Um difícil recomeço

12.08.2015
por Rianete Lopes Botelho

Morrer não é difícil 
difícil é a vida e seu ofício 
Ortega y Gasset

O filme alemão Phoenix, de Christian Petzold, tem um excelente roteiro e conta com atores de primeira linha, sobretudo Nina Hoss, que faz a protagonista Nelly. Apesar de tratar de um tema denso, é de uma delicadeza comovente. Por ser um filme inspirado na Segunda Guerra Mundial, é inevitável a referência à maldade humana que facilmente se expressa em situações de caos, de desgoverno e de abuso de poder. Mesmo sendo um tema ligado à guerra e seus desatinos, impressiona que a transmissão do horror seja feita sem o uso explícito de violência. O trágico e a dor são expressos com sutileza, e até os suspenses no filme são sutis.


A história se passa após o término da guerra e mostra os desdobramentos e sequelas daquele período na vida de uma mulher. Sabe-se que o fim de grandes conflitos não significa que tudo volta imediatamente ao normal e a tranquilidade se instala. Significa, isto sim, que o furacão passou, mas quem foi atingido, dependendo do dano, poderá levar muito tempo para se refazer, ou, talvez, nunca o consiga. No caso do filme, o horror da guerra acabou, mas um novo horror se inicia na vida da protagonista.

Nelly, egressa de um campo de concentração, é a única sobrevivente de sua família. Volta desfigurada e se submete a uma cirurgia plástica restauradora, mas não consegue recuperar suas feições originais. É mais uma perda causada pela guerra: a perda de sua identidade física, o que a faz se sentir como uma usurpadora, ocupando um corpo que não lhe pertence. Olha-se no espelho e, ao não se reconhecer, constata sua inexistência, percebendo que também não será reconhecida por mais ninguém.

Nelly procura encontrar seu marido Johnny (Ronald Zehrfeld) na tentativa de retomar seu lugar no mundo. Embora sua amiga (Nina Kunzendof) procure dissuadi-la de seu intento, alegando que Johnny fora o delator que a entregou aos nazistas, Nelly não lhe dá ouvidos. A proposta da amiga é que as duas viajem para a Palestina para colaborarem na formação do Estado de Israel. Nelly também não lhe responde e continua na sua obstinada busca da pessoa que, para ela, abriria a porta da retomada de sua vida interrompida pela guerra, já que tudo o mais estava perdido. Enquanto a amiga fazia planos para o futuro, Nelly procurava retomar seu passado, sem se dar conta de que ele estava irremediavelmente perdido. Ou, talvez, procurasse se certificar de que não havia mais nada a ser resgatado.


Johnny é localizado trabalhando num sub-emprego (antes da guerra, ele era um pianista profissional). Ele não reconhece Nelly e ela não se identifica, mas aceita a proposta que ele lhe faz de se fazer passar por Nelly – que ele supunha morta – para receber a herança que lhe caberia se estivesse viva. Com a ajuda de Johnny, Nelly passa por um período de “treinamento” para se assemelhar o mais possível à suposta falecida. Ela se submete àquele papel provavelmente para saber o que de fato ela teria representado na vida daquele homem, e para descobrir se ele teria sido mesmo seu delator. Fazer passar-se por Nelly, imitá-la, descobri-la, também poderia ser uma maneira de se reencontrar no mundo, de voltar a ser ela mesma.

Sob o pretexto de precisar de informações para que seu desempenho fosse avaliado oficialmente como verdadeiro, Nelly procurava saber de Johnny sobre a relação do casal. Foi durante esse período que ela conseguiu aclarar pontos obscuros e juntar pedaços do quebra-cabeças de seu passado.

No jogo dos dois personagens, ele a usava como alguém moldável o suficiente para conseguir seu objetivo de ficar rico; ela, por sua vez, o usava para se reencontrar e se reinventar. O jogo chega ao fim quando os dois descobrem a verdade um do outro. E também aqui, como em todo o decorrer do filme, a delicadeza se faz presente. Embora frustrados, ambos, com a desilusão do desfecho, não há impropérios, exaltação de ânimos ou agressões. Apenas decepção, abatimento e tristeza a serem suportados pelos dois, lentamente. É o que mostra a música “Speak Low”, de Kurt Weill e Ogden Nash, cantada por Nelly, acompanhada por Johnny ao piano, cuja voz ele reconhece e as máscaras caem. É significativa a escolha dessa música, que pede calma, que se fale baixo, sem alarde, como o que se observa em todo o filme, onde nada é abrupto, tudo é sutil, até a morte da amiga de Nelly. 

A confirmação de que o homem que amava fora o responsável por todo o sofrimento a que foi submetida, certamente foi um grande golpe para Nelly, já tão fragilizada por tantas perdas. As cenas de uma Berlim destroçada por onde anda a personagem, é uma metáfora da destruição daquela mulher sozinha, privada de sua fé na humanidade e até dos seus sonhos. A gente não sabe se o que restou de Nelly será suficiente para alguma reconstrução, ou se tudo vai permanecer em ruínas. 

Apesar de personagens tão intensos, acredito que a principal personagem do filme é a trágica condição humana, cuja vulnerabilidade impele o homem à busca inútil da imortalidade – por não conseguir lidar com a perspectiva de morte – a tentar fugir dos sofrimentos, sem se dar conta de que não tem poder sobre o rumo de sua vida. Esse é um filme que retrata primorosamente o trágico que é o viver humano...

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