Culpa - o suspense passa pelo ponto de
vista de um único personagem

02.01.2019 
Por Luiz Zanin Oricchio (Estadão Conteúdo) 

O dinamarquês Culpa, de Gustav Möller, surgiu na Mostra de Cinema de São Paulo como um desconhecido completo. Aquele tipo de filme sobre o qual não havia referências mas que, por sua originalidade, acabou agradando aos cinéfilos. Provocou um boca a boca interessante e, por fim, ganhou o privilégio de um lançamento no circuito comercial. 

É um filme estranho – no bom sentido do termo. Totalmente focado na pessoa de um policial, Asger Holm (Jakob Cedergren), que atende a chamadas de emergência numa delegacia. A proposta de Möller é circunscrever uma intrincada história à intervenção de um único protagonista, sentado em sua cadeira, com um telefone preso ao ouvido e os olhos pregados numa tela de computador.


Nessas condições, Holm recebe uma série de telefonemas mais ou menos rotineiros, com brigas de casais, por exemplo. Mas, quase no fim do plantão, pinta uma emergência de fato. Uma mulher telefona dizendo estar sendo vítima de um sequestro e tem sua vida e a de sua filha pequena ameaçadas.

Há aí uma aposta arriscada – e que neste caso parece vencedora. Möller deposita suas fichas na eficácia de um “dispositivo” que, a priori, teria tudo para fracassar. Cria um suspense que passa, quase unicamente, pela subjetividade e pela voz de um personagem. No caso, o policial Holm.

O filme poderia naufragar no tédio. Poderia tornar-se insosso, ou sufocante demais. Mas, não. O suspense criado se adensa e jamais perde o pique ou o ritmo. Pelo contínuo da ação (que sempre se passa em off, fora das vistas do espectador), ficamos sabendo muita coisa. Da vítima, mas também do próprio Holm. Sem adiantar muita coisa, aos poucos conhecemos sua atividade pregressa, sendo ele um policial acostumado à ação, nas ruas e, agora, por um problema surgido, confinado aos plantões solitários.

Provavelmente somos conquistados pela precisão do roteiro. Talvez também pela sóbria, porém intensa, interpretação do ator Jakob Cedergren, que compõe um Asger Holm cheio de matizes e de mistérios que nunca se desvelam por completo ao espectador.

Enfim, como ele, ficamos confinados a uma sala de plantão policial durante uma noite que parece interminável e às voltas com um caso cuja complexidade só faz crescer ao longo do tempo. É possível que surja daí a identificação com o policial, homem de ação, porém impedido de realizá-la.

Como se Möller propusesse uma espécie de quebra-cabeças, em que a intervenção em uma situação crítica da vida real só pudesse ser feita através da palavra. É com o que diz, mas também com o que ouve, vê e deduz, que o policial Holm tentará evitar um desfecho trágico para uma crise familiar que chegou ao seu limite.

Essa espécie de disciplina autoimposta conduz Culpa a uma espécie de depuração dos meios cinematográficos. Como se o diretor voluntariamente abdicasse dos recursos de que facilmente disporia e se limitasse ao mínimo dos mínimos: um ator, uma locação, uma câmera que registra quase apenas closes do intérprete. No entanto, a coisa funciona. E como funciona.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

A proposta é que as pessoas amigas do Grupo Cinema Paradiso coloquem nos comentários as suas impressões. O artigo de Luiz Zanin Oricchio foi escolhido como disparador desse debate.

4 comentários:

Alexandre Guimarães disse...

Como a Critica do Zanin Oricchio ressalta, o filme Culpa segue o caminho da perigoso da criatividade para contar a sua história, e se poderia acrescentar, para fazer a sua reflexão sobre a questão que aborda. É uma direção bem diferente de outro filme em cartaz, O Confeiteiro, que apresenta também questões interessantes, mas através de uma fórmula segura, como uma receita de bolo tadicional, como as as do floresta negra, de que o seu personagem principal é exímio. Nos primeiros dez minutos ou após assistir ao trailer do filme, sabemos tudo o que vai ocorrer e recebemos nosso quitute previsível ao final da história. Aqui em culpa a receita é bem mais criativa e arriscada, pois a trama toda se passa em apenas duas salas contíguas. Mesmo assim, o filme consegue eletrizar o espectador utilizando os seguintes elementos : 1 - a mudança de planos cada vez mais próximos de acordo com a tensão e a reflexão do personagem. A câmera logo de início focaliza o seu ouvido e indica que o que ele vai escutar dirigirá a narrativa. A troca de planos é muito orgânica e ressalta a bela interpretação do ator principal. 2 - A locomoção nervosa do ator principal através dos ambientes. Logo percebemos através da sua movimentação aflita que ele não se sente bem naquele ambiente confinado. Excelente a cena da aspirina, o personagem vai ao bebedouro coloca a água no copo, coloca a aspirina na água e se perde em reflexões e nos perdemos com ele. O outro policial bate em suas costas e avisa que o telefone está chamando, levamos o mesmo susto que o personagem principal e o outro policial nem é identificado. 3. Alternância entre claridade e escuridão. Esse elemento de construção da narrativa é muito bem trabalhado quando o personagem principal sai da sala principal e vai até a sala escura continua. A escuridão toma conta do personagem principal quando ele quebra as regras da sociedade em nome de justiça e acaba caminhado em direção à barbárie e à violência, como ele já fez em momento anterior ao filme e, em consequência disso, será julgado no dia posterior. É a esse movimento que ele se entrega novamente, por culpa, principalmente quando se encaminha para a sala escura privativa em que pode continuar escutando os telefonemas da emergência. Ele quebra todas as regras, é ríspido com a policial que dever ser a sua chefe, embora se desculpe depois, decide que vai ficar além do horário, pede para o parceiro invadir o apartamento do "suspeito". A escuridão, em contraste é muito bem trabalhada em todos os momentos em que o personagem se perde em sua estratégia policialesca, ele inclusive fecha todas as janelas. Foi muito boa a ideia de ele arrebentar o telefone e o computador da sala privativa, pois ele só poderia atender o telefonema de sua redenção, em uma sala totalmente clara, em contraste da escuridão do outro aposento, quando ele percebe que é humano e falho e que que precisa trabalhar o perdão a si e aos outros, para salvar a mãe assassina do suicídio. No final do filme ele caminha em direção à claridade do mundo exterior, conversa ao telefone não sabemos com quem, mas o que sabemos com certeza é que ele aprendeu alguma coisa...

Adeliana Bataiote disse...

Fiquei impactada com o filme Culpa, pelo inusitado da forma e do conteúdo. Usando recursos aparentemente simples (uma única locação, interior da sala de um serviço de Emergência), basicamente um único personagem central visível, acompanhamos um dia de trabalho na vida do policial Asger Holm, desde a aparente banalidade de um serviço previsível e repetitivo - que executa a contragosto -, até a busca da redenção de um ato pretérito que o atormenta. E, como o intérprete, somos também conduzidos a conclusões equivocadas do caso de fato urgente que ele atende naquele dia. Inicialmente frio e até certo ponto aborrecido, o personagem vai mudando lentamente ao atender o pedido de socorro de uma mulher, supostamente sequestrada e sob risco de ser assassinada por um marido (ou ex marido) raivoso. A primorosa direção de Gustav Möller nos coloca literalmente na cadeira do policial, e os closes cada vez mais próximos com o desenrolar da história, transferem para o espectador a tensão crescente do personagem, sua atuação ao mesmo tempo profissional e fora dos cânones, onde faz todo o possível (extrapolando muitas vezes o que lhe compete como policial, e derrapando outras tantas na ética) para conseguir um desfecho positivo para o drama da mulher que está tentando salvar.
Gustav Möller, amparado pela ótima atuação de Jakob Cedergren (o intérprete do policial Asger), constrói um personagem carregado de nuances e contradições, ao mesmo tempo duro - como nas cenas em que se irrita com a atendente do serviço auxiliar, com quem fala ao telefone, ou com a cidadã que pede ajuda após uma queda de bicicleta -, e afetuoso - quando fala com a criança filha da mulher supostamente sequestrada. Entramos na história do também atormentado Asger, policial que em algum momento que apenas intuimos, agiu de modo absolutamente reprovável, que busca no presente reparar o erro cometido. Não nos é dado saber se na ação do passado Asger agiu levado por conclusões precipitadas com consequências trágicas, mas a história presente, que conduz a narrativa, deixa isso muito claro. O desfecho surpreendente - até para o próprio personagem do policial! - diz com letras garrafais que as conclusões a que chegamos apressadamente, solitários e protegidos por uma tela, embasados em nosso singular arbítrio, podem desembocar em tragédia.
Estamos diante de um filme incomum, primeiro longa do diretor dinamarquês, ao qual se assiste com tensão e prazer incomuns.

claudia.mogadouro@gmail.com disse...

Filmaço este! Gostei muito dos comentários do Alexandre e da Adeliana. Eles já ressaltaram a maestria do diretor de nos deixar grudados na tela, tendo um único personagem e uma única locação. Então, vou falar de outras coisas. Li na crítica de Amanda Martinez (do site Cine Festivais: http://cinefestivais.com.br/criticas/culpa-de-gustav-moller/) que o título original em alemão quer dizer "O Culpado". Achei esse dado importante, porque o que mais me pegou no filme foi a atitude preconceituosa do arrogante policial, já notada nos primeiros telefonemas que ele atende. Ele julga a todos, sendo que ele não é apenas uma pessoa que julga com pré-conceito. Ele tem o poder da polícia. Ele tem armas. Pensando no título original, ficamos pensando "quem é o culpado?" o ex-marido? a moça? o próprio policial que responde a um processo? Esse filme me lembrou um outro que nós discutimos no grupo cinema paradiso e eu gostei muito "Segunda Chance", da também dinamarquesa Susane Bier. O policial protagonista também se sente superior, mais equilibrado que os outros e trata a quem ele atende de forma preconceituosa. Uma das qualidades desses filmes (pra mim) é o quanto eles nos mostram o nosso próprio preconceito, porque nós também embarcamos no equívoco... Por enquanto, é isso que eu tenho a dizer... Abraços

Grupo Cinema Paradiso disse...

COMENTÁRIO DE CRISTINA COSTA
Trata-se de um filme revolucionário que transgride toda uma tradição cinematográfica. Não é um filme para ser visto, mas imaginado - Asger Holm é um policial afastado das ruas que aguarda julgamento por um ato que culminou com a morte de uma pessoa (mas isso só ficaremos sabendo ao final do filme). Enquanto isso, fica recluso em uma sala onde recebe solicitações de ajuda da polícia por telefone de cidadãos em dificuldades. O filme avança na medida em que ele recebe chamadas de uma mulher (Iben) que se diz sequestrada pelo ex-marido (Michel) e que levanta a suspeita de agressões a ela e aos filhos do casal. Durante todo o filme somos levados por essas vozes, cujos rostos não ficamos conhecendo, a criar, junto com o roteirista, o diretor e o ator, os demais personagens e suas ações, motivações e interações. Dessa forma, retornamos às percepções próprias da literatura, quando um texto (no caso, ouvido) nos leva para fora da nossa situação concreta para reconstruir a narrativa sugerida pelo autor.
Por outro lado, o filme ainda transgride a tradição cinematográfica, na medida em que a narrativa sugerida é violenta e a tensão que ela suscita é intensa, no entanto nada é mostrado aos espectadores, deixando claro que a violência não é um espetáculo, mas um envolvimento sugerido por nossos medos, vivências e lembranças. Portanto, cinema é uma boa ideia e uma grande sugestão proposta aos espectadores através de elementos metafóricos imagéticos, textuais, sonoros.
Finalmente, gostaria de acentuar que nenhuma das hipóteses levantadas a respeito do que sucedeu realmente (?) com os envolvidos na história é decisiva, levando-nos a duvidar de nossas próprias referências - nesse universo ambíguo e ambivalente de sugestões, o que é a culpa? A culpa é a responsabilidade que sentimos em relação a um crivo ético ao qual submetemos as ações que acreditamos termos cometido (ou serem de nossa responsabilidade). A culpa é tão subjetiva como qualquer das demais interpretações da história que o autor tenta sugerir. A culpa é um sentimento subjetivo cuja sustentação depende do ângulo pelo qual avaliamos a vida, ou seja, um ponto de vista.
Ao final, a culpa ou o mérito de nossos atos parece depender de questões subjetivas e acasos com os quais tentamos entrar em contato com a realidade, cada vez mais fugidia. Assim, o filme transgride não só a tradição cinematográfica, mas também boa parte da tradição filosófica do ocidente que confia em uma base sustentável para nossas percepções da vida!
Cristina Costa