A Separação, de Asghar Farhadi

Ecos da discussão de 19.02.2012
por Cláudia Mogadouro


Iniciamos a reunião do dia 19/02/2012 (pleno domingo de Carnaval) cumprindo o combinado de exibirmos um filme curta metragem. Por sugestão do Marcos Peter, vimos Dona Cristina perdeu a memória (2002), de Ana Luíza Azevedo, da Casa de Cinema de Porto Alegre. Foi muito legal! Fizemos alguns comentários, mas o objetivo não é discutir os curtas e, sim, nos acostumarmos a ver esse formato, tão pouco cultivado. Depois escolhemos os dois filmes da reunião seguinte e passamos para a discussão do tenso filme iraniano. 

Iniciamos com um panorama muito rápido sobre a história recente do Irã, relembrando que até 1979, o país vivia um processo de modernização, com claro apoio norte-americano. Após a revolução do Aiatolá Khomeini, o estado teocrático tornou-se muito mais enfático e totalitário, contrário aos interesses dos EUA. De alguns anos para cá, novamente vemos um processo de tentativa de modernização, porém lembramos que Jafar Panahi, excelente cineasta, que faz filmes bem críticos, está preso e proibido de filmar. Vive-se uma situação bastante híbrida no Irã e o filme nos mostra isso. 

Algumas pessoas acharam o filme longo e claustrofóbico. Houve quem dissesse que saiu do cinema com falta de ar e eu contei que saí com o corpo moído (nas duas vezes em que o assisti). Constatamos que esse desconforto se deve ao fato de participarmos muito do filme e de todos os dilemas que ele traz. A primeira cena, com a câmera subjetiva, já nos anuncia que seremos os juízes daqueles personagens, como se isso fosse possível... Creio que o diretor brincou com o espectador sugerindo que ele fosse o juiz, mas vamos nos enrolando com “nossos julgamentos” o filme todo... Isso é bem cansativo, mas é a proposta do filme. 

Comentamos que todas as cenas sugerem confusão. Até as cenas externas são angustiantes, nos mostrando o caos da rua, muito trânsito, barulho infernal. O interior do apartamento não é diferente, mesmo porque representa bem o caos de uma separação. Sobre as audiências de conciliação, Mayka (participante do grupo, advogada) nos contou que elas são assim, tumultuadas, também no Brasil. Para dar mais ênfase a essa ambientação, há muitas situações de passagem: corredores, escadas. 

O maior mérito do filme é que ele foge do maniqueísmo e apresenta personagens muito complexos. Todos eles falham e mentem! 

Em um primeiro momento nos identificamos com Nader, o marido que não quer viajar para ficar com o pai, que está com Mal de Alzheimer. Quando Simin, sua mulher, lhe diz que seu pai nem sabe quem ele é, ele responde: “mas eu sei que ele é meu pai!”. Só por essa frase, o filme já merece muitos prêmios. Nader sofre e nós nos compadecemos com sua difícil situação doméstica. Porém, aos poucos, vamos vendo que ele só pensa em resolver o seu problema, não se importando em ser ético com a empregada doméstica. Em relação à sua filha Termeh, ele se desdobra em cuidados, ajuda-a nos estudos e a educa para ser uma mulher independente (por exemplo, quando pede que ela maneje a bomba de gasolina e oriente que ela exija o troco). Ele não deseja uma filha submissa como as mulheres das classes populares. Quando sua mulher – ocidentalizada, escolarizada – deixa a casa porque quer sair do país, ele aparentemente age como um liberal: “pode ir!” Porém, ele vai culpá-la por tudo o que acontece depois. No âmbito doméstico, ele está vivendo um inferno, mas sua situação social é bastante confortável num país como o Irã: é branco, classe média, tem um bom emprego, não se prende a preceitos religiosos. Nós nos identificamos com ele, até por não corresponder ao estereótipo do iraniano. 

As classes sociais são bem demarcadas, não apenas pela ocupação de cada um, mas, também, pela vestimenta da mulher e de sua ligação com a religião. Foi muito comentada a cena da doméstica ligando para o “disk-pecado”, para saber se limpava ou não o idoso. O sapateiro (marido da doméstica) é extremamente preso às tradições morais, embora jovem. O casal que pretende se separar é nitidamente menos religioso. Embora não-religioso Nader manipula a situação quando, ao final, pede que Razieh, a empregada, jure sobre o Corão que não mentiu. 

É possível também fazermos uma analogia, relacionando simbolicamente as personagens às gerações (mesmo que o diretor nem tenha pensado nisso). O pai, por exemplo, pode representar o velho Irã, ultrapassado, demente, sem solução. Os adultos estão vivendo uma confusão sem fim, relativizam valores, não conseguem chegar a um acordo, são híbridos. As crianças se entendem bem e estão herdando esse país complexo, difícil, ambivalente. Caberá a Termeh a decisão, porque os adultos foram incapazes de um acordo. Já não resta muita opção à pequena Somayeh, pelo menos no momento, porque é bem menor e pobre. Mas ela observa atentamente tudo e demonstra sofrer com o mundo adulto. 

Uma discussão que tomou boa parte da reunião (antes da premiação do Oscar, como melhor filme estrangeiro) foi a posição do governo iraniano em relação ao cinema. O filme A Separação foi financiado pelo governo, com verbas como as que temos aqui. Como há censura no país, teoricamente o filme não fere os interesses do governo. Alguns acharam que o filme faz apologia do atual regime, no sentido de quebrar o estereótipo do iraniano dogmático e atrasado, demonstrar certa liberdade de discussão, por exemplo, apontando que os iranianos valorizam extremamente o aspecto ético e buscam ao máximo a justiça e a verdade. Podemos ver isso na cena em que Nader se preocupa que a filha o veja como mentiroso. Mas a maioria do grupo achou que o filme é crítico ao regime, só não é contundente, até por questões de segurança. Especulamos que a censura local pode ter avaliado o filme como um drama familiar, não dando muita importância ao aspecto político, uma vez que ele é velado. Lembramos situações de censura no Brasil, na época da ditadura militar. Foi citado também que o filme sofreu uma retaliação e as filmagens tiveram que ser interrompidas por dez dias, em virtude de uma declaração do diretor em apoio a JafarPanahi. 

Possivelmente, o governo iraniano não imaginara a carreira internacional alcançada pela obra, que tem lhe dado muita notoriedade. A prova está em que, embora tenha passado pela censura e financiamento governamental, autoridades iranianas têm dado declarações contrárias à imagem que o filme exibe sobre o país. Comentamos também que, embora o filme tenha todos os méritos para os prêmios que vem recebendo, certamente a provável premiação do Oscar (que ainda não havia se concretizado no dia da reunião) envolve o interesse norte-americano em se posicionar, pela via da cultura, em relação ao seu inimigo político. 

Ufa! Espero ter conseguido dar uma ideia da riqueza que foi nossa discussão sobre esse instigante filme!

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