Novo Cinema Pernambucano

24.04.2015
Elaboração: Profª Drª Cláudia Mogadouro

Imagem do filme A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. 
Alberto Caieiro

É curioso pensar sobre a universalidade das culturas locais. Temos uma tendência a achar que questões gerais são discutidas em grandes cidades e que cidades interioranas ou pequenas expressarão apenas os costumes e interesses locais. Uma obra de arte - fílmica, literária, musical - pode abordar temas de uma pequena aldeia e sensibilizar pessoas do mundo todo. Um filme como Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), por exemplo, é uma adaptação do conto de um escritor albanês para o cenário do nordeste brasileiro. E ainda assim tornou-se uma obra universal. O mesmo pode-se dizer do recente filme brasileiro A História da Eternidade, primeiro longa metragem do cineasta pernambucano Camilo Cavalcante. O filme trata de três histórias femininas que se entrecruzam no sertão nordestino, em um vilarejo com meia dúzia de casas. A forma poética de contar as histórias e a abordagem das relações humanas em uma sociedade patriarcal tira todo caráter "regional" do filme, tornando-o universal. Somado a isso, a excelência do elenco, a trilha sonora e a fotografia bem cuidadas conferiram a essa obra uma série de prêmios nos festivais de cinema, dentro e fora do Brasil. Infelizmente, por conta das dificuldades de distribuição do cinema brasileiro, esse filme ficou pouquíssimo tempo em cartaz nas salas de cinema.

Irandhir Santos em A História da Eternidade

A qualidade do filme A História da Eternidade vem confirmar a excelente produção pernambucana que vem surpreendendo o Brasil nos últimos anos. A indústria cinematográfica brasileira concentrou-se por muito tempo no eixo Rio-São Paulo, onde estão as mais importantes e ricas produtoras. Nas outras regiões também se fazia filmes, mas com precariedade de recursos e, principalmente, com poucas chances de seres vistos além do público local. Atualmente, o cinema pernambucano tem se destacado como um dos polos de maior qualidade artística do país.

Desde os anos 1920, época dos chamados ciclos "regionais" de cinema, a produção de Recife (PE) se revelou, com destaque para os cineastas Edson Chagas e Gentil Roiz. Eles realizaram ao todo 12 longas e 25 curtas, sendo o mais famoso deles Aitaré da Praia (1925), que circulou pelo país. Nessa fase, o domínio cultural estrangeiro concentrava-se mais nas grandes cidades, permitindo o desenvolvimento da arte local, dando, inclusive, mais liberdade de criação, já que seus artistas não sofriam tanto as pressões do mercado. Mas esses ciclos duraram pouco, pois não demorou para o cinema norte-americano chegar também nessas regiões.

Seguindo o exemplo de várias capitais brasileiras, entre os anos 1950 e 1980, Recife tornou-se uma cidade com cultura cineclubista, permitindo o surgimento de uma geração de jovens cineastas que criou o Grupo de Cinema Super-8 de Pernambuco (com destaque para o documentarista Fernando Spencer). Com o declínio do Super-8, na década de 1980, inicia-se uma fase fértil de produção de curtas metragens, com temas da cultura local, documentários e filmes experimentais. Paulo Caldas é um cineasta que já nessa época produzia curtas metragens. Segundo ele, como não havia escolas de cinema em Recife, o jeito de se aprender a fazer cinema era produzindo curtas. Uma entrevista com Paulo Caldas sobre sua obra, pode ser lida no link:

Em 1990, o já sofrido cinema brasileiro é interrompido com o fim da Embrafilme, decretado pelo então presidente Fernando Collor de Mello. As produções brasileiras simplesmente vão a zero, pois não tínhamos uma indústria de cinema que pudesse sobreviver sem ajuda estatal (até hoje não temos). Dois anos depois foram promulgadas novas leis de incentivo à cultura, que receberam o nome do então secretário da Cultura Sérgio Paulo Rouanet. A produção de cinema foi sendo retomada aos poucos e o primeiro grande sucesso de público dessa nova fase (chamada de "retomada do cinema brasileiro") foi Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995).

Em Pernambuco, a Lei Rouanet somou-se a outras leis de incentivo locais e aquela geração de cineclubistas e realizadores de curtas metragens encontrou recursos para transformar seus sonhos criativos em grandes filmes, trabalhando como um coletivo que escrevia os roteiros, produzia, dirigia e atuava. O primeiro sucesso dessa época foi Baile Perfumado, do já citado Paulo Caldas co-dirigido por Lírio Ferreira (1996) e co-escrito por Hilton Lacerda. O filme conta a história de um mascate libanês - Benjamin Abrahão, que era amigo íntimo de Padre Cícero. Ele resolve filmar Lampião, acreditando que ficaria muito rico com o filme. Consegue contato e uma conversa com o famoso cangaceiro, porém, a ditadura do Estado Novo estraga seus planos. Baile Perfumado exibe as únicas imagens de Lampião ainda vivo, coletadas por esse cineagrafista amador, que realmente existiu. Além disso, ao contrário dos tradicionais filmes sobre o tema, apresenta um sertão muito verde e Lampeão tomando whisky e se banhando com perfume francês (daí o nome do filme). A música é composta pelos jovens músicos do movimento manguebeat, como Chico Science & Nação Zumbi e Mestre Ambrósio.

Luiz Carlos Vasconcelos, como lampião, em Baile Perfumado

Paulo Caldas consegue repercussão internacional com seu documentário O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), feito em parceria com Marcelo Luna, que relata a história de dois jovens da periferia de Recife, um se torna músico de rap e o outro, justiceiro. Depois ele dirige Deserto Feliz (2007) - co-escrito por Marcelo Gomes, Xico Sá e Manoela Dias - e País do Desejo (2011).

Com roteiro de Hilton Lacerda e direção de Cláudio Assis (de Caruaru/PE), outro filme significativo da chamada retomada pernambucana foi Amarelo Manga (2002). Premiado nacional e internacionalmente, a trama traz várias histórias fortes interpretadas por elenco conhecido do público, como Leona Cavali, Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes e Chico Diaz. Sua ousadia estética e temática aparece em toda a sua obra, com filmes fortes, como Baixio das Bestas (2006) e A Febre do Rato (2011), também escrito por Hilton Lacerda. Seus filmes têm a marca da reflexão sobre o comportamento humano, apresentando uma linguagem cinematográfica autoral e produção de baixo custo (embora isso não apareça na tela).

Outro diretor de destaque dessa geração é Marcelo Gomes que também começou realizando curtas como Maracatu, Maracatu (1995) e Clandestina Felicidade (1998), este sobre a infância e a obra de Clarice Lispector (veja o plano de aula neste site) Seu primeiro longa foi o aclamado Madame Satã (2002), sobre a figura lendária da boêmia carioca, que foi interpretado por Lázaro Ramos. Este filme foi roteirizado e co-dirigido por Karim Aïnouz, que é cearence e integra-se perfeitamente ao movimento pernambucano. Gomes surpreendeu mais uma vez com a qualidade do filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), que foi premiado no Brasil e no exterior. Na França, o filme recebeu o "Prêmio da Educação Nacional", do Ministério da Educação Nacional, que prevê a distribuição do filme, através de um DVD pedagógico, para aproximadamente um milhão de estudantes franceses. O ator João Miguel que interpreta Ranulpho ganhou também muitos prêmios com o filme. Os planos de aula de Cinema, Aspirina e Urubus e de Clandestina Felicidade encontram-se neste site.

Outros ótimos filmes de Marcelo Gomes: Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, co-direção novamente com Karim Aïnouz) e Era Uma Vez Eu, Verônica (2012). Sobre Karim Aïnouz, faltou dizer que, além dele ter feito vários curtas, já havia roteirizado filmes importantes como Abril Despedaçado (2001) e Cidade Baixa (de Sérgio Machado, 2005). Outros destaques de sua atuação como diretor são os desafiadores O Céu de Suely (2006), O Abismo Prateado (2011) e Praia do Futuro (2013), que teve atuação brilhante de Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, com produção Brasil/Alemanha.


Voltando a Lírio Ferreira, que já fora citado na direção de Baile Perfumado. Ele fez também Árido Movie (2005) e depois se dedicou a dois documentários musicais muito interessantes: Cartola, Música para os Olhos (co-direção de Hilton Lacerda, 2007) e O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), sobre a vida e obra de Humberto Teixeira, letrista dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga.

Hilton Lacerda aparecia antes apenas como roteirista de vários dos filmes citados. Escreveu ainda A Festa da Menina Morta (2008, direção primeiro trabalho de direção de Matheus Nachtergaele) e Capitães da Areia (2011). Seu primeiro trabalho na direção foi o documentário Cartola, Música para os Olhos e, em 2013, foi bastante premiado com Tatuagem.

Por fim, outro jovem cineasta pernambucano que despontou recentemente foi Kleber Mendonça Filho. Formado em jornalismo, tornou-se experiente crítico de cinema, o que o fez ter uma visão bastante controvertida sobre a crítica especializada, refletida em seu primeiro longa metragem, o documentário Crítico (2008). Ele fez alguns curta metragens, como o divertido Recife Frio (2009), cujo plano de aula também se encontra neste site. As ideias de alguns curtas reaparecem no seu primeiro longa de ficção O Som ao Redor (2013). Retomando a ideia da aldeia que fala de questões universais, o filme faz quase um tratado sociológico do Brasil, a partir de um quarteirão da cidade de Recife. Há um redimensionamento do som do cinema, para ressaltar a insegurança permanente entre dominadores e dominados. O jornal New York Times colocou O Som ao Redor na lista dos 10 melhores filmes de 2013. Em festivais nacionais e internacionais, o filme ganhou mais de 120 prêmios. Neste site, é possível ler os ecos da discussão do Grupo Cinema Paradiso sobre O Som ao Redor, assim como o plano de aula do curta Recife Frio.

Maeve Jinkings em O Som ao Redor

A safra de realizadores - diretores, roteiristas, músicos, fotógrafos, atores e atrizes - que surgiu em Pernambuco nas duas últimas décadas merece ser conhecida e estudada. Fica evidente que se trata de uma ambiência cultural que favoreceu essa produção tão criativa. Infelizmente, em função dos problemas da nossa indústria de cinema, especialmente a distribuição e exibição, somado o preconceito que ainda existe contra o cinema brasileiro, esses filmes ainda não são tão conhecidos do grande público.

''Artigo escrito e publicado no Portal NET Educação: www.neteducacao.com.br"

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