Sua Majestade a Memória


30.10.2016
Por Rianete Botelho



Trago Comigo, o mais recente filme de Tata Amaral, tem como pano de fundo a ditadura militar no Brasil, embora a história se passe nos dias atuais.

Vários cineastas brasileiros têm realizado filmes sobre aquela época, contribuindo para o processo de manutenção da memória de um regime opressivo, onde não havia liberdade de expressão, possibilidade de discordância política ou de manifestação de indignação, sob pena de prisão, tortura ou morte. A importância desses filmes não está - como alguns podem pensar - num prazer masoquista de ficar remoendo morbidamente o passado. Seu mérito está no papel que a memória histórica representa na constituição da identidade de um povo. Assim como a memória é fundamental na formação de cada individualidade humana, é através da conscientização do passado que um povo pode se reconhecer e avaliar seus erros e acertos. Isso o leva a ser mais vigilante, mais capaz de perceber a tempo a tomada de um caminho inadequado que poderá levá-lo a repetir erros antigos.


O filme se desenvolve a partir da montagem de uma peça teatral, cuja criação vai acontecendo durante os ensaios com um jovem elenco. Telmo, o diretor (Ricelli), sugere as situações em cima das quais a peça vai se desenvolvendo. Ele é um veterano profissional de teatro, que na sua juventude participou da luta armada contra a ditadura militar. A montagem vai se baseando nas suas lembranças da época da militância. O espectador percebe, então, que existe uma área apagada naquelas recordações, que se refere a uma mulher, Lia, da qual o diretor não se lembra de a ter sequer conhecido. Durante o processo criativo, a lacuna vai sendo preenchida e Lia é identificada não só como uma companheira de luta da mesma facção política de Telmo, como também como sua companheira de vida naquele período. A lacuna de memória certamente tem a ver com a dor e a culpa por Lia não ter sobrevivido à prisão. 

Embora o filme trate da perda da memória de um indivíduo, ele também nos leva à reflexão sobre a falta de memória coletiva, por parte de uma parcela da população brasileira, sobre o golpe ocorrido há cinquenta anos, envolvendo e alterando o rumo de um país por duas décadas.

Considero que a personagem principal de Trago Comigo é a memória. Sabemos da importância da memória para todos nós. Tudo o que vivenciamos é possível de ser esquecido ou lembrado. Normalmente esquecemos o que consideramos desimportante, ou, como no caso do filme, o esquecimento pode ser um recurso para nos defender do convívio com o que nos é insuportável. Também a memória pode desaparecer pelo recalque (processo inconsciente), mas a situação (verdade) recalcada não é eliminada e se manifesta em forma de sintoma neurótico. O neurótico expressa o recalcado através da compulsão à repetição do sintoma. A sociedade que suprime em nome da ordem, a revelação da experiência histórica das violações dos direitos contra o cidadão, tende a repetir a violência negada. Tentar apagar os fatos pode produzir sintomas sociais graves. Se a memória é fundamental para nossa vida psíquica, a memória histórica também o é para um país. O que se observa hoje no Brasil é que os jovens têm pouco ou nenhum conhecimento sobre o golpe de 64 certamente porque a classe dominante não tem interesse em divulgá-lo, ou, quando o faz - o golpe é apresentado como algo necessário na época e sem o peso do seu papel devastador, sob o pretexto de que o país estava sendo ameaçado pelo comunismo. No filme, essa desinformação fica clara quando durante os ensaios da peça, jovens atores fazem comentários alienados acerca do tema, irritando o diretor. 

Por isso é importante o resgate da memória daquele período, para que haja reflexão sobre sua origem, seu significado e o que ele representa para o país. Mas sobretudo, para que não se repita ou que seus resquícios perversos, deixem de ser encarados como procedimentos “normais”, muitos deles repetidos até hoje, como a tortura de presos ou a violência policial nas ruas que, embora ilegais, não tolerados e até considerados necessários por grande parte da população brasileira. Sabemos que a maioria da população carcerária é de jovens negros e pobres, sequela ainda da escravidão, que não foi suficientemente elaborada nos corações e mentes dos brasileiros. Outro resquício da escravidão é a exploração do trabalho doméstico que só recentemente passou a fazer jus aos direitos trabalhistas. Sabemos que as leis, embora necessárias, não garantem, por si sós, que, a partir de sua publicação (ou aprovação) ocorram as mudanças propostas. Assim, não bastou o fim do regime militar para que a democracia se instalasse em toda a sua plenitude. Ainda hoje lutamos pelo estado de direito, pela universalização dos direitos humanos, sobretudo agora que vivemos uma onda obscurantista (não só no Brasil). É assustador ver que essa situação tem favorecido que indivíduos e grupos enalteçam o regime militar, propondo sua volta como algo positivo e até desejável. Paira no ar uma ameaça às conquistas democráticas conseguidas a tanto custo. Parece estar havendo um retrocesso histórico que estimula o que há de pior na sociedade e na condição humana: extremismos (religiosos, políticos, raciais), exacerbando a bipolarização, que é um terreno fértil para a violência, em vez do diálogo. Nesse cenário, um lado vê o outro como inimigo cheio de defeitos e que merece ser punido ou até exterminado. Pessoas são agredidas só por terem posições políticas ou ideológicas opostas ao agressor. Com isso, o sonho de um país mais justo parece ficar mais distante. 

O pedido de volta dos militares ou a preferência significativa por políticos conservadores extremados parece representar um desejo infantil de ser dirigido por um punho forte (pai poderoso e severo) que toma as decisões sobre as quais não se pode questionar. Na verdade, essa delegação é uma dificuldade em assumir a responsabilidade sobre sua própria vida e as inevitáveis consequências certas ou erradas de suas escolhas.


O título do filme é muito significativo. Aparentemente ele se refere a uma espécie de jogo ou brincadeira, como proposta de compartilhamento. Ao revelar ao outro o “Trago comigo... (um sentimento, uma proposta, uma notícia, etc)”, eu estou dividindo com ele o que trago. Nesse momento, eu sou o que declaro trago comigo, pois é assim que eu me apresento ao outro. Acho que o título vai além desse jogo. Ele tem a ver, na verdade, com a questão da memória, que permeia todo o roteiro. Mesmo que não tenhamos consciência de tudo o que trazemos, temos conosco o nosso passado, nossos sonhos sonhados, nossas experiências, nossos desenganos. Mesmo quando nossa memória não é fiel aos fatos ocorridos, ainda assim trazemos conosco nossa interpretação. Até quando esquecemos, não é impossível que o esquecido possa eventualmente emergir. Trazemos a dor dos limites de nossa própria humanidade e a trágica clareza de nos sabermos incapazes de superá-los.

1 comentários:

Ana Rosa disse...

Um exemplo de reflexão boa de ler. Em especial, gosto da expansão do jogo "Trago Comigo". Parabéns, Rian.