FESTIVAL DE ROTERDÃ: A DIVERSIDADE COMO MARCA REGISTRADA

08/02/2021
Por João Moris


Terminou ontem a 50ª edição do prestigiado Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR). Como muitos eventos em tempos de pandemia, o IFFR deste ano foi realizado em versão online e mais enxuta. A novidade é que os organizadores disponibilizaram links para que profissionais da imprensa e da indústria de outros países, além da Holanda, pudessem assistir aos filmes do festival.

Por razões comerciais, estratégicas e de distribuição, durante a pandemia os grandes festivais do mundo não têm disponibilizado os links dos seus filmes selecionados para outras regiões, além do país ou região de origem (um expediente chamado geoblocking). Esses bloqueios vêm sendo levantados com o prolongamento da pandemia e cada vez mais pessoas ao redor do planeta têm hoje acesso online a filmes inéditos dos grandes festivais, como Cannes, Berlim, Veneza, Sundance, Toronto, Locarno e o IFFR, que servem de termômetro das tendências para o cinema mundial.

Diversidade

Segundo a diretora do IFFR, Vanja Kaludjercic, o Festival de Roterdã é conhecido por ser “um porto seguro para a diversidade no cinema”. Com efeito, o IFFR se diferencia dos grandes festivais de cinema por apresentar filmes realmente diversificados, com produções de todas as regiões do planeta, sem o compromisso com o ineditismo, com o esquema dos grandes estúdios ou ter de incluir na sua seleção filmes de diretores badalados ou conhecidos.

Ainda que a marca registrada do festival seja filmes dito “artísticos”, geralmente com uma narrativa não linear, estética mais radical ou de natureza experimental, os vários programadores do IFFR fazem uma curadoria minuciosa e garimpam filmes que buscam dialogar com uma gama ampla de público, sem fazer concessão ao chamado cinema comercial.

Coincidência ou não, a maioria dos filmes que vi no IFFR este ano trouxe a questão de gênero como tema central, em especial no que diz respeito às mulheres. E é promissor notar maior presença das mulheres, não apenas como protagonistas dos filmes, mas também como diretoras e roteiristas, inclusive vindas de países que tradicionalmente só têm cineastas homens, como a Geórgia e a China.

Seguem alguns destaques dos filmes que assisti no IFFR 2021, com o nome original seguido da tradução livre em português.

Madalena (Brasil – diretor: Madiano Marcheti)
Um digno representante do cinema brasileiro e quase unanimidade entre os que tiveram o privilégio de vê-lo em estreia mundial no IFFR, Madalena instiga e surpreende ao contar uma história violenta de uma forma transversal e sem violência gráfica. Ambientado em uma cidade sul-mato-grossense de porte médio, que vive do cultivo da soja, o filme é dividido em três partes aparentemente desconectadas entre si, cujo único vínculo é o desaparecimento da transgênero Madalena. Sutilmente expõe as mazelas da desigualdade, da exclusão e do preconceito que grassam no Brasil do agronegócio, onde agroboys e agrogirls marcam território, enquanto a população LGBT é estigmatizada ou assassinada. Por baixo da superfície, nada é o que parece ser. Meu filme favorito do IFFR deste ano. Torcendo para que tenha uma carreira brilhante por onde passar.

Cena do filme sul-mato-grossense Madalena (Foto: Divulgação)

Beginning (“Início” – Geórgia/França – diretora: Dea Kulumbegashvili)
Um filme primoroso com uma fotografia belíssima que revela as relações de poder e hierarquia em sociedades patriarcais, no caso a ex-república soviética da Geórgia. Um casal de testemunhas de Jeová vivendo no interior do país tem sua igreja queimada por fundamentalistas e, enquanto o marido vai buscar recursos na capital para a reconstrução do templo, o delegado encarregado do caso submete a mulher a todo o tipo de assédio moral e sexual, e ela acaba sucumbindo ao entorno cultural opressor em que vive. A diretora subverte a lógica do empoderamento feminino e busca explorar aspectos mais sutis da personalidade e comportamento da personagem. O filme é polêmico e muitas pessoas irão torcer o nariz para as escolhas da diretora. Beginning é o candidato da Geórgia ao Oscar deste ano e está disponível na plataforma MUBI.

A atriz georgiana Ia Sukhitashvili em cena do filme Beginning (Foto: Divulgação)

Pebbles (“Pedregulhos” – Índia – diretor: P.S. Vinothraj)
Apesar do avassalador desenvolvimento das grandes cidades indianas nos últimos anos, a Índia é ainda essencialmente rural e estima-se que o país tenha mais de 500 mil vilas e aldeias. Pebbles retrata a realidade local de aldeias perdidas nos confins do estado de Tamil Nadu. É um filme sobre pobreza, seca e abandono e como as pessoas locais sobrevivem nesses ambientes, sob o peso da rígida hierarquia social indiana. Um homem alcoólatra e violento é abandonado pela esposa e utiliza seu filho de 10 anos como forma de forçar a mulher a voltar para ele. Tal qual um road movie, pai e filho vagueiam a pé pelas terras áridas e poeirentas de Tamil Nadu em busca da mãe. No caminho, apesar da truculência do homem, ambos terão de conviver. Conseguirá o menino se libertar desse círculo opressor e vicioso? Não é um filme para todos os gostos, mas adorei. Todo protagonizado por moradores das próprias aldeias. Merecidamente, Pebbles ganhou o prêmio máximo do IFFR (Tiger Award) deste ano.

O filme indiano Pebbles ganhou o Tiger Award de melhor filme do IFFR 2021 (Foto: Divulgação)

Sweat (“Suor” – Polônia/Suécia – diretor: Magnus von Horn)
Ainda não são muitos os filmes que falam dos chamados influenciadores digitais, talvez por ser um fenômeno relativamente novo. Sweat se propõe a dissecar três dias na vida da jovem e bela musa fitness polonesa Sylwia Zajac, cujas aulas aeróbicas arrasam tanto online quanto presencial. Sylwia tem um séquito de milhares de seguidores e vive pendurada no celular 24 horas por dia interagindo com seus fãs, dando dicas de exercícios e dietas, além de cumprir uma extensa agenda imposta pelos patrocinadores. Já na intimidade, a jovem parece sofrer de uma solidão crônica, a família não lhe dá o devido valor e tem problemas de relacionamento com os homens. Até que um dia, um iminente episódio de assédio a faz repensar sua relação com o mundo. Atual e vigoroso, Sweat foi exibido na 44ª Mostra de Cinema de São Paulo em 2020.

A atriz polonesa Magdalena Kolesnik em Sweat (Foto: Divulgação)

Bipolar (China – diretora: Queena Li)
Este filme chinês em deslumbrante fotografia preto e branco é uma viagem existencial, imagética e alucinante de uma jovem chinesa pela Região Autônoma do Tibete. O que começa como uma peregrinação vai aos poucos tomando outros contornos. Ao se deparar com uma lagosta arco-íris no aquário de um restaurante, a garota se convence que o animal é sagrado e se incumbe de levá-lo ao seu habitat natural, a Ilha de Ming. Passa, então, a viajar pelo interior do Tibete onde encontra pessoas locais de todos os tipos dispostas a ajudar a jovem a cumprir sua missão. Mas, será que a garota está mesmo viajando ou apenas sonhando? Ou buscando esquecer seu passado? Bipolar é um convite escancarado para o espectador mergulhar num universo totalmente desconhecido e empreender a viagem com a protagonista. Eu aceitei o desafio e gostei do que vi.

Cena do filme chinês Bipolar (Foto: Divulgação)

Carro Rei (Brasil – diretora: Renata Pinheiro)
Mais um filme seminal vindo do polo de Pernambuco. A diretora Renata Pinheiro também é artista plástica. Seu terceiro longa, Carro Rei, é um filme de beleza plástica magnética, que transborda em metáforas e representações da realidade brasileira. Um jovem (Ninho), cujo pai é dono de uma oficina mecânica e de um ferro velho, nasce num Fiat Uno, que se transforma num amigo com quem Ninho e outras pessoas à sua volta conversam e interagem. Mas, o carro assume um papel messiânico ao longo do filme, tornando-se um líder autoritário de um séquito de autômatos ensandecidos e fanáticos dispostos a qualquer coisa para dominar o mundo. Com proposta estética e narrativa ousada, Carro Rei convida o espectador a embarcar nas suas alegorias, mas ao contrário de Bacurau, peca por não ir fundo no seu interessante registro alegórico e acaba refém de excessos, com roteiro que resvala para explicações, discursos e até mensagens ecológicas.

Matheus Nachtergale arrasa no filme Carro Rei (Foto: Divulgação)

El Perro Que No Calla (“O Cachorro Que Não Se Cala” – Argentina – diretora: Ana Katz)
Este simpático e minimalista filme argentino, de sabor doce-amargo, acompanha a vida de Sebastian, trinta em poucos anos, que tem uma natureza tímida, pacata e cativante, e parece estar deslocado da sociedade em que vive. A diretora desconstrói o personagem, que é uma antítese do latino típico, para colocá-lo em situações-limite e absurdas do cotidiano. Sebastian tem uma cadela que chora durante o dia enquanto ele está fora, os vizinhos reclamam, ele passa a levar o cão ao trabalho e é despedido... uma sucessão de eventos contados ora de forma cômica, ora de forma trágica, formam o arco narrativo do filme e dão o seu tom elíptico, com o espectro do desemprego e a luta pela sobrevivência como pano de fundo. Um dos poucos filmes de ficção que vi até agora a usar uma metáfora criativa para a pandemia do covid. O grande mérito de El Perro Que No Calla é que a diretora não busca psicologizar o personagem, deixando o espectador tirar suas próprias conclusões. Mas, a opção de dar um rumo para a vida de Sebastian no final – e fechar todas as pontas – enfraquece a proposta inicial do filme.

O ator argentino Daniel Katz em cena de El Perro Que No Calla (Foto: Divulgação)

Friends and Strangers (“Amigos e Estranhos” – Austrália – diretor: James Vaughan)
Esta comédia australiana de costumes mostra um rapaz abastado, Ray, de 20 e poucos anos, e totalmente desconectado com o meio em que vive. O filme, dividido em três partes não muito perceptíveis, mostra a busca por conexão deste millennial, ainda que suas tentativas sejam pífias e sempre resultem em frustração. O trunfo de Friends and Strangers é mostrar a angústia de Ray de uma forma leve e cômica, e quase sempre lacônica e prosaica. Ao contrário de Sebastian, o personagem argentino do filme acima, as experiências cotidianas de Ray e sua relação com as pessoas parecem não transformá-lo e ele sempre volta à estaca zero. Há um estranhamento que perpassa o filme para mostrar essa sensação de deslocamento de Ray, o que pode fazer com que o espectador se distancie emocionalmente da história e do personagem.

O ator australiano Fergus Wilson faz um millennial deslocado em Friends and Strangers (Foto: Divulgação)

Liborio (República Dominicana/Puerto Rico/Catar – diretor: Nino Martínez Sosa)
Um dos poucos representantes latino-americanos do IFFR, Liborio é rico em ritos do folclore dominicano, espiritualidade e o sincretismo afro-religioso característico de países americanos de passado escravocrata. O filme se baseia na história real de Olivo Mateo Liborio, ou Papá Liborio, que na virada do século XX, após sumir num furacão e ser declarado morto, retorna como profeta e se torna um líder messiânico. Funda uma comunidade autossustentável de cunho católico-cristão com a população pobre local, realiza curas milagrosas e atrai cada vez mais devotos, o que incomoda a elite local, as autoridades políticas e eventualmente o exército dos EUA, que ocupou a República Dominicana a partir de 1916. Apesar de abordar temas importantes, como o messianismo e o colonialismo, o filme é um tanto esquemático na narrativa e convencional na forma, o que para mim empana o seu brilho.

O ator dominicano Vicente Santos em Liborio (Foto: Divulgação)

Looking for Venera (“Em Busca de Venera” – Kosovo/Macedônia – diretora: Norika Sefa)
Uma raridade um filme do Kosovo falado em albanês dirigido por uma mulher. Looking for Venera conta a história da adolescente Venera, que vive com os pais e dois irmãos menores em uma cidade pequena do Kosovo, onde rígidos padrões hierárquicos e o machismo predominam. A jovem está descobrindo sua sexualidade e faz amizade com outra jovem (Dorina), sexualmente ativa e rebelde. Venera passa a confrontar a autoridade do pai e a questionar a submissão da mãe, começa a namorar o irmão de Dorina e vai a festas. Mas, ao ver que a amiga se casa com o namorado por pressão da família, percebe que não irá conseguir escapar tão facilmente das amarras da opressão e do destino reservado às mulheres em uma sociedade de base patriarcal. Apesar da mensagem clara, a narrativa fragmentada, a fotografia escura e as elipses curtas de tempo atrapalham o fluxo do filme.

Cena do filme kosovar Looking for Venera (Foto: Divulgação)

Riders of Justice (“Os Justiceiros” – Dinamarca – diretor: Anders Thomas Jensen)
Na última década, a Dinamarca lançou algumas produções impactantes que fizeram sucesso, tais como Num Mundo Melhor (2011), A Caça (2013), Segunda Chance (2014), Guerra (2015), Culpa (2018) e, mais recentemente, Filhos da Dinamarca (2019). Entre as temáticas recorrentes nos filmes dinamarqueses estão o militarismo, o terrorismo e o avanço de movimentos ultranacionalistas. Riders of Justice busca englobar todos esses temas e, além de ser um thriller policial com direito a muitos tiros e perseguições, o tom também é de comédia, em que um grupo de nerds, liderado por um militar da ativa (Markus, interpretado pelo ator-fetiche dinamarquês Mads Mikkelsen) tenta se vingar da gangue por trás da explosão de um trem do metrô que matou a mulher de Markus. Foi o filme de abertura do IFFR. Pastiche total. Não me empolguei.

  O ator dinamarquês Mads Mikkelsen está irreconhecível em Riders of Justice (Foto: Divulgação)

0 comentários: