PERDAS E GANHOS

29.01.2021
Por Rianete Lopes Botelho

Recado: o presente artigo conta partes do filme (spoilers)

Jorge Bolani que interpreta Ernesto (foto divulgação)

Aos Olhos de Ernesto (*), longa-metragem de Ana Luiza Azevedo, faz parte daqueles filmes que nos deixam em estado de graça. É comovente, delicado e sem qualquer apelo piegas. A história gira em torno de um velho uruguaio que mora sozinho em Porto Alegre e é viúvo há muitos anos. Sua vida é cada vez mais restrita pela gradativa perda da sua visão. É um homem solitário. Mas o filme também mostra a solidão da jovem Bia (Gabriela Poster), que passa a trabalhar para Ernesto (Jorge Bolani), deixando claro que a velhice é dos velhos, mas a solidão é de todos nós.

O encontro dos dois personagens é fruto do acaso, fenômeno tão frequente em nossas vidas, que nos lembra que somos apenas parcialmente donos dos nossos destinos. “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”, já diz a canção “Roda Viva”, de Chico Buarque de Hollanda. Acho que nunca é demais considerar o imponderável para ajudar a encarar nossa pretensa onipotência. Woody Allen é um dos cineastas que mais enfatizam o quanto as circunstâncias podem mudar os nossos planos.

O filme não apenas me emocionou, mas também me deixou reflexiva. Gosto de filmes assim.

Pensar na velhice é pensar na passagem do tempo. A administração do tempo sempre foi uma preocupação humana, mas é na velhice que a questão do tempo e sua inexorabilidade é sentida de forma mais intensa, diante de um futuro cada vez mais reduzido. Por isso é comum o velho voltar-se mais para o passado. Essa tendência é confirmada quando observamos que a perda de memória na velhice é mais referente aos fatos recentes, enquanto o passado remoto sofre uma revitalização acentuada.

O jovem é ousado porque, além da sua vitalidade, ele tem um grande futuro que lhe permite postergar ou tentar outras vezes quando não consegue seu objetivo na primeira investida. Por isso, o tempo do jovem é o futuro. O presente é o tempo da criança.

Apesar do homem regular simbolicamente o tempo em qualquer ordem social, ele não tem de fato nenhum controle sobre a passagem de tempo, apesar da sua permanente busca de imortalidade ou de eterna juventude.

O protagonista do filme, embora tenha uma relação amistosa com o seu filho, se recusa a ir com ele para São Paulo, por não estar disposto a mudar sua rotina e a trocar de vizinhos, porque aquele pequeno mundo do qual ele faz parte foi o que lhe restou e é o que lhe dá o sentido de pertencimento. Aliás a cineasta teve o cuidado e a sutileza de mostrar num filme feito em 2019 o uso que o personagem faz da máquina de escrever e de cartas manuscritas, deixando claro para o espectador como é difícil para o velho se desligar como os laços do mundo que ficou para trás. Como a vida é feita de ganhos e perdas, o velho sabe que sua cota de novas dádivas está se esgotando e muitas vezes deixa até de ver a possibilidade de um ganho quando ela aparece. As perdas sofridas nem sempre ficam cicatrizadas, e o processo de luto tende a ser mais marcante do que o prazer dos ganhos. E é bom lembrar que é através das perdas e frustrações que adquirimos a dimensão do que somos e do que perdemos, o que nos instrumentaliza para melhor lidar com as nossas fantasias onipotentes e desenvolver o senso de realidade. São as frustrações que nos fazem crescer.

O velho do filme é um homem educado, culto, tímido e parece adequado à sua condição limitante. Mas, deixá-lo sozinho com sua deficiência visual é motivo de muita preocupação para seu filho. Ernesto resolve então contratar uma jovem, que ele conhece por acaso, para lhe fazer companhia, ler para ele e escrever o que lhe fosse ditado. Isto foi o combinado. Mas a entrada de Bia na vida de Ernesto vai além daquelas tarefas: cria-se uma cumplicidade entre eles, transformando-os em amigos que se protegem e cuidam um do outro. Nesse ponto, o filme poderia ter descambado para um clichê muito frequente nos finais felizes de muitos filmes, ou seja, os protagonistas se apaixonam e viram um casal. Mas não ter acontecido isso é um mérito do filme. A amizade entre os dois é libertadora: ela se dá conta de que tem o direito de ser amada, sem se submeter a uma relação desrespeitosa; e ele se aventura em busca de um novo amor. Ambos se soltam das suas amarras internas e ficam disponíveis para aceitar com leveza as surpresas da vida.

Ernesto e Bia e redescobrem o encanto das cartas manuscritas (foto divulgação)

À medida que a relação de amizade se fortalece, cada um se fortalece individualmente. Ernesto ajuda Bia a se livrar do namorado abusivo, que lhe batia quando bêbado, que ela tolerava em troca de carinho de vez em quando. Bia, por sua vez, amplia o mundo restrito de Ernesto, levando-o a conhecer um grupo de cultura popular. Lá, ele recita um lindíssimo poema do poeto uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) “Por que cantamos” (reproduzido ao final do texto). Depois, os dois comem um sanduíche na rua e dançam. Bia traz Ernesto para o presente e Ernesto ajuda Bia a se abrir para um futuro mais promissor.

Lendo para Ernesto as cartas de uma amiga recém-viúva, e com quem ele começou a se corresponder, Bia percebe com perspicácia o amor não explicitado entre os missivistas. E ela fala claramente sobre os sinais que aquele amor estava dando. Ernesto, a princípio não consegue reconhecê-los, mas a cada nova carta lida, Bia insiste em interpretar os apelos amorosos e Ernesto vai se dispondo a admitir o que até então só era claro para Bia. É como se os olhos da sua alma se abrissem e ele se desse conta de que seu presente lhe acenava com a possibilidade de um futuro desfrutável e que era seu por direito. E Ernesto vai em busca de conhecer um novo capítulo de sua história. Fico pensando quantas vezes deixamos de usufruir – por medo de nos entregar ou até por precaução – das ofertas que a vida nos destinou e, ao não fazê-lo, as desperdiçamos, uma vez que ninguém mais pode se aproximar delas ("Eu sou eu e minha circunstância", Ortega y Gasset). Acho que é por isso que às vezes temos saudades “do que poderia ter sido”. É uma sensação estranha essa de sentirmos falta de algo que nunca possuímos. Na verdade, foi nossa a decisão de fazer de conta que a oferta não nos era endereçada.

É importante ressaltar outro mérito do filme. Bia não é uma boa moça que vive para fazer o bem. Novamente a diretora gaúcha Ana Luíza Azevedo não caiu na facilidade do clichê do anjo bom. A personagem é uma jovem sem uma família protetora, com uma vida difícil, capaz de transgressões. Mas é também desprendida, inteligente, sensível, forte, isto é, uma pessoa humanamente contraditória. E Ernesto parece se enxergar nas imperfeições de Bia, assim como nós, espectadores. No filme não há heróis, mas pessoas comuns capazes do melhor e do pior, e expostas às contingências. Talvez por isso o filme nos toca tanto, como seres humanos imperfeitos que somos.

O final do filme é tão bem cuidado quanto o seu desenrolar. Ao se despedir de Bia, Ernesto se despede da sua companheira que tanto bem lhe fez. Como ela vai continuar no apartamento dele, acho que foi um jeito que a cineasta encontrou para nos lembrar que mesmo o que perdemos pode, muito fortemente, continuar a viver dentro de nós, como Bia continuará a viver naquele apartamento. E o que nos resta é agradecer a vida pelos pontos de luz e de alegria que nos concedeu em nossa caminhada e que nos dão alento, mesmo quando não mais os temos. Ao reassumir seu tempo presente, Ernesto volta a enxergar o futuro e vai ao encontro dele. Através do umbral, a porta se fecha e não se sabe se serão “felizes para sempre”. Não importa, pois assim a vida é.

(*) O filme está acessível para alugar ou comprar na Net Now e Vivo Play

Por que cantamos
por Mario Benedetti

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos
 
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se faz cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos
 
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos
 
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
 
cantamos porque a criança e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos
 
cantamos porque o grito não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque acreditamos nas pessoas
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e naquele fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes da vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

1 comentários:

Oziris disse...

É na velhice que a inexorabilidade do tempo é mais sentida,diante de um futuro cada vez mais reduzido, é o trecho do artigo que sintetiza essa reflexão linda da Rianete!