Flashback ao Cine Santo Antônio

21.06.2021
Por Amanda Bortoletto

Letreiro da fachada do Cine Santo Antônio – Adamantina/SP  (Revista Siga Mais, 2016)

Nasci e cresci em Adamantina, uma cidade de pouco menos de 40 mil habitantes no interior de São Paulo. Como se pode imaginar, a oferta de atividades culturais na minha infância provinciana era escassa, e continua assim para os que lá ainda vivem. Mas por alguns anos, que corresponderam dos meus 7 aos 13 anos, aproximadamente, existiu o Cine Santo Antônio. Um cinema de rua de apenas uma sala, com capacidade total para 1.200 pessoas, dividido entre plateia térrea e um mezanino, chamado de Pullman, que é acessado por duas enormes escadarias laterais. Um monumento! O prédio ainda resiste, inclusive com o letreiro original instalado na fachada, mas o cinema acabou há vários anos. Está fechado, abandonado, o espaço físico vai se deteriorando com o passar dos anos e do descaso, e as memórias vão se perdendo com o passar das gerações.

Inaugurado em 1954, o Cine Santo Antônio era administrado pela Empresa Teatral Peduti e após algumas décadas de funcionamento foi fechado. Não sei precisar o motivo nem quando exatamente ocorreu esse primeiro fechamento. Felizmente, em 1994, foi reinaugurado por um projeto da Secretaria de Cultura do Estado e da Prefeitura municipal. A iniciativa foi viabilizada por uma associação de voluntários chamada Amigos da Cultura, responsável pela administração e operação do cinema. O grupo era composto de pessoas de idades e profissões diversas que uniram esforços pela vontade comum de manter o cinema vivo.

A minha mãe era uma dessas voluntárias e geralmente trabalhava na bilheteria ou na catraca. Como contrapartida pelo trabalho, os familiares dos voluntários tinham passe livre para frequentar o cinema. Sorte a minha! Fosse para acompanhar minha mãe ou um programa com meus amigos, eu frequentava o cinema, no mínimo, uma vez por semana. Na minha pré-adolescência, ir ao cinema era a principal atividade de todas as turmas nas noites de sexta-feira. Obviamente, a motivação para tamanha assiduidade dos jovens nem sempre era a paixão pela sétima arte, mas sim, por algum menino ou menina.

Por estar localizado bem no centro da cidade, no meio do comércio, bancos e restaurantes, passar em frente ao cinema e ver qual era o filme em cartaz, quais seriam as próximas estreias e medir o sucesso de bilheteria pelo tamanho da fila, era parte da rotina de muitas pessoas da cidade. O valor acessível do ingresso, viabilizado pelo projeto público e de voluntariado, fazia do Cine Santo Antônio um espaço de convivência entre diversas tribos e camadas econômicas, uma ferramenta de democratização da cultura e do acesso à arte para uma população com tão pouca oferta desse tipo de experiência.

Por que deixamos o cinema fechar pela segunda vez se ele era tão valioso para a comunidade? Porque cultura é feita de reviravoltas, ora gloriosas, ora dolorosas, não há garantias. O público foi diminuindo, a enorme plateia ficando ociosa na maioria das sessões, o caixa, que sempre foi enxuto, ficando negativo, nenhum socorro financeiro chegou das instituições públicas nem das privadas. E então, mais uma vez, as luzes do Cine Santo Antônio se apagaram sem previsão de uma próxima sessão.

Ao escrever esse texto, me dou conta que a minha vontade de trabalhar com projetos que viabilizem o fazer cultural e o acesso à arte estão enraizadas na história desse cinema da minha infância. Eu nunca havia feito essa relação, pois sempre pensei que o meu despertar para a arte e cultura só tivesse acontecido já adulta, morando em outros países e em São Paulo. Quando criança, o cinema era parte da minha paisagem, os filmes eram parte da minha rotina, eu não tinha a dimensão do privilégio que era ter esse acesso literalmente gratuito. Agora entendo que o cinema já estava há muito tempo me trazendo conhecimento e abrindo caminhos.

Aproveito a comemoração dos 26 anos do Grupo Cinema Paradiso para compartilhar esse flashback pessoal e desejar vida longa às iniciativas como essa, como foi a dos Amigos da Cultura de Adamantina. É do encontro de pessoas apaixonadas por uma causa em comum que nasce uma revolução. Que sigamos nos encontrando, seja ao vivo ou virtualmente, para exercitar nosso senso de comunidade, a escuta atenta, o debate, para argumentar, rir e chorar. Assim garantimos que haverá sempre um refúgio contra a barbárie, um lugar seguro para onde correr quando a rotina não der espaço para o que nos importa de verdade ou quando o caos que está lá fora tentar nos arrebatar.

Cine Santo Antônio em sua época de funcionamento

Reunião da Associação dos amigos da cultura no Cine Santo Antônio. Eu sou a criança de saia laranja.
(Arquivo pessoal)

Imagem capturada em 2012 pelo Google Street View

Sala de exibições (térreo)

Vista do mezanino “Pullman” 

6 comentários:

João Moris disse...

Oi Amanda, acabo de ler o seu artigo e gostei muito. Parabéns!! É importante resgatar essas memórias de um tempo não tão distante quando havia cinemas de rua nas cidades brasileiras. Eu também cresci indo a cinemas de rua no ABC (com o Pullman e tudo mais!!). Você fez uma pergunta certeira no seu artigo (Por que deixamos o cinema fechar pela segunda vez se ele era tão valioso para a comunidade?) que, creio, carece de uma resposta aprofundada e talvez até outro artigo com um título assim. Acho essencial você ter colocado esta pergunta na primeira pessoa do plural, porque que também somos responsáveis por não lutar com mais afinco pelo nosso patrimônio e deixar que os "outros" façam por nós. É fácil lamuriar depois que o poder público e a especulação imobiliária se aproveitam da situação para derrubar tudo. Por que, como sociedade, não nos unimos para exercitar nossa cidadania antes de esses fatos acontecerem? Bem, apenas umas das reflexões que seu artigo suscita. Ah, e gostaria de saber que filmes você assistiu no Cine Santo Antônio que te marcaram. Talvez no próximo artigo?? Bjs e obrigado, João Moris

Bianca Gardim: disse...

Mandys, que texto lindo!!!! E realmente que privilégio poder ter tido este acesso ao cinema. Muito obrigada por compartilhar esta memória e também esta importante reflexão social conosco. Aguardo o próximo texto!

Oziris disse...

Esse texto da Amanda me fez lembrar do bairro do Ipiranga, em que morei até os 16 anos. Era década de 50 e muitos bairros tinham um ambiente provinciano, onde todos se conhecem, crianças brincam na rua e a matinê de domingo é programa obrigatório. Havia dois cinemas o “Anchieta” e o “Samaronne” . Neles vi tudo do Mazzaropi, da Atlântida, da Vera Cruz, (nos lançamentos). Meu primeiro filme foi “À noite sonhamos” sobre a vida de Chopin. Tinha 6 anos! As sessões eram triplas: um seriado (bang-bang); “Atualidades” (um jornal não muito atual, em geral sobre acontecimentos da alta sociedade ou de elementos do governo); e, por último, o filme principal.
Vendiam doces dentro da sala e havia o “lanterninha “ para guiar as pessoas no escuro, mas principalmente para flagrar namorados que passassem dos limites.
Obrigada, Amanda.
Oziris

FLAVIA MARONI SIMONSEN disse...

Amanda , parabens pela excelente reflexão. De fato , não podemos deixar a cultura sucumbir, cinemas e teatros se encerram por falta de publico, pois um espetaculo sem platéia perde a razão de ser! E tudo isso faz parte da nossa propria sobrevivencia intelectual . Muito bom !

Unknown disse...

A Amanda herdou o gosto pela sétima arte do avô materno, Sr. Izidro Bortoletto.
Era frequentador assíduo do Cine Santo Antônio nos anos 50, 60 e 70.

Iara Ramos Brito disse...

Parabens pelo texto delicioso..

Lembrei-me, tb, de minha adolescência, em Avaré, onde ir ao cinema , principalmente aos domingos, era o " programão".

Creio que em tds cidades do interior paulista onde havia cinemas, eram da rede Pedutti e

em todo início da sessao, as luzes se apagavam e tocava a música A Summer place com a orquestra Billy Vaughn..

O filme iria começar... e nossa imaginação também...

Obrigada, um abraço, Iara