Ganharás o pão com o suor do teu rosto

20.08.2018 
Por Rianete Lopes Botelho

O filme Paraíso Perdido, de Monique Gardenberg, se desenvolve em torno de um cabaré, onde a chamada “música brega” ou de “dor de cotovelo” é a atração principal. Seu proprietário (Erasmo Carlos) é um ex-professor cuja mulher foi presa política e desapareceu durante a ditadura militar, no Brasil. José – este é seu nome – mora com um casal de filhos e um casal de netos. A filha de José, Eva (Hermila Guedes), acaba de cumprir 20 anos de prisão por ter assassinado, quando grávida, o pai de seu filho que o espancava. O menino (Jaloo) foi criado pelo avô e é uma dragqueen que, por essa condição, é alvo de agressões na rua. Ângelo (Júlio Andrade) é o filho de José, que abandonou a mulher por tê-lo traído, continua apaixonado por ela, e vive se recriminando por não ter sido mais tolerante. Ângelo criou a filha do casal. A contratação de um policial (Lee Taylor) como guarda-costas da boate é um importante elemento no desenrolar do filme, que leva a revelações surpreendentes.


Merece atenção especial a trilha sonora. Todas as músicas (lindas!) têm sintonia com os desacertos e dores humanas. Esse gênero de música tão visceral é muito expressiva do sofrimento de quem tem o coração cheio de mágoas. Todos nós conhecemos essa dor regressiva, cuja manifestação, às vezes, pode parecer ridícula aos outros. Assim como conhecemos o quanto a vivência de uma grande paixão pode nos tornar também ridículos. Talvez porque nessas ocasiões revivamos nossas primeiras experiências afetivas, onde morreríamos se elas nos faltassem. 

O filme é uma amostra significativa da complexidade humana e de sua trágica condição de orfandade. Mas ele, na verdade, não trata especificamente dessa questão que tem acompanhado a história humana em todos os lugares e em todos os tempos. Creio que o filme enfoca o quanto é difícil para nós lidar com as consequências de nossas escolhas. A referência à perda do paraíso celeste é o ponto de partida para essa reflexão.

De acordo com o mito cristão, a desobediência de Adão e Eva (provando o fruto proibido da árvore do Bem e do Mal) ocasionou sua expulsão do paraíso e a perda da inocência, da proteção e da plenitude desfrutada no Éden. A humanidade adquiriu, assim, o livre arbítrio, não só podendo fazer suas escolhas, mas também tendo que ser responsável por elas. E aí começaram as dificuldades, porque nem sempre nossas escolhas são acertadas. E, então, o sofrimento passou a fazer parte da vida do homem, que, até então, só conhecia prazer e bem-estar. 

Parece que até hoje a maioria de nós ainda não conseguiu se adequar ao convívio simultâneo com o bem e o mal dentro e fora de nós, o que só aumenta nossas agruras. Na tentativa de fugir dessa dificuldade negamos o mal que existe em nós e o atribuímos ao outro, projetando nele tudo o que não reconhecemos em nós, sem nos dar conta de que, com isso, estamos aumentando o poder destrutivo do outro, pois ao lhe fornecermos mais munição o tornamos um inimigo mais poderoso, contra o qual precisamos investir muito mais energia na tarefa de defesa. Viver assim é desalentador, porque não nos sobra forças nem tempo para usufruir das coisas boas que a vida tem. Ao delegar ao outro tanto poder maléfico, nós o transformamos em um algoz que impede nossas realizações e o culpamos por nossos fracassos ou erros. No Éden, Adão culpou Eva pelo pecado original, a qual, por sua vez, culpou a serpente. Todos nós conhecemos casais infelizes (mas que permanecessem juntos), onde um dos parceiros acusa o outro pela sua infelicidade, por tê-lo impedido de realizar seus sonhos.


No Jardim do Éden os horizontes eram estáveis. Ao romper com essa estabilidade, o homem se jogou no desconhecido, onde não há certezas, mas riscos. E ele descobriu que administrar a própria vida e principalmente as relações interpessoais, são tarefas muito árduas para um simples mortal. 

A liberdade trouxe também consigo a conscientização da passagem irreversível do tempo, da finitude humana e de sua vulnerabilidade. Então, ele se deu conta de que ele é menor que seus sonhos.

Tudo isso veio em decorrência do veredito divino: “Parirás com dor” e “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”, que levou o homem a se defrontar com sua limitada humanidade. Assumir que não somos semi-deuses nos ajudaria a suportar melhor a não realização de um desejo, que deixaria de ser um imperativo para ser apenas uma possibilidade, sem que isso significasse uma tragédia.

Ao refletir sobre as consequências da perda do paraíso, não posso deixar de pensar na questão do desenvolvimento do bebê, que, após a expulsão do “paraíso uterino” entra em contato gradativo com a realidade externa. Respirar fora do corpo da mãe é o primeiro ato de autonomia do bebê. Ao conseguir lidar com a situação edipiana, ele poderá ir perdendo sua onipotência e seu narcisismo – tão necessários à sua sobrevivência no início da vida – em favor do princípio de realidade. Isso significa passar a conhecer suas limitações e as de seus pais e entender que, por mais que se esforce, jamais será perfeito ou completo. Viver implica em conviver com a falta, com a incompletude, com a castração. Essa interdição tácita na verdade nos liberta, pois só assim podemos ter fantasias à vontade, sem que necessariamente elas se realizem. Podemos até fantasiar sobre a morte de alguém, sem que isso signifique que o mataremos. Aprendemos que nossos desejos não têm o poder de realização, porque não somos onipotentes. A constatação da nossa incompletude (castração simbólica) é o que nos move em busca de aprendizagem, de conhecimento, de melhoria. Quem continua se acreditando onipotente, perfeito, se basta a si mesmo, porque se considera completo. É o dono da verdade. 

O filme não apenas mostra as dores decorrentes da perda do paraíso. Ele também mostra a probabilidade de amar, de ter alegrias, prazeres e até exorcizar as mágoas cantando. E que apesar da perda do mundo mágico infantil e da dificuldade em sobreviver após a queda do paraíso, é possível conviver em harmonia, apesar das diferenças. Há respeito e tolerância (até excessiva!) entre os personagens. Também o filme acena para a possibilidade de reparação do que estragamos (muitas vezes por conta da vaidade ferida ou da nossa dificuldade em perdoar).


Como não é fácil lidar com os atropelos da vida, nem todo mundo consegue sua parcela de felicidade, porque as pessoas reagem diferentemente aos embates. No filme, Ângelo não consegue viver satisfatoriamente o presente por não poder se livrar das lembranças da mulher que ele abandonou. Parece que as feridas do passado não cicatrizaram, não deixando espaço para novos investimentos afetivos. Já Eva, sua irmã, lidou de forma diferente com a violência pela qual passou e continuou aberta a outras experiências amorosas, procurando viver o dia a dia com os dados atuais. Ela pagou sua dívida não só com a sociedade, mas também com seu passado, não permitindo que ele paralisasse sua vida.

É inegável que parte da humanidade tem feito bom uso de sua autonomia promovendo criativamente o desenvolvimento científico e tecnológico, assim como no empenho em criar um mundo melhor para todos. Mas a dor da nossa orfandade é uma grande ferida narcísica, que conduz às guerras que se repetem ao longo da História, às ditaduras, às perseguições étnicas e religiosas que levam à crueldade das emigrações forçadas, à exploração dos mais fracos... Não podemos ser livres com saudades do paraíso perdido, porque não é possível ter as duas coisas. Enquanto não nos desligarmos da nostalgia do paraíso perdido, não estaremos aptos a lidar com a vida real.

1 comentários:

Lélia Costa disse...

"Enquanto não nos desligarmos da nostalgia do paraíso perdido, não estaremos aptos a lidar om a vida real."
É vero! O presente precioso é viver o tempo presente!
Belo texto e muito boa a análise.
Um filme poético!