As relações familiares e de gênero
no cinema brasileiro recente

18.09.2017
Por João Moris

Nos últimos anos, vários filmes brasileiros têm sido produzidos graças às leis de incentivo, à captação de verbas via editais, ao desenvolvimento de polos cinematográficos e de coletivos de cinema em muitas partes do país, ao aumento das plataformas de exibição e à crescente digitalização da filmagem. 

Apesar deste fôlego, o cinema nacional padece de males crônicos que fazem com que muitos filmes deixem de ser vistos e não alcancem o grande público. São problemas conhecidos, que vão desde a má vontade dos distribuidores, a hegemonia dos blockbusters no circuito exibidor, passando pelo preconceito de uma faixa do público, que não assiste a filmes nacionais afetando sua permanência nas salas de cinema, e medidas governamentais retrógradas que massacram a cultura do país, como o recente veto imposto pelo governo Temer aos incentivos previstos na Lei do Audiovisual. 

Neste cenário cada vez mais incerto, alguns filmes nacionais estão buscando dialogar com o grande público, sem abrir mão da qualidade e do conteúdo. Entre esses filmes, destaco quatro produções lançadas nos últimos meses e que guardam entre si muitos traços em comum: Fala Comigo de Felipe Sholl, Como Nossos Pais de Laís Bodansky, Mulher do Pai de Cristiane de Oliveira e O Filme da Minha Vida de Selton Mello. Não por acaso, estes quatro filmes foram debatidos por nosso Grupo Cinema Paradiso em reuniões quase sucessivas. 

Além de discutirem relações familiares e de gênero (sob a perspectiva mulher e homem), os quatro filmes têm em comum a delicadeza com que temas sensíveis são tratados, o olhar amoroso em relação aos personagens, o apuro técnico das produções e o senso estético aprimorado. 

Vale, portanto, ressaltar a importância destes filmes para a cinematografia brasileira atual:

Fala Comigo – O filme com a proposta mais transgressora entre os quatro tem como ponto de partida o solitário adolescente de 17 anos, Diogo (Tom Karabachian), que costuma ligar furtivamente para pacientes mulheres de sua mãe, que é psicoterapeuta, a partir dos cadastros que ela mantém em seu consultório. Sem nada dizer ao telefone, Diogo se excita e se masturba com a voz das mulheres para quem liga, até que um dia é descoberto por uma das pacientes, Ângela (Karine Teles, que dá um show de interpretação), quase 30 anos mais velha do que ele, com quem inicia um intenso romance. Uma história que poderia se tornar um tanto apelativa se não tivesse as mãos hábeis do diretor e roteirista carioca Felipe Sholl, que foi muito feliz na forma como abordou um tema ainda tabu na sociedade brasileira: o de uma mulher mais velha ter relacionamento com um jovem adolescente e que acaba sendo o estopim dos conflitos do filme. As cenas do relacionamento entre os dois protagonistas foram filmadas com muito bom gosto e cuidado, realçando não apenas o prazer entre o casal, mas também a sensação de liberdade que amar sem medo e sem culpa traz. Nesse sentido, o filme fala do despertar da sexualidade tanto do jovem quanto da mulher madura, que, sentindo-se deprimida e frustrada pelo fracasso de sua relação com o ex-marido, vê um mundo de descobertas surgir à sua frente e um novo sentido para sua vida no relacionamento com o jovem. Outra característica marcante deste filme provocador são os vínculos de confiança que se estreitam ou se desmancham entre Diogo e as pessoas ao seu redor (seu pai, sua mãe, sua irmã, seu melhor amigo e assim por diante) e que também fazem parte do seu processo de amadurecimento, sem moralismos ou “lições” edificantes típicos de filmes sobre a passagem de adolescentes para a vida adulta. Sem dúvida, um grande filme, que ganhou o prêmio máximo do Festival do Rio de 2016.

Karine Telles e Tom Karabachian em Fala Comigo

Como Nossos Pais - Mais um ótimo filme da diretora Laís Bodansky (que dirigiu Bicho de Sete Cabeças, As Melhores Coisas do Mundo, entre outros). Com um roteiro impecável da diretora e de Luiz Bolognesi, e apoiado por um elenco vigoroso (Clarisse Abujamra, Maria Ribeiro, Jorge Mautner, Paulo Vilhena etc), Como Nossos Pais não dá respostas fáceis às questões femininas e intergeracionais. O filme gira em torno da vida de Rosa (Maria Ribeiro), 38 anos, que está insatisfeita com o trabalho, com os rumos do seu casamento, com a relação com a mãe e que vê seu mundo ruir ao descobrir que ela é fruto de um caso extraconjungal. Rosa é o protótipo de muitas mulheres que vivenciam as profundas rupturas ocorridas na sociedade, a partir da década de 60, de forma intensa e conflituosa. De um lado, como ter o devido protagonismo numa cultura machista e patriarcal? De outro, como lidar com a sua idealização dos homens, do casamento, da vida a dois, do papel de mãe, sem tomar todas as responsabilidades para si? Laís Bodansky é uma excelente diretora de atores e seu olhar atento e sensível para as emoções e contradições das personagens levam o espectador a uma identificação imediata com as situações apresentadas no filme. Não há nada piegas ou complacente na maneira como ela lida com a personagem Rosa (que várias vezes é retratada como irritante, temperamental ou à beira de um ataque de nervos) ou com a personalidade antagônica e a doença terminal da mãe (Clarisse Abujamra). Os cinco homens que cruzam a vida de Rosa (seu marido, seu pai de criação, seu pai biológico, o caso extraconjugal e seu irmão) têm um tratamento um tanto estereotipado no filme, ainda que sejam amorosos. De qualquer forma, a diretora deixa claro sua opção em tratar da condição feminina e das várias gerações de mulheres que transitam pelo filme. E aponta para novas possibilidades de as futuras gerações lidarem diferentemente com as situações colocadas através da presença da adolescente Caru (Antonia Baudouin), meio-irmã de Rosa, que desafia as convenções e age como uma espécie de radar da hipocrisia dos personagens. A escolha de não incluir a versão cantada do clássico “Como Nossos Pais”, de Belchior, na trilha sonora do filme foi muito acertada e deu um toque sublime à cena em que a música é tocada ao piano. Um filme para ver, rever e ter muitas conversas a respeito.

Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra em Como Nossos Pais

Mulher do Pai – Outro filme sobre relações familiares, dirigido pela jovem diretora gaúcha Cristiane de Oliveira. Estreia sensível, com um olhar para as nuances nas relações entre os personagens. Conta a história da adolescente Nalu (Maria Galant), que mora num sítio nos confins do Rio Grande do Sul com seu pai cego Ruben (Marat Descartes) e a mãe deste. Com a morte súbita da avó, Nalu se vê obrigada a cuidar do pai, com quem a princípio mantém um relacionamento distante, mas que com a intimidade entre os dois, um turbilhão de emoções (ciúme, raiva, amor, empatia, insegurança e até atração) emerge entre eles. Esta é a parte mais interessante do filme. Mas, o surgimento de uma terceira personagem – a professora de Nalu, Rosário (Veronica Perrotta) – irá desencadear outros desdobramentos na relação pai-filha. A entrada desta personagem um tanto conciliadora na trama tira a força do filme. A diretora parece ter optado por colocar alguém que veio apaziguar a relação entre o pai e a filha, servindo tanto de cuidadora de um como mentora da outra. Muito óbvio e pouco ousado. De qualquer forma, a diretora Cristiane de Oliveira é uma promessa a ser observada de perto no cinema nacional. Um detalhe: além da diretora, a equipe técnica principal do filme é composta por mulheres, o que talvez traga um olhar mais “feminino” ao filme, sem, contudo, levantar bandeiras feministas ou apelar para clichês de gênero. Mulher do Pai foi premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio de 2016.

Marat Descartes e Maria Galant em Mulher do Pai

O Filme da Minha Vida – Amparado por uma enorme campanha de marketing, o novo filme de Selton Mello estreou no início de agosto com grande expectativa por parte do público que se entusiasmou com o filme anterior do ator-diretor, O Palhaço, de 2011. Mas, mesmo com a fotografia do mestre Walter Carvalho, uma produção caprichada com bela reconstituição de época (o filme se passa em 1963 na serra gaúcha) e boas interpretações (com o excelente ator francês Vincent Cassell totalmente desperdiçado), o filme não entrega o que promete. O que teria dado errado? Baseado em um romance do autor chileno Antonio Skármeta, o mesmo que nos deu a história de O Carteiro e o Poeta, o filme narra a trajetória do jovem Tony Terranova (Johnny Massaro), de 20 anos, que após voltar formado para sua cidadezinha natal, descobre que o pai de origem francesa, por quem tem grande admiração, abandonou inesperadamente o lar e voltou para a França. O filme se apoia no tripé da memória da infância de Tony e sua obsessão pelo reencontro com o pai, na sua paixão pelo cinema e na descoberta (tardia) do amor/sexualidade, embalado por um clima de nostalgia e muitos clichês. Talvez pela indefinição entre criar uma atmosfera onírica ou realista, o filme acaba sendo permeado por um tom artificial que beira o folhetinesco. É difícil entender porque um jovem de 20 anos, com os hormônios à flor da pele, que estudou na cidade grande, volta virgem e inexperiente e vai fazer sua iniciação sexual num bordel da cidadezinha, sendo que o filme mostra várias jovens sensuais à sua volta. A cena do encontro entre Tony e o pai na porta do cinema, que seria um dos pontos altos do filme, foi um anticlímax total. O personagem Paco (Selton Mello) parece forçado. Nem a paixão de Tony pelo cinema emociona e fica solta na trama. Apesar de ter uma bela trilha sonora, há um excesso de músicas e elipses temporais contraditórias das músicas escolhidas, muitas lançadas depois da época em que o filme se situa. Para completar, Tony faz um resumo do enredo do filme para a mãe no final, subestimando a inteligência do espectador. Nas entrevistas que Selton Mello deu durante a campanha de lançamento, disse que o filme é como um bombom que ele quis dar de presente aos brasileiros nesta hora em que o país atravessa um momento tão difícil. Parece que ele fez escolhas muito bem calculadas em relação ao tipo de público que deseja alcançar com o filme e não quis ousar. Mas, o filme tem um bom apelo e certamente encantará a muitos. Uma bela embalagem, sem dúvida, para um presente com pouco conteúdo.

Vincent Cassell em O Filme da Minha Vida

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