Cinema Experimental - O Audiovisual Brasileiro em Evolução

09.07.2016
por João Moris

A despeito do retrocesso e do conservadorismo cada vez mais acirrados no Brasil, as artes em geral e as obras audiovisuais continuam a cumprir seu papel transgressor e político. Isto é reconfortante de constatar. Com exceção da televisão – o grande veículo de massa do País que está cada vez mais retrógrado e comprometido ideologicamente com uma postura neoliberal, muitos artistas de diferentes tipos de arte vêm produzindo obras esteticamente e conceitualmente ousadas que mostram as diferentes facetas da sociedade e da cultura brasileira. São facetas que o Brasil não vê na TV ou na grande mídia pasteurizada e descartável. 

Ao contrário do que muita gente imagina, hoje há uma verdadeira legião de artistas e grupos independentes, principalmente jovens, de todas as classes sociais e de todas as regiões do país, que sub-repticiamente estão transformando e transgredindo as artes plásticas, o teatro, a dança, a literatura e a música. Com o suporte das novas mídias digitais surgidas nos últimos anos, o cinema e o audiovisual no Brasil também estão transgredindo as convenções de forma genial.

Experimentando o diferente 

Para além do juízo de valor (gosto/não gosto, bom/ruim) e de rótulos geralmente atribuídos ao cinema brasileiro, vários filmes fora do esquema comercial de produção e distribuição vêm sendo feitos no Brasil nos últimos 10 anos. O chamado cinema experimental é composto de filmes que radicalizam a experiência de ver uma obra audiovisual e desafiam nossos pressupostos. São trabalhos que nos convidam a olhar o mundo sob outra ótica e com disponibilidade para abraçar o novo. 

Estas obras audiovisuais estão sendo produzidas por uma geração de cineastas que cresceu com as novas tecnologias digitais, que possibilitam não apenas diversos tipos de produção audiovisual a um custo baixo e com poucos recursos, mas também de expressar sua percepção de mundo, criatividade, insatisfação e preocupações de maneiras diferentes e inovadoras. Assim sendo, os filmes desses jovens são muitas vezes livres de narrativa, não há uma preocupação com a coerência e a linearidade, apesar de serem construídos com muito rigor e domínio técnico. A estética e a narrativa destes filmes, em geral, realçam a violência estruturante do capitalismo em países como o Brasil, a fragilidade do homem diante do contemporâneo, a insegurança afetiva e social decorrentes dessa fragilidade, o horror contido na aparência de normalidade. Também potencializam a sensação de incômodo, mal-estar, tensão, medo e estranhamento, num tom quase sempre não conciliatório.

O precursor deste novo cinema experimental brasileiro é o hoje consagrado diretor, roteirista, produtor e crítico pernambucano Kleber Mendonça Filho. Seus curtas metragens Vinil Verde (2004) disponível em www.youtube.com/watch?v=2aFMf46nwEo), Eletrodoméstico (2005 - www.youtube.com/watch?v=cnGURbbtTlc), Noite de Sexta Manhã de Sábado (2006 - https://vimeo.com/10129933), o documentário Crítico (2009) e o seu primeiro longa de ficção, O Som ao Redor (2012), são reconhecidos no mundo inteiro.

Vinil Verde, de Kleber Mendonça Filho

Os filmes de Kleber não são dramas contados de forma comum, mas têm uma força que leva imediatamente à identificação do espectador com seu universo. São histórias urbanas onde o desconforto das relações humanas, o medo do outro, a invisibilidade e a exclusão social estão sempre presentes e se desenvolvem de maneira circular. A narrativa e a linguagem em seus filmes são sempre ousadas, perturbadoras e intrigantes. Ao que tudo indica, seu aguardado e premiado filme Aquarius (2016), segue o mesmo caminho de desestabilizar e incomodar o espectador.

Coletivos 

Muitos desses novos cineastas estão ligados aos chamados coletivos de cinema, que têm polos importantes no Ceará (Fortaleza), Minas Gerais (Contagem) e São Paulo, entre outros estados, e são formados por artistas versáteis e polivalentes, que trabalham em esquema de corresponsabilidade, revezamento de funções e horizontalidade da hierarquia, em que todos os membros do grupo se envolvem no processo de criação e produção do filme. Apesar dos poucos recursos que dispõem, esses coletivos são extremamente formais na construção de seus filmes e transitam entre gêneros (suspense/terror/musical etc) abordando temas sociopolíticos prementes no Brasil (exclusão social, racismo, homofobia, xenofobia, especulação imobiliária etc). Além do cuidado com os planos, as cenas são filmadas sem virtuosismos de câmera. 

Os filmes dos coletivos são exibidos em algumas salas do circuito comercial, mas principalmente em festivais nacionais e internacionais e na internet. São encontrados, também, em galerias e instalações de arte e exibidos em escolas e universidades. Os festivais no Brasil que exibem os filmes dos coletivos em mostras paralelas ou especiais incluem Tiradentes, Fortaleza, Recife, Curitiba e o Festival de Curtas Metragens de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre outros. Em todos esses festivais, os filmes dos coletivos têm grande circulação e uma plateia cativa e entusiasmada. No exterior, os filmes são exibidos principalmente nos prestigiados festivais de Cannes e Roterdã.

Entre os coletivos de cinema mais atuantes no momento está o paulista Filmes do Caixote, composto por cinco cineastas (Marco Dutra, Juliana Rojas, Caetano Gotardo, João Marcos de Almeida e Sergio Silva). O grupo já produziu alguns filmes lançados comercialmente, como os instigantes longas Trabalhar Cansa (2011), O Que Se Move (2012), Quando Eu Era Vivo (2013) e Sinfonia da Necrópole (2014), que foi lançado nos cinemas de São Paulo este ano. Entre os curtas do grupo, destacam-se A Bela P... (2008 - https://vimeo.com/61313011), Eva Nil Cem Anos Sem Filmes (2009 - https://vimeo.com/61186378) e A Vida Do Fósforo Não É Bolinho, Gatinho (2015 - https://vimeo.com/109683028).

Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas

Outro coletivo importante é da cidade de Contagem, nos arredores de Belo Horizonte: o Filmes de Plástico. Quatro jovens vindos da periferia estão à frente deste coletivo (André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo). Seus filmes longas incluem Ela Volta na Quinta (2015) e No Coração do Mundo (2016). Entre os curtas do grupo, destacam-se Contagem (2012 - https://vimeo.com/69015967), Pouco Mais de um Mês (2013 - https://vimeo.com/76268855), Quintal (2015 - https://vimeo.com/128073755) e Rapsódia para um Homem Negro (2016 - https://vimeo.com/136860391). 

Outros filmes mais radicais saídos de Minas Gerais nos últimos anos incluem o longa A Vizinhança do Tigre (2014) de Affonso Uchoa e os curtas hipnóticos e anárquicos Imhotep (2015 - https://vimeo.com/130931284) e Cauahtémoc (2012 - portacurtas.org.br/busca/?termo=leo%20pyrata), ambos do diretor Leo Pyrata, exemplos típicos do chamado cinema ensaio em que a captação do digital e o pixelamento da imagem dão o tom do filme.

Um dos primeiros coletivos de cinema do Brasil é o Alumbramento Filmes, de Fortaleza, que produz filmes com muita criatividade e que fogem do lugar comum. É formado por vários cineastas, entre eles, Luiz Pretti, Ythallo Rodrigues, Guto Parente, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti. O grupo produziu longas como Com os Punhos Cerrados (2014), Os Monstros (2011), Estrada para Ythaca (2010) e curtas como Às Vezes é Mais Importante Lavar a Pia do que Louça ou Simplesmente Sabiaguaba (2006 - https://vimeo.com/34032229), Azul (2007 - https://vimeo.com/10675417) e Cartaz (2008 https://vimeo.com/14678322). 

Preconceito – até quando? 

Embora tenha uma indústria consolidada, com uma gama diversificada de gêneros para todos os tipos de públicos, o cinema brasileiro ainda está envolto em preconceitos de vários tipos, que na realidade são os preconceitos arraigados na nossa sociedade. Afirmações do tipo “mas é filme brasileiro?”, “filme brasileiro só tem palavrão, violência e baixaria”, “filme brasileiro é precário e mal feito”, “filme brasileiro só mostra as misérias do Nordeste”, “filme brasileiro é chato”, ou a frase taxativa “não gosto de filme brasileiro”, ainda são comumente ouvidas por pessoas de todas as classes sociais. A maioria destas pessoas desconhece o que está sendo produzido no País e não se interessa por ver ou experimentar estas obras. 

É certo que há o descaso do circuito distribuidor e exibidor em relação ao nosso cinema, em parte devido ao baixo público, em parte devido à ignorância. Desta forma, muitos filmes importantes e de qualidade não chegam sequer à TV, quanto mais aos cinemas. Mas a arte do cinema e do audiovisual no Brasil está mais pulsante do que nunca, persiste e tudo indica que continuará evoluindo a passos largos.

*Artigo inspirado no curso “O Cinema Autoral Brasileiro Contemporâneo” ministrado pelo crítico Fernando Oriente no CineSESC em junho 2016


2 comentários:

Ana Rosa disse...

Artigo muito informativo no que se refere ao cinema contemporâneo. Pena mesmo que apenas uma minoria se arrisca e assim o preconceito quanto ao cinema nacional continua forte. Aliás, toda vez que alguém torce o nariz para um filme nacional que proponho e então pergunto quantos filmes nacionais essa pessoa viu nos últimos 10 anos, a resposta nunca passa dos dois.

João Moris disse...

Obrigado por seus comentários, Ana Rosa... realmente muita gente não gosta (e não conhece) o cinema nacional. É certo que alguns filmes são herméticos demais, mas talvez muita gente acha que é perda de tempo ou dinheiro assistir a um filme nacional "diferente" e prefere não arriscar. Mas, aos poucos vamos quebrando esse preconceito. Abs, João Moris