Memórias de um jovem cinéfilo nas salas do
centro de SP nos anos 60 e 70

17.04.2018
Por João Moris

“O Cinema nos dá a oportunidade de sermos ao mesmo tempo avós e netos,
enquanto que na vida não podemos ser ambos ao mesmo tempo” (Abbas Kiarostami)

Um dos filmes exibidos na edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários deste ano, Quando as Luzes das Marquises se Apagam – A História da Cinelândia Paulistana, de Renato Brandão, evocou muitas memórias afetivas da minha formação cinematográfica quando criança e adolescente. Até os 20 anos, eu morava em Santo André e, nas décadas de 60 e 70, cresci indo ao cinema. Embora muitos filmes lançados em São Paulo também fossem lançados quase que simultaneamente em Santo André (principalmente nos lendários cinemas Tangará e Carlos Gomes), para mim era um acontecimento vir aos cinemas do centro de São Paulo com meus pais e a família de cinco irmãos na década de 60. A partir dos 15 anos (1972), passei a vir sozinho aos cinemas de São Paulo. 

Lembro que minha saudosa irmã mais velha, Zina, me levou para assistir a dois filmes do Jerry Lewis no Cine Bruni nos anos 60: O Fofoqueiro (1967) e De Caniço e Samburá (1969). Eu adorava os filmes do Jerry Lewis, mesmo os que não eram tão engraçados, como esses. Este cinema, situado na R. Dom José de Barros, era o local do antigo Cine Jussara, sala muito importante da Cinelândia Paulistana nos anos 40 e 50, e transformou-se em Cine Dom José nos anos 70. Hoje, é um dos poucos cines pornôs que restaram no centro da cidade. 

No também lendário Cine Paissandu (quem não se recorda daquele painel gigante no hall de entrada e daquelas intermináveis escadarias que levavam à sala?), escondido no Largo Paissandu, lembro que minha irmã me levou para assistir ao filme com a Jane Fonda e Robert Redford, Descalços no Parque (1967). Veja esta dupla de atores em cenas do filme: https://www.youtube.com/watch?v=tJDXVAYlI4Q.

Lembro também com carinho do luxuoso Cine Regina, na Av. São João, onde assisti ao engraçadíssimo Um Convidado Bem Trapalhão (1968), com Peter Sellers, que estava impagável como o indiano que entra por engano numa festa chique de Hollywood e apronta todas. A plateia vinha abaixo de tanto dar risada! Também foi neste cinema que, em 1976, assisti ao filme 007, O Espião Que Me Amava, com aqueles incríveis créditos iniciais, que jamais esqueci, embalados ao som da Carly Simon cantando “Nobody Does It Better”. Aqui, os créditos iniciais: https://www.youtube.com/watch?v=Wy-c8aAntWA

Ao longo dos anos 70, os filmes que passavam no imponente Cine Ipiranga, na Av. Ipiranga, faziam dobradinha com os filmes do Cine Astor no Conjunto Nacional na Av. Paulista, então despontando como polo cultural da cidade. Assim, assisti a vários lançamentos no Ipiranga, um cinema de quase 2.000 lugares cujas filas dobravam a Av. São João. Foi ali que vi O Expresso da Meia Noite (1978), que foi liberado com cortes pela censura da época e causou um profundo impacto nas plateias. Também nesta sala assisti ao filme brasileiro A Dama do Lotação (1978), com a Sonia Braga, que também causou furor. E foi no Ipiranga que vi O Iluminado (1980), do diretor Stanley Kubrick, que me deixou arrepiado. Como esquecer aquela cara psicótica do Jack Nicholson tentando matar a mulher e o filho num hotel perdido nas montanhas nevadas? Ainda no Ipiranga, em 1981, assisti a um dos meus filmes favoritos de todos os tempos, A Laranja Mecânica (1971), também do Stanley Kubrick. O filme tinha, enfim, sido liberado sem cortes e sem aquelas ridículas bolinhas pretas sobre os genitais dos personagens, que a censura havia imposto em 1979. A cena inicial do filme é impactante e até hoje imbatível:

O Cine Comodoro, na Av. São João, foi onde eu e várias pessoas da minha geração tivemos as experiências cinematográficas mais intensas. Este cinema era um arraso! A começar da tela que tinha uma curvatura acentuada, media 7 metros de altura por 20 de comprimento e era coberta com uma imensa cortina colorida. O som “estereofônico” do cinema também era algo impressionante para a época. O Comodoro era o único cinema no Brasil equipado com projetores adequados para passar filmes de bitola 70mm (em vez de projeção em 35mm, que era o padrão). Assim, assistir a um filme naquele cinema era uma experiência multissensorial. Um dos filmes mais marcantes da minha infância foi assistido no Comodoro: O Calhambeque Mágico (1967). E quem não se lembra desta trilha sonora? https://www.youtube.com/watch?v=-P2jiRPlq2U. Também me recordo de ter assistido nesta sala a um filme que me encantou: O Segredo de Santa Vitória (1969) com Anthony Queen e Anna Magnani. Sem dúvida, o filme que mais marcou minha vida e era muito reprisado neste cinema foi 2001, Uma Odisseia no Espaço (1968), que este ano completa 50 anos do seu lançamento. Este filme icônico foi rodado em 70mm por Stanley Kubrick (até hoje meu diretor predileto!) e a projeção no Cine Comodoro caía como uma luva. A cena da espaçonave girando na órbita da Terra ao som de “Danúbio Azul” é considerada uma das mais espetaculares da história do cinema:
https://www.youtube.com/watch?v=xyjOjT8d8RI. Imagine o assombro que era ver um filme desta magnitude na tela gigante do Cine Comodoro. 

Na mesma Av. São João, bem em frente ao Cine Comodoro, tinha o CineSpacial. Foi inaugurado em novembro de 1971 e prometia revolucionar as salas de cinema da Capital. Era um projeto realmente inovador, pois o cinema tinha formato circular com um projetor central e três telas de exibição simultâneas. Foi aberto com grande estardalhaço e eu, às vésperas de completar 14 anos, tinha de conhecer este cinema. Pedi à minha mãe de presente de aniversário que me levasse para assistir ao filme de inauguração. Minha pobre mãe me trouxe de trem de Santo André para assistir a um filme francês cabeça, proibido para menores, Stephane, a Mulher Infiel (1969), do grande diretor Claude Chabrol, que eu nem tinha ideia quem era. Mas, adorei conhecer o cinema!

Por falar em filme cabeça, havia no centro da cidade três cinemas que exibiam os grandes filmes de arte europeus e internacionais da época: o Cine Coral, na R. 7 de Abril, o Cine Arouche (antigo Pigalle), no Largo do Arouche, e o Cine Bijou, na Praça Roosevelt. O pequeno Cine Coral era considerado um ponto de encontro de artistas e intelectuais dos anos 60, mas passei a frequentá-lo apenas nos anos 70. Lembro que nesta sala assisti a clássicos como Alphaville (1959), do Godard, o filme mais bergmaniano do Woody Allen, Interiores (1978), que adorei e vi duas vezes, e O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino, com Robert de Niro e Christopher Walken, grande sucesso da época que chegou a ser brevemente censurado, mas liberado logo em seguida. No Cine Arouche, lembro de assistir ao filme soviético Solaris (1972), de Andrei Tarkovsky, que era considerado uma resposta ao 2001 e mexeu com minha cabeça. É um filme denso e tive de assisti-lo várias vezes para tentar captar a mensagem. Também no Cine Arouche, assisti a um dos grandes clássicos italianos dos anos 70, A Comilança (1973), de Marco Ferreri. O filme chegou a ser proibido pela censura por alguns anos. Conta a história de quatro amigos hedonistas (ninguém menos do que Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazzi e Philippe Noiret) que se trancam numa mansão num fim de semana e se entopem de comer até morrer. Veja o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=bCxcjIXWMd4

O minúsculo Cine Bijou era o cinema que mais desafiava a censura da época e exibia filmes que não passavam em circuito comercial. O cinema conseguiu uma liminar especial de “cinema de arte” para exibir os filmes proibidos pela censura. Cabe ressaltar que a censura chegou a proibir ou a cortar muitos filmes na década de 60 e 70. Vários filmes eram mutilados e não restava outra alternativa aos cinéfilos a não ser assisti-los “com cortes”. No Bijou, que se tornou a joia da cinefilia paulistana, vi filmes como Sob o Domínio do Medo (1971), a obra ultraviolenta do cultuado diretor Sam Peckinpah, O Sistema (1972), um estudo sombrio sobre o sistema penal americano, Corações e Mentes (1974), documentário contundente sobre a Guerra do Vietnã, e o filme escatológico do italiano Ettore Scola, Feios, Sujos e Malvados (1976). Veja o trailer deste filme: https://www.youtube.com/watch?v=AJYSBOM8pnI

Não poderia terminar meu artigo sem mencionar as pornochanchadas e os filmes pornográficos, que fizeram parte da cinefilia brasileira das décadas de 70 e 80 e também da minha iniciação cinematográfica. Por seu caráter irreverente típico brasileiro e com cenas veladas de sexo, muitas pornochanchadas também foram cortadas pela censura da ditadura militar. Durante os anos 70, a maioria dos cinemas do centro foi dividida em duas salas para sobreviver à crescente queda de bilheteria e exibia as pornochanchadas, que eram altamente lucrativas. O grande “templo” deste tipo de filme era o Cine Marabá na Av. Ipiranga, que com seus quase 1.700 lugares atraía todos os tipos de público. Lembro-me de assistir no Marabá lotado ao filme Dezenove Mulheres e um Homem (1977), com David Cardoso, que era o galã das pornochanchadas. Veja um trecho deste filme: https://www.youtube.com/watch?v=Vvk0iSFDNoU.

Um dos cinemas mais luxuosos da Cinelândia Paulistana era o Cine Marrocos na R. Conselheiro Crispiniano. Inaugurado em 1952 e com capacidade para 1.870 pessoas, o cinema era palco de muito glamour, grandes estreias e dos primeiros festivais de cinema da cidade. A decadência do cinema se deu a partir dos anos 80, com o afrouxamento da censura e a liberação de filmes de sexo explícito, quando a sala passou a exibir filmes pornôs. Lembro-me de ter assistido ali a um dos filmes pornográficos mais polêmicos de todos os tempos e, por isto mesmo, muito cobiçado pelos brasileiros daquela época: Garganta Profunda ou Deep Throat (1972). O filme, descrito como “O Poderoso Chefão do cinema erótico”, só foi liberado no Brasil 10 anos após a sua estreia mundial. Para minha felicidade, o Cine Marrocos exibiu o filme em seu telão sem cortes. Veja o trailer do filme (liberado para maiores!): https://www.youtube.com/watch?v=HC01h7zgHzY

Estes e muitos outros cinemas e filmes marcaram a minha história pessoal e de muitas pessoas na chamada Cinelândia Paulistana, na área central da cidade. Era uma época em que, nas palavras de um dos entrevistados do filme de Renato Brandão, as pessoas saíam de casa para ir ao cinema e também para ver o filme. Hoje, as pessoas só vão ver o filme, pois as salas de cinema (a maioria multiplex em shoppings) há muito deixaram de ser espaços ritualísticos e de encontro das pessoas.

CINEMAS DO CENTRO DE SP A PARTIR DA DÉCADA DE 50
(Todos foram fechados ou demolidos, com exceção do Cine Marabá, único cinema que exibe filmes comerciais no centro da cidade hoje, e dos cines Arouche e Dom José, que só passam filmes pornôs) 

América (antigo Cine Europa)
Arcades
Atlas (antigo Cine Esplanada)
Arouche (antigo Cine Pigalle)
Art Palácio (antigo Cine Ufa-Palace)
Augustus (antigo Cine Capital)
Áurea
Avenida
Barão
Bijou
Broadway
Cairo
Central
Cine Rio Branco
CineSpacial
Comodoro
Copan
Coral
Dom José (antigo Cine Jussara e Cine Bruni)
Eden
Gazetinha Centro (R. Aurora)
Globo
Ipiranga
Marabá
Marco Polo
Marrocos
Metro
Metrópole
Normandie (depois tornou-se Cine Bretagne)
Olido (antigo Cine Boulevard)
Ópera
Ouro (antigo Cine Bandeirantes)
Paissandu
Paratodos
Premier (antigo Cine Mônaco)
Regina
República
Ritz (antigo Cine Rivoli)
Saci Windsor

2 comentários:

Vera Moris disse...

João é muito gostoso voltar atrás no tempo e rever alguns títulos que na época também assisti, embora minha história seja compartilhada com você em alguns itens apenas pois você sempre foi avant garde nesse quesito de cinefilia... E gostei demais de escutar as musicas, e assistir alguns traillers. Seu relato é de uma riqueza admirável que deixa saudade, de fato!

Unknown disse...

Muito show. Parece q os cinemas daquela epoca eram melhores q os de hoje