CINEMA PERDE O SEU MAIOR ROTEIRISTA

12.02.2021
Por Toninho Gonçalves *

Jean-Claude Carrière em participação afetiva como ator no filme Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami (2010),
intensamente discutido pelo Grupo Cinema Paradiso

Vai-se um gigante do cinema. Jean-Claude Carrière nos deixou nesta segunda, 8 de fevereiro. Parceiro de grandes cineastas, Carrière registrou seu nome como roteirista de obras memoráveis: Belle de Jour, O Discreto Charme da Burguesia, O Tambor, A Insustentável Leveza do Ser, Um Amor de Swann, Danton, Salve-se Quem Puder (a Vida), Esse Obscuro Objeto do Desejo, entre outras joias cinematográficas.

Buñuel, foi seu maior parceiro, com seis clássicos na conta. Goddard, Milos Forman, Nagisa Oshima, Volker Schlöndorff, Babenco, entre outros, também dividem suas assinaturas com o mestre do roteiro.

A gente costuma falar do filme, sua história, do diretor, ator, atriz, da fotografia, locações... O roteirista, porém, fica na rabeira da lembrança de um grande filme. Mas é certo que toda obra prima tem a marca silenciosa de um grande 'guionista'. Silenciosa, respeitosa e fiel ao diretor. O roteirista não contamina a marca do diretor, ao contrário, potencializa a sua singularidade autoral. A parceria com Buñuel, por exemplo, era intensa, companheira e íntima. Num texto sobre sua relação com o diretor aragonês, escreve Carrière:

La condición de vivir juntos es muy importante para trabajar una historia; para escribir un guion se necesita vivir solos y aislados en un lugar confortable, sin mujeres —importantísimo—, sin amigos, ni visitantes, comiendo juntos los dos, desayuno, comida y cena, una vida juntos. Calculo que comimos juntos más de dos mil veces. La vida de una pareja.

Leia mais sobre essa rica cumplicidade no link:
https://lbunuel.blogspot.com/2015/10/luis-bunuel-la-escritura-del-guion-ii.html

Dessa convivência, nasceram as obras primas da dupla. Nasceram ainda ilustrações, como a que segue:


O pensador da arte de escrever filmes

Carrière, além de criar roteiros, tematizava a escrita cinematográfica. Dois livros são essenciais: "Prática do Roteiro Cinematográfico", obra técnica sobre a arte de ser roteirista, escrita a quatro mãos com Pascal Benitzer, e "A Linguagem Secreta do Cinema" livro que reflete sobre o cinema e sua linguagem, a partir da análise de filmaços de gênios como Goddard, Buñuel, Fellini, Orson Welles, Hitchcock.

Além de não-ficção, Carrière é um criador de ficções, cito apenas dois que também dialogam com o mundo das imagens ou para ser mais específico, com gente graúda do cinema: Jacques Tati e Buñuel. O livro "Meu Tio", editado no Brasil pela finada editora Cosac Naify, é bem criativo, humorado e refinado (ainda tem disponível na Amazon). "Le Reveil de Buñuel" é uma obra fantasiosa, em que o cineasta espanhol "acorda", após trinta anos morto, e se surpreende com um mundo estranho, que se encaixa na sua sagacidade surrealista (não há edição brasileira deste título).

Seja nos livros, seja especialmente nos filmes, Jean-Claude Carrière imprimiu engenhosidade e genialidade à escrita cinematográfica. Nestes tempos tão brutos, Carrière se foi para nossa tristeza. Fica, para o conforto desta e de futuras gerações, o brilho de sua obra.

*Toninho Gonçalves é jornalista e fundador do Grupo Cinema Paradiso.

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