EM FOCO, O NOVO CINEMA BRASILEIRO

10.12.2019 
Por João Moris 

Adriano Garrett faz parte da nova geração brasileira de críticos e pesquisadores de cinema, que estão moldando uma maneira diferente de ver e analisar filmes no país. Confira a entrevista.


Com apenas 29 anos e um vasto conhecimento de cinema, principalmente brasileiro, o crítico e pesquisador Adriano Garrett é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero de São Paulo. Ao contrário do típico cinéfilo que começa muito cedo, Adriano entende como marco inicial de sua cinefilia o momento em que, aos 17 anos, viu O Poderoso Chefão na casa de um amigo. Seu despertar para o cinema também foi desencadeado por um professor de História do Ensino Médio que comentava sobre filmes em aula e, no fim do curso, passou para a turma uma lista de indicações, que Adriano assistiu avidamente. Pouco depois, ao ingressar na faculdade, mergulhou fundo na filmoteca da escola e nas videlocadoras ainda existentes na Av. Paulista.

Adriano foi, então, picado pela pulguinha do cinema e não parou mais. Sua paixão por cinema foi tão avassaladora que virou motivo de chacota entre alguns amigos. Passou a escrever para um blog da Cásper Libero sobre a Mostra de SP, “O Fino da Mostra”, estagiou na Folha de São Paulo (quando ainda atuava no jornalismo esportivo), e criou um blog próprio de cinema com críticas, chamado “Sempre Um Filme”. Até que em 2013, decidiu criar um site sobre festivais de cinema, o Cine Festivais, que existe até hoje e continua a todo o vapor. 

A ideia de criar um site especializado em festivais veio da percepção de que havia um número muito grande de festivais e mostras sendo realizados em todo o Brasil e que não recebiam uma cobertura muito especializada. E, com efeito, o Cine Festivais é um verdadeiro compêndio sobre o chamado Novo Cinema Brasileiro e tem um conteúdo precioso e atual. Traz centenas de entrevistas e podcasts com diretores, roteiristas e atores, jovens e veteranos, que realizaram filmes no Brasil nos últimos anos. As entrevistas, críticas, coberturas e reportagens que Adriano coloca em seu site não têm nada de superficial e ele busca realmente se aprofundar na vastíssima produção do cinema brasileiro contemporâneo dos quatro cantos do país e que geralmente tem pouca visibilidade na grande mídia ou mesmo em mídias alternativas. 

Recentemente, Adriano ministrou seu primeiro curso, “Olhares Para o Cinema Brasileiro Contemporâneo a Partir do Curta-Metragem”, e é um dos críticos brasileiros selecionados para o Talent Press Rio, um programa formativo destinado a países lusófonos a partir de uma parceria entre o Festival de Berlim e o Festival do Rio, que começou ontem. 

Nesta entrevista, feita com exclusividade para o Grupo Cinema Paradiso, Adriano Garrett fala sobre o cinema brasileiro contemporâneo, público, festivais de cinema no Brasil, a polarização em curso no país, entre outros assuntos. 

Grupo Cinema Paradiso – Vamos começar falando do Cinema Brasileiro nos últimos 10 anos, que é o seu foco de atuação e o principal destaque do seu site, o Cine Festivais. Na sua opinião, o que mudou no cenário audiovisual brasileiro nos últimos 10 anos?

Adriano Garrett – Acho que os últimos 10 anos significaram uma consolidação de um processo que veio desde os anos 2000 e que tem como marca a ampliação da Ancine (Agência Nacional do Cinema). A criação da Ancine em 2001 representou para o setor uma ideia, o estabelecimento de diretrizes para o Cinema Nacional. E essas diretrizes passavam muito pela questão do fomento à produção. Então, se fôssemos estabelecer o que mudou nessa primeira década dos anos 2000, que deu a base para estes últimos 10 anos, temos a criação da Ancine e a questão do barateamento da produção com as novas tecnologias digitais. Temos, também, um desenvolvimento muito grande dos cursos de cinema, sejam universitários ou cursos livres. Segundo um dado que vi recentemente, há 62 cursos universitários regulares de cinema em todo o Brasil. Até 2005, só existia 5% destes cursos. Então, são cursos muito recentes que vieram reforçar o incentivo que o digital trouxe, mas também o incentivo estatal à produção, tanto a partir da Ancine quanto a partir de editais, de leis de incentivo, fomento de órgãos em nível estadual e municipal. Então, temos esses três aspectos e a criação de festivais, que formam algo como uma engrenagem que impulsiona o Cinema Brasileiro. Mas, essa engrenagem é frágil. A palavra que a marca a história do Cinema Brasileiro é fragilidade. A gente vê que isto pode sempre retroceder, como está retrocedendo agora.

O que você vê de novidade no Cinema Brasileiro trazida pela nova geração de cineastas, especialmente de 2003 para cá, que marcou o início do período chamado de pós-retomada?

A primeira década dos anos 2000 é uma época de consolidação de uma série de fatores e diretrizes que resultaram num cinema com uma produção mais vasta e com diretores que efetivamente conseguiram ter uma continuidade de carreira, como é o caso de Karim Ainouz e Marcelo Gomes. Creio que é isso que diferencia o período da pós-retomada (2003/2004) do momento atual. Criou-se um volume de produção muito mais amplo, com diretores vindos de outros lugares do país, de outras classes sociais, outras raças, outros gêneros, com outros olhares, que a gente não costumava ver na tela de cinema. Apesar de que, se a gente for olhar para os dados única e exclusivamente dos longas-metragens, ainda há uma disparidade muito grande, tanto de gênero quanto de raça. Acho que o cinema de curta-metragem capta muito mais rapidamente estas mudanças de características sociais, geográficas de quem está fazendo cinema no Brasil. Então, eu acho que, a partir das universidades e desses cursos livres, do barateamento da produção, houve uma diversificação do perfil de quem faz cinema no Brasil.

E o curta-metragem é infinitamente menos visto do que o longa-metragem...

Sim, podemos dizer que essa diversificação é mais fácil de ser captada nos curtas-metragens do que nos longas, até por uma questão econômica. Até 1991, existia a Lei do Curta, que obrigava a exibição de um curta-metragem nacional antes de um longa-metragem estrangeiro. Com o fim do Conselho Nacional de Cinema (Concine) na gestão do Collor, essa lei deixou de existir na prática. Ela nunca foi revogada e nunca mais sofreu um processo regulatório, mas o fato é que não havia mais a possibilidade de produção e execução de curtas-metragens para um público mais amplo. Não vamos pensar que o público brasileiro adorava os curtas-metragens. Muitas vezes, as pessoas não viam os curtas antes dos filmes principais ou não entendiam o contexto. Em termos de produção, o fim da Lei do Curta fez com que muitos cineastas que estavam fazendo curtas e já projetavam o seu primeiro longa tivessem a produção retardada. Foi a época que muitos festivais foram criados, como o Festival de Curtas de SP, o Kinoforum e o Curta Cinema no Rio. Muitos daqueles cineastas se reuniram em torno dos curtas-metragens, principalmente na primeira metade dos anos 90. Havia também uma divisão nesses festivais: eram exibidos como vídeo, como digital e como curta-metragem em 35mm, divisão que existiu até 2010. Acho que isto diz um pouco como o cenário da produção audiovisual no país se modificou, começando pelo curta-metragem. Como disse, o curta-metragem sempre capta as mudanças mais rapidamente. Só que, atualmente, os curtas-metragens podem ser vistos na TV paga, principalmente depois da lei da TV Paga de 2011. Houve uma demanda das TVs pagas de exibirem conteúdo nacional e isto possibilitou que curtas fossem exibidos, ganhando algum tipo de remuneração. E também no Youtube, no Porta Curtas, Vimeo etc., possibilitando uma maior visibilidade de público.

Cena de Kbela (2015), de Yasmin Thainá: curta-metragem brasileiro ganhando cada vez mais espaço

E já que você mencionou o público, você acha que os diversos gêneros e tipos de filmes feitos hoje no Brasil dialogam com um público mais amplo?

Acho que há poucos filmes que conseguem alguma intervenção, algum impacto considerado de debate público, se pensarmos em um público mais amplo. Temos aí questões históricas, como a falta de costume de ver filmes nacionais no cinema, de preconceitos que foram formados desde sempre na história do Cinema Brasileiro, questão de educação, questão econômica porque os ingressos são muito caros etc.

E o público que frequenta cinema esporadicamente, se tiver de escolher entre um filme estrangeiro e um filme nacional, invariavelmente vai escolher o filme estrangeiro...

Exatamente. Se for uma pessoa que não tem o hábito de ir ao cinema, e de repente se depara com a sala de cinema e vai fazer uma escolha, geralmente o filme estrangeiro costuma levar vantagem nesse imaginário. Sobre isto poderíamos falar durante horas, porque desde o início do cinema aqui no Brasil, nos anos 10 do século XX, é uma questão muito estrutural e que não diz respeito só ao cinema, mas à cultura como um todo. 

Com a ampla gama de filmes produzidos no país nos últimos anos e vários cineastas contemporâneos brasileiros fazendo filmes de todos os tipos, o espectador médio está se sentindo atraído ou motivado a ver estes filmes?

Acho que esta é uma pergunta bem difícil de responder. Alguns filmes tiveram maior repercussão, como os de Kleber Mendonça Filho, Aquarius ou Bacurau, ou Que Horas Ela Volta, da Anna Muylaert. Há filmes que, apesar de se voltarem para um público mais restrito, acabam produzindo um debate de nicho. Foi o caso de Divino Amor (2019), do Gabriel Mascaro, por exemplo, que fez mais 30 mil espectadores e que no contexto restrito de distribuição de filmes nacionais no Brasil, conseguiu atingir um bom público, com boa reverberação no boca a boca. Então, a questão do alcance do público para cada filme é algo muito complexo. Em termos de produção, acho que os filmes que vão ficar e marcar serão sempre uma minoria, filmes que tenham não só uma qualidade em termos de narrativa, mas que tenham uma visão de mundo clara, que consigam cativar o público e transformar isso em discurso cinematográfico. Acho que será sempre uma minoria de cineastas que consegue fazer isso. E acho que são casos bem pontuais que levam as pessoas a procurar um filme nacional. A gente está vendo agora no caso do Bacurau, o quanto o filme soube aproveitar o momento e a reverberação que ele teve por ser selecionado pelo festival mais midiático do mundo (Cannes). Enfim, é um fenômeno que sabe trabalhar com a questão das redes sociais, que eu acho muito importante para você captar público atualmente. Então, me parece que para se atingir efetivamente um público que fuja um pouco do perfil de bolha, o filme tem que virar uma espécie de acontecimento.

Hoje, há muitos filmes brasileiros reconhecidos no exterior e ganhando prêmios em festivais internacionais. Você acha que o fato de tantos filmes do Brasil terem esse reconhecimento lá fora irá mudar a opinião dos brasileiros em relação aos Cinema Nacional? 

Acredito que não. Tem casos muito pontuais, como o caso do Bacurau, que não se trata nem de mudar um panorama, porque se esse filme for muito bem de bilheteria, vai ter no máximo um milhão de espectadores. Mas, não é nem um terço da bilheteria das comédias do Roberto Santucci, o diretor das franquias De Pernas Pro Ar, Até Que a Sorte nos Separe e O Candidato Honesto, entre outras comédias. 

Mas, o fato de os filmes nacionais estarem ganhando visibilidade no exterior, isso repercute aqui dentro? 

Não, repercute muito pouco. Repercute na bolha, em quem está fazendo cinema, em termos de incentivo, a quem já produz ou escreve roteiros e isso alimenta as produções. Mas, em termos de trazer público ao cinema, geralmente não. Veja o caso do filme As Boas Maneiras (2017), da Juliana Rojas e Marcos Dutra. Ele fez o caminho certinho, em termos de produção. O filme teve coprodução francesa, foi selecionado pela competição oficial do Festival de Locarno, ganhou o grande prêmio do júri e, aqui no Brasil, ele teve um público muito pequeno, menor do que na França. Há vários casos assim, em que um filme brasileiro tem mais público internacionalmente do que no Brasil. Então, acho que os festivais não têm esse potencial, principalmente quando são filmes de diretores muito autorais.

Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro: o filme brasileiro está buscando ampliar o diálogo com o público? 

Com tantos filmes sendo feitos no Brasil, a multiplicação das plataformas de exibição e o advento das tecnologias digitais, fica difícil saber quem está fazendo o quê, não? 

Sim. Um dado interessante que eu posso dar é pensar como os festivais de cinema acompanharam, de algum modo, um crescimento muito amplo da produção no mundo todo, e no Brasil em particular, devido à popularização do digital. Isso barateou os processos de produção e de pós-produção e fez com que a produção se tornasse mais democrática. Não totalmente democrática porque o cinema ainda custa bastante, mas muito mais democrática do que era antigamente. Isto fez com que os festivais de cinema se ampliassem muito. 

Dizem que apenas no Brasil são quase 400 festivais e mostras de cinema anualmente...

Eu até tenho alguns dados aqui do Fórum dos Festivais, uma entidade que não existe mais. Em 1999, havia 38 festivais com periodicidade anual e que tinham uma proposta de continuar realizando suas edições todos os anos. Em 2009, já eram 243 festivais anuais. Agora, segundo outro estudo que está no site do Kinoforum, são 359 festivais e mostras anuais no Brasil. Acho interessante pensar em como os festivais alimentam os filmes e os filmes alimentam os festivais. É um ciclo, porque houve um crescimento da produção e os festivais captaram essa demanda criada e novos festivais foram criados para conseguir abranger esses filmes. Veja o caso do Festival de Tiradentes, que desde 2008 tem uma seção chamada Mostra Aurora, voltada para cineastas iniciantes em filmes de longa-metragem. Esta mostra serviu como impulsionador de novos trabalhos que tivessem essa característica: filmes de realizadores jovens e com um viés mais autoral em termos de linguagem. Então, é interessante notar como isto é algo que se imbrica. É um ciclo. Festivais como esse são vitrines que servem de incentivo à produção, também. 

Então, você diria que está havendo uma efervescência do cinema e do audiovisual, apesar desse clima difícil que vivemos no país? 

Sim. E no caso do curta-metragem, o espaço do festival é enorme. Um dado interessante que eu tenho é que a maioria dos festivais de cinema no Brasil é basicamente de curtas-metragens. Tem um estudo de 2018, que indica que dos 359 festivais que aconteceram em 2018, 253, ou seja 70%, só aceitavam inscrições de curtas. Houve 67 festivais exibindo curtas e longas, 35 festivais de curtas, médias e longas metragens, e apenas 4 aceitavam só longas-metragens. Ou seja, 1% dos festivais só aceitam longas, por exemplo a Mostra de SP. Isto em termos de inscrição, não necessariamente dos filmes que serão exibidos. Por que eu trago este dado? É que muitas vezes é algo que fica invisível aos olhos de quem está numa cidade como São Paulo, do tanto de festivais pequenos que existem em cidades menores e que exibem muitos curtas-metragens. A gente não tem uma noção tão grande da quantidade, de quantas pessoas estão assistindo a esses filmes, que impacto esses filmes estão causando nesses festivais menores. Tem muitos festivais que só exibem curtas-metragens acontecendo em cidades menores. Cada um com a sua relevância, cada um com um tipo ou não de formação de público, de discurso crítico sobre os filmes, sobre a programação.

Logo do Cine Festivais, site criado por Adriano Garrett

Você mencionou a Ancine e, antes desse desmantelamento da agência, parece que tinha muita gente do meio que não estava satisfeita com a gestão da Ancine. Ela cumpria um papel importante?

Com certeza. A Ancine não só foi importante para estabelecer diretrizes, mas foi também uma agência voltada a questões práticas, como a criação do Fundo Setorial, que hoje está ameaçado. A última notícia que temos é que no ano que vem vão cortar 42% do Fundo Setorial, ou seja, é um desmantelamento completo do setor, que foi costurado de modo a se tornar quase que autossustentável, não no sentido liberal do termo, mas no sentido de contribuição que as empresas fazem ao Estado em termos de impostos. Então, você cobra um imposto do setor, que vai ser revertido em incentivo para o próprio setor. Esse mecanismo é altamente saudável e economicamente interessante para o mercado.

O governo Bolsonaro está fazendo uma perseguição implacável ao Cinema Brasileiro e à Cultura como um todo. Gostaria de saber sua opinião a respeito disto. 

Acho que a retórica bolsonarista se construiu um pouco a partir do combate ao desperdício do dinheiro público. E, dentro deste discurso, sempre foi muito forte a questão da Lei Rouanet. Os críticos da Lei não sabiam nem como ela funcionava, mas ela se tornou o termo mais recorrente na boca das pessoas que quiseram criticar os artistas. Eu acho que tem um movimento contrário aos artistas, primeiro porque os artistas se colocaram desde sempre contra questões regressivas, o impeachment da Dilma em 2016 etc. Quando o Michel Temer entrou no governo, ele retirou o Ministério da Cultura, mas logo depois voltou atrás. Acho que àquela época ainda havia um sentido em buscar um diálogo, por mais confrontativo que fosse. Houve uma luta por parte dos artistas que deu resultado. Várias unidades do MEC foram ocupadas e esse tipo de contestação resultou efetivamente na volta do Ministério da Cultura e o atendimento de algumas demandas do setor cultural. Me parece que o governo Temer ainda era suscetível à questão da opinião pública. O governo Bolsonaro, por outro lado, só está preocupado com a própria base, que é uma base muito ligada à rede social, a um discurso de confronto, um discurso de antagonismo, que pode descambar para a censura.

Já que estamos falando do cinema sob o prisma da censura, você acha que a polarização em curso no Brasil está fazendo com que pessoas de um dado matiz ideológico deixem de assistir a um filme por puro preconceito em relação ao seu conteúdo ou em função da questão ideológica? 

Eu acho que sim, acho que este público que deixa de assistir, muitas vezes ele nem assistiria se não houvesse um fato público que tornasse este um filme de esquerda, por exemplo. Lembro do caso do filme Aquarius. Quando a equipe do filme fez aquele manifesto em Cannes em 2016, o jornalista ligado à direita, Reinaldo Azevedo, da revista Veja, disse: “O dever das pessoas de bem é boicotar Aquarius.” Então, a equipe do Kleber Mendonça colocou esta frase do Reinaldo junto às frases de divulgação do filme. Acho que hoje formam-se boicotes a partir disto, a partir de alguma manifestação de um cineasta ou de um jornalista. Ou, então, algum tipo de associação prévia que o filme já faz. Por exemplo, filmes sobre o impeachment da Dilma vão ser boicotados naturalmente por quem já está claramente associado a um dado espectro político.

Cartaz de Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, com a frase do Reinaldo Azevedo pedindo boicote ao filme

Gostaria de te questionar sobre o contrário, visto que a esquerda também boicota. Você, como espectador abalizado ou como crítico, assiste a filmes contrários à sua postura político-ideológica? 

Sim, costumo assistir. No Brasil, tem uma predominância de filmes com diretores mais associados aos aspectos progressistas. Não necessariamente esses filmes são progressistas. Às vezes, pelo contrário, eles se acham progressistas, mas são conservadores e reacionários no discurso. 

Nessa polarização, onde fica o filme como obra de arte?

Eu vou te dar um exemplo, que acho que é o exemplo mais contundente de como pessoas progressistas, que fazem cinema no Brasil, lidam mal com o contraditório. Foi o caso do Festival CinePE, do Recife, de 2017. Vários diretores inscreveram seus filmes no festival, saiu a lista dos selecionados. Havia, na abertura, um filme considerado chapa branca O Plano Real. Um filme que talvez não incomode tanto pelo viés político, mas é um filme com uma lógica mais comercial e que se encaixa no perfil do festival. E também mais associado a um discurso liberal em termos de economia, que é o de louvar partidários do FHC etc. E na Mostra Competitiva havia um documentário, O Jardim das Aflições, que retrata o Olavo de Carvalho. Mas, o que aconteceu é que sete cineastas inscritos no CinePE soltaram uma carta, dizendo que eles retiravam os seus filmes do festival por causa desses dois filmes, mas principalmente devido a O Jardim das Aflições estar na competição. Este foi um ato político que acho que representa tudo isto que sua pergunta está colocando. 

O que você achou disto?

Acho que é um desejo de só dialogar consigo mesmo, com pessoas que pensam igual a você, que estão na mesma bolha. Se houvesse argumentos mais construtivos para esse ato, eu até entenderia, mas a carta dos cineastas era muito frágil. A carta apontava que eles estavam se retirando, porque o diretor do festival havia trabalhado para o governo Temer (isto todo o mundo já sabia antes de inscrever os filmes) e que não concordavam com a inserção do filme sobre o Olavo de Carvalho. Acho que isto não pode ser um motivo para retirar os filmes, porque, primeiramente, os cineastas sabiam do perfil do festival, sabiam quem trabalhava lá e o espaço do Festival CinePE é um espaço de disputa discursiva, disputa de narrativa, disputa ideológica. Então, por causa de um filme, esses cineastas abdicaram do espaço público, de colocar seus filmes no debate público, de disputar a narrativa do momento a partir dos filmes e dando visibilidade ao filme que eles combatiam. E, no final, O Jardim das Aflições acabou ganhando o festival. O filme não ganhou por causa disto, mas o ato daqueles cineastas de retirar seus filmes acabou dando uma visibilidade que o filme não teria se ele fosse um único entre os demais.

Nesse sentido, há muitos diretores de direita, que nem sabemos que são de direita, cujos filmes assistimos... 

Clint Eastwood, por exemplo. Como essa questão (ser de direita) implica na obra dos diretores? Acho que esta é uma questão perigosa, inclusive para a própria crítica. Se pegarmos o caso do CinePE, a crítica soltou uma nota endossando o ato dos cineastas de se retirar do festival. Só que este endosso também partia de argumentos muito frágeis. O principal argumento era que os cineastas tinham o direito de retirar os filmes. Ora, ninguém estava discutindo se eles tinham o direito ou não. Evidentemente, eles tinham esse direito, ninguém é obrigado a exibir um filme num festival se não quiser, mas o que estava em jogo ali, o que estava se discutindo era o valor desse assunto político, o quanto ele iria reverberar, o que ele sinalizava. Então, me parece que o debate acaba ficando muito reduzido, esvaziado. Isto não é abertura para o diálogo. 

Uma última pergunta: falamos do desenvolvimento do Cinema Brasileiro nos últimos 10 anos, o que você vislumbra na próxima década para o Cinema Nacional? Ou seja, como estará nosso cinema em 2029? 

Em termos de produção, não se mata uma geração tão fácil quanto pensaram que se mataria. Por exemplo, se a gente pegar a época do Collor, é uma boa comparação. Naquele momento, as bases do Cinema Nacional eram muito mais frágeis do que são atualmente. Continuam sendo frágeis, mas naquela época, a produção era toda feita em 35mm, havia a necessidade de um aporte financeiro muito maior, não havia todos esses cursos universitários, não havia toda essa geração que está filmando com câmera digital, com celular. Então, esses últimos 10 anos consolidaram algo que foi construído ao longo dos anos. Por isso, acho que, mesmo se houver um corte brusco de verba, como está ocorrendo agora, e que com certeza vai ter um impacto na produção, creio que não será um impacto que impeça os cineastas de seguirem filmando. Acho que, com ou sem dinheiro, a produção nacional ganhou um corpo grande e tem capacidade de se perpetuar nos próximos 10 anos. Porque ela está formando muita gente e tem muita gente que foi formada nesses últimos anos. Gente que passou a viver de cinema ou que almeja viver de cinema.

Cena de Arábia (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, um típico exemplo do Novo Cinema Brasileiro

OS FILMES BRASILEIROS FAVORITOS DE ADRIANO GARRETT FEITOS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS (2010-2019):

LONGAS-METRAGENS
- Um Dia na Vida (direção: Eduardo Coutinho - 2010)
- Branco Sai, Preto Fica (direção: Adirley Queirós - 2014)
- Sinfonia da Necrópole (direção: Juliana Rojas - 2014)
- Martírio (direção: Vincent Carelli, em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita - 2016)
- Arábia (direção: Affonso Uchôa e João Dumans - 2017)

CURTAS-METRAGENS
- Fantasmas (direção: André Novais Oliveira - 2010)
- Kbela (direção: Yasmin Thayná - 2015)
- A Outra Margem (direção: Nathália Tereza - 2015)
- Estado Itinerante (direção: Ana Carolina Soares - 2016)
- Na Missão, com Kadu (direção: Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito - 2016)

SITES DE CINEMA MENCIONADOS NA ENTREVISTA:
Cine Festivais (www.cinefestivais.com.br)
Festival de Curtas Metragens de São Paulo (www.kinoforum.org.br)
Curta Cinema no Rio (www.curtacinema.com.br)
Kinoforum (www.kinoforum.org.br)
Porta Curtas (www.portacurtas.org.br)
Vimeo (www.vimeo.com)

1 comentários:

Ana Rosa disse...

Entrevista bem interessante, sobretudo pelo fato de o entrevistado fazer parte da nova geração de observadores. Fiquei um pouco surpresa com a afirmação de que a visibilidade e o reconhecimento de filmes brasileiros no exterior não influencia ou influencia muito pouco o público nacional.