detetives graças a uma confusão no metrô, em que um dos policiais que o perseguem mata acidentalmente um dos manifestantes.

Um vídeo de uma de suas desastradas tentativas de fazer comédia vai ao ar no famoso programa humorístico de Murray Franklin (Robert de Niro), que Arthur assistia em companhia de sua falecida mãe. Murray o ridiculariza como um grande fiasco. Entretanto, graças à reação do público, Arthur é convidado para comparecer ao programa. Ele vai e, nos bastidores, pede a Murray para ser apresentado ao público como “o Coringa”.

O nome “Coringa” (“Joker”, em inglês) representa uma carta de baralho com a figura de um palhaço. No tarô, é usada para representar “o Louco” (“The Fool”, em inglês).

Durante o show, um confiante e desafiador Coringa reclama da atitude de desdém dos mais afortunados em relação aos demais, assume a autoria dos assassinatos dos três yuppies no metrô e em seguida mata ao vivo Murray Franklin. 

Preso em flagrante, consegue se libertar quando a viatura que o conduzia se choca com uma ambulância. Nesse ínterim, Thomas Wayne e sua esposa são assassinados por um homem com máscara de palhaço na frente de seu filho Bruce. Uma dúvida: se Arthur estava naquele momento se recuperando da batida no capô da viatura, quem matou Thomas Wayne?

Nas derradeiras cenas do filme, o Coringa é internado no Hospital Psiquiátrico Arkham e, após matar a funcionária que o entrevistava, passeia alegremente pelos corredores da instituição. Bruce Wayne é agora um menino órfão, graças aos eventos desencadeados pelo Coringa. Estão dadas as condições para o surgimento de Batman...

Qual é a ponte entre o filme e a realidade de 2019? Voltando aos movimentos Occupy Wall Street e “coletes amarelos” de Paris, nota-se que as pessoas estão reclamando que o sistema político vigente não mais as representa adequadamente, e clamam por mudanças, muitas vezes de modo violento.

Na vida real, Nova Iorque conseguiu se reerguer nos anos 90 com a eleição do prefeito Rudolph Giuliani e sua política de tolerância zero para com o crime. Apesar dos atentados terroristas de 2001 e da crise econômica de 2008, ainda é uma cidade vibrante e relativamente segura. 

Observa-se que está ocorrendo uma concentração de renda cada vez maior. Tanto os EUA quanto a Europa enfrentam problemas orçamentários e há perda de empregos em antigos núcleos industriais para países como a China, enquanto no mundo financeiro ganha-se cada vez mais dinheiro...

Os governos também têm que lidar com ondas de imigrantes que ainda são atraídos pelos “sonhos” americano e europeu. Os bloqueios marítimos dos portos italianos e o muro de Trump na fronteira do México conseguirão impedir essa verdadeira invasão de pessoas em busca de novas oportunidades? 

Essa realidade de alta concentração de renda também está presente no Brasil, e a isso acrescenta-se uma grande insatisfação popular relacionada à crise econômica, ao desemprego, à corrupção política e à polarização da sociedade após a última eleição presidencial. 

Existe por aqui o perigo de uma revolta nos moldes do filme do “Coringa”? Será possível sairmos da triste situação atual para um novo modelo que combine crescimento econômico e redução da desigualdade social? 

Enfim, o Coringa é um filme intrigante e que apresenta uma visão de mundo que ecoa de alguma maneira nos tempos atuais. Mas não é apropriado para todos os públicos, principalmente em virtude da violência apresentada de forma muito direta. Também não há como se identificar com o personagem principal, apresentado como um portador de problemas neurológicos graves.

No filme, o possível prefeito salvador de Gotham, Thomas Wayne, foi assassinado. Como teria sido a administração Wayne? Teria tirado a cidade da situação de caos retratada nas futuras aventuras de Batman, que ainda era um garoto nesse filme? Enfim, será que teria surgido a necessidade de um herói mascarado para defender a população de Gotham? Nunca saberemos... ou haverá um novo filme?

*Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte. Este artigo também contou com a revisão, “palpitagem” e colaboração da querida Ana Lúcia Machado

Outro artigo sobre o filme Coringa está no link:
http://www.grupocinemaparadiso.com.br/2019/10/joker-com-spoilers.html

2 comentários:

Ana Rosa disse...

Muito esclarecedora a parte inicial do texto, sobretudo para mim que não assisti aos filmes anteriores.

Lélia Costa disse...

Ótima análise. Realmente esclarecedora e muito bem contextualizada na realidade.