A VIDA OCULTA, DE TERRENCE MALICK

12.03.2020 
Por Cazão 
Artigo do filme, completo e com spoilers


Sobre o Diretor:

Retomando sua natureza, Terrence Malick (diretor e roteirista) nos presenteia com uma obra lindíssima (gosto de nomear como ‘arte artística’), depois de não ter andando tão bem em seus últimos dois filmes: Amor Pleno e Cavaleiro de Copas. Ainda que aconteça de alguns expectadores não se sentirem tocados por A Vida Oculta, é inegável que estão diante de um filme que, já de início, causa grande impacto emocional e foge às convencionalidades. 

Como em praticamente toda a sua obra, a tônica se mantém nas questões existenciais e religiosas. No entanto, em A Vida Oculta, o aspecto religioso se revela subjacente, não na ênfase às proposições cristãs, mas nos questionamentos acerca da observância e aplicabilidade desses dogmas no existir; o que acaba por conduzir, o protagonista (Franz) e sua esposa (Franziska) a angústias e ‘desorientação de sentido existencial’. 

Terrence nos dá a impressão de ser católico ou simpatizante, não sei nada a esse respeito, mas a beleza das igrejas católicas romanas, o som do órgão, as vestimentas ritualísticas e até mesmo a arte sacra nas pinturas e esculturas, causam um bom impacto emocional para quem não tem preconceito. Sua filmografia retrata visualmente a igreja católica em 4 (quatro) de 9 (nove) obras. 

Sob a ótica deste escrevinhador, Malick costuma costurar, com muita precisão, o tema do existir com a religiosidade; até porque esses dois tópicos podem se encontrar no que é mais democrático a todos: o fato de nosso caminhamento para a morte (“porque devo temer a morte? eu pertenço a ela” – do filme Além da Linha Vermelha), mesclando com nossa necessidade de dar sentido à nossa finitude (incluso para ateus); e mesmo para aqueles que almejam, ou têm certeza, que a vida seja eterna.

Dados “técnicos” do filme & e um pouco mais do estilo do diretor:

O roteiro de A Vida Oculta é mais “certinho”, prossegue de modo mais linear que em filmes anteriores, sem ‘confundir ou nos perder’. Contudo, infelizmente para mim, quase não há cenas poéticas - ou para outros, sem nexo; ele manteve uma ótima trilha sonora e fotografia. O filme tem 3 horas, mas elas passam muito bem, sem ter o que tirar.

Malick repete algumas de suas peculiaridades: pessoas se balançando, ou o próprio objeto balanço, estão presentes em 5 (cinco) de 9 (nove) filmes; cachorros aparecem em todos e; nesta obra como em seu segundo filme, os camponeses e a luta de classes fazem fundo ao desenrolar da história.

Em A Vida Oculta, o desejo de se retirar do convívio social, ou dele se refugiar, também está de volta: a esposa Franziska (Valerie Pachner) sugere a Franz, na iminência de ser convocado, que “vá morar nas montanhas” ou “vamos para as montanhas”. A mesma cogitação (sempre de um casal) se dá nos filmes Terra de Ninguém, Cinzas do Paraíso e Novo Mundo (“vamos morar nas florestas”?).

O que não gostei do filme:

Os personagens falam alemão e inglês, o casal protagonista conversa em inglês e, em outras situações, falam em alemão. Esse fato, por mínima importância que possa ter, por vezes quebrava o meu envolvimento na relação com o filme. Creio que algumas pessoas não gostarão de duas rápidas cenas onde Hitler aparece, a cores, cumprimentando uma menininha e depois outra; mas é típico de Malick sair do senso comum.

O vilarejo Radegund:

Franz e sua família moram em um pequeno vilarejo onde todos são camponeses. Trabalhadores de árdua vida e pesadas tarefas, cumpridas em conjunto com as mulheres, aparentam a união de uma comunidade fraternal, tranquila e na qual também se divertem. O filme mostra, digamos assim, em detalhes a vida dessas pessoas, cuidando de animais, cultivando a terra e em diversas outras atividades e também as realizadas na igreja católica. 

Contudo, é a típica vila que delata o controle social, quando suplanta os valores individuais em favor dos valores coletivos. De fato, quanto menor é a cidade, mais forte esse controle se mostra. O vilarejo do filme - como o resto da Áustria - vai aderindo aos conceitos e valores nazistas, à exceção de Franz e sua família, o que lhes fazem experimentar uma punição social, expressada através de maus tratos, isolamento e ostensiva rejeição: até suas filhas pequenas são rejeitadas pelas garotas cristãs em um evento religioso.

Franz, August Dielh – Jeito de ser:

Antes das considerações finais sobre o personagem, que entendo como primordiais; sua recusa em não assinar documento de lealdade a Hitler é alertada por cerca de 5 pessoas e esposa, incluindo dois advogados do regime, que tentaram persuadi-lo de sua convicção, utilizando discursos como “pra quê isso”? “ninguém saberá de seu ato”, “pense em sua família”, “isso é orgulho” e o padre “Deus julga pelo coração, não pelas palavras” e etc. Essa atitude poderia ser vista como uma rigidez, sobretudo por envolver 3 filhas, a esposa e a mãe desamparadas; o que pareceria contraditório na atitude dele, pois nós o vemos como saudável/cuidadoso pai, esposo e filho; e assim denota uma atitude egocêntrica de pensar apenas no que faz sentido a si-mesmo sem levar em conta a devastação da família.

Filme ambientado na 2ª guerra mundial, Áustria – a violência:


No filme não há sequer uma gota de sangue. Existe, como dito, a violência dos camponeses com a família de Dielh; outros personagens na prisão sofrem em cenas rápidas de menos ou pouco mais de 1 segundo. Com Franz ocorre algo semelhante no que tange à violência física, incluso as violências emocionais: soldados convidam-no a sair da prisão pela porta de entrada para, em seguida fecharem-na impedindo-o de sair; um outro ordena que ele se sente e puxa a cadeira para que ele caia ao chão, e o faz mais de uma vez; Franz beija a bota de um soldado e etc. E a cena do mesmo apanhando, como estando no lugar da câmera, só vemos o soldado bater, uma cena que nunca vi antes em qualquer filme.

Em dois outros filmes de Malick, há duas cenas violentas que acho interessante compartilhar: Em A Árvore da Vida, Brad Pitt em desentendimento familiar, chacoalha bruscamente a mesa quando a família está almoçando, causando uma reação de pavor absoluto; e em Cavaleiro de Copas, o pai com raiva, gritando mas sem emitir som, segura um buquê de flores e bate-o furiosamente contra um móvel. Essas cenas foram tocantes, tanto porque me machucaram, como por serem diferentes e trazerem beleza.

Advogado: “Assine e estará livre”, Franz: “eu sou livre” – Malick e o que seria liberdade:

O diretor ultimamente vem falando em ‘liberdade’. Inicialmente fiquei preocupado porque poderia ser um chavão estadunidense, mas não é e não vale alongar aqui nesse particular. Depois, imaginei se ele estaria utilizando a proposta Sartriana para a liberdade, o que é interessante por um lado, mas não me faz muito sentido, entendo a questão de assenhorar-se e da responsabilidade, mas isso é vínculo, o oposto... 

Em seu filme anterior, há várias cenas onde o casal ‘simplesmente acontece’, sem premeditação, sem o ter-que-fazer. Isso remete ao psicanalista Winnicott (o gesto espontâneo) e alguns filósofos existencialistas que tratam do tema da autenticidade. Creio que a liberdade anunciada por Franz, sobretudo quando encarcerado, se torna mais vigorosa e temível, ao mesmo tempo em que se realiza na situação em que suas convicções bastam a ele e o impedem dele se submeter...

Enfim, psicologicamente falando, quanto mais amadurecidos e cientes de nós mesmos, maior a possibilidade de fazermos escolhas conscientes e equilibradas, mas até um certo ponto, o dos nossos limites e da vida. Finalizando, a “liberdade” (podemos colocar aspas por não estar nem perto de ser plena), assemelha-se na contraposição entre o poder-ser e o ser-poder.

O final e a essência do filme:

Especulo que o protagonista poderia ser comparado a Jesus, que se manteve irredutível em sua fé, não cedendo as “tentações ardilosas do anticristo” (como mencionado nesse sentido); que foi preso, maltratado/humilhado e condenado à morte depois de julgado. 

E, sua esposa, fez as vezes de Maria Madalena, cuja absoluta lealdade abençoa a decisão dele de viver ou morrer: “faça o que achar certo”.

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