TIRADENTES E ROTERDÃ: VITRINES DO CINEMA FORA DA CAIXA

20.02.2022
Por João Moris

O que as cidades de Tiradentes em Minas Gerais e Roterdã na Holanda têm em comum? Além das belezas arquitetônicas – diametralmente opostas – ambas são sedes de dois festivais de cinema inusitados e instigantes.

A Mostra de Tiradentes, que em 2022 celebrou sua 25ª edição, é um polo importante de inovação do cinema brasileiro contemporâneo, enquanto que o Festival de Roterdã (IFFR), que existe desde 1972, é um prestigiado evento mundial dedicado ao chamado cinema independente. Este ano, ambos os festivais (que acontecem no final de janeiro/inicio de fevereiro) tiveram de cancelar as exibições presenciais devido ao acirramento da pandemia e exibiram toda a sua programação online, a maioria filmes inéditos.

Mas, num mundo em que cada vez mais e mais filmes são disponibilizados a todo o tipo de público em múltiplas plataformas, qual o lugar de festivais como os de Tiradentes e Roterdã, que possuem uma aura de exibir filmes “difíceis” e “herméticos”?

Para o deleite de muitos críticos e cinéfilos, essa é uma linha divisória bem demarcada que separa os filmes feitos em escala industrial (ao estilo Hollywood) de filmes mais elaborados na narrativa, linguagem e estética. Para alguns espectadores, essa é uma maneira elitista de separar quem pertence a uma casta de entendidos de cinema e quem se assume “apenas” como apreciador de filmes. E, talvez para a grande maioria do público, festival de cinema é algo inatingível ou só serve para mostrar filmes chatos, arrastados e soporíferos.

Estando ou não fechados em bolhas, os festivais de cinema cada vez mais crescem em importância, tanto no Brasil quanto no exterior, e contribuem para a difusão do trabalho de novos artistas e produtos audiovisuais, propiciando acesso e visibilidade a obras cinematográficas de diversos países que não encontram espaço no circuito comercial ou mesmo alternativo. Só no Brasil, são quase 400 mostras e festivais de cinema ao ano (dados de 2019). Assim como os filmes das plataformas digitais, tem festival de cinema para todos os gostos e públicos.

Abaixo, destaco alguns filmes que garimpei em Tiradentes e Roterdã este ano e que me mobilizaram.

MOSTRA TIRADENTES 

Bem-Vindos de Novo (de Marcos Yoshi)
Um surpreendente documentário dirigido por um jovem paulista de ascendência japonesa. Marcos Yoshi escancara sua câmera para contar a incrível história de seus genitores, que em 1999 deixam os três filhos crianças com a avó no interior de São Paulo e vão trabalhar no Japão com o intuito de melhorar de vida. Trabalham como operários numa fábrica e a viagem, que era para durar 2 anos, demorou 13 anos. De volta ao Brasil, os pais praticamente não conhecem os filhos pela falta de convívio, mas aos poucos começam a refazer a vida com muitos percalços e frustração, que os levam a tomar uma decisão drástica novamente. O diretor conta a história dos seus pais (e a dele) de uma forma despojada, sincera e nunca invasiva ou piegas, como é costume em documentários de família em que o próprio diretor é também o protagonista. Por isso mesmo, o filme toca e emociona. Apesar de não ter ganhado nenhum prêmio em Tiradentes, Bem-Vindos de Novo foi unanimidade entre as pessoas que tiveram o privilégio de assisti-lo.

Cena do documentário Bem-Vindos de Novo (Foto: Divulgação)

Seguindo Todos os Protocolos (de Fábio Leal)
Um divertido e engenhoso filme sobre os efeitos do confinamento sobre as pessoas durante a pandemia. Francisco, um jovem gay, está cansado de ficar trancado em casa, de ter encontros e namoros apenas virtuais e está desesperado por uma transa real. Decide montar um verdadeiro arsenal sanitário dentro de casa para receber seus pretendentes. Mas, Francisco está “panicado” com a Covid e as coisas não saem exatamente como ele espera. O filme traz um olhar explícito sobre as relações afetivo-sexuais em tempos líquidos e digitais. Fábio Leal é diretor, roteirista e ator da nova safra de cineastas do polo de Pernambuco. Seus curtas-metragens O Porteiro do Dia (2016) e Reforma (2018) passaram por vários festivais no Brasil. Um nome promissor do cinema nacional a ser acompanhado.

Cena do filme Seguindo Todos os Protocolos (Foto: Divulgação)

Germino Pétalas no Asfalto (de Coraci Ruiz e Julio Matos)
Este documentário paulista acompanha o processo de transição de gênero do adolescente Jack Celeste durante 5 anos (de 2016 a 2021). O olhar generoso e habilidoso com que a diretora e o diretor retratam o dia a dia de Jack e amigues faz do espectador um companheiro de viagem nessa jornada um tanto incerta, mas libertadora. Assim, entre trocas de confidência, conversas com médicos e psicólogos, assembleias e passeatas LGBTQIA+, brincadeiras e baladas, reflexões e, acima de tudo, o anseio pela mudança de sexo, acompanhamos o rito de passagem e a transformação de Jack de uma forma muito próxima e real. Num país marcadamente transfóbico e hostil ao diferente como o Brasil, o filme busca desvendar e acolher o que para muitos brasileiros ainda é algo incompreensível ou reprovável.

Jack Celeste em cena de Germino Pétalas no Asfalto (Foto: Divulgação)

Manhã de Domingo (de Bruno Ribeiro)
Este pequeno grande filme acaba de receber o prêmio Urso de Prata de Melhor Curta-Metragem do Júri Internacional no prestigiado Festival de Berlim. O curta acompanha o ensaio solitário da pianista erudita Gabriela para um grande recital. A pianista busca se concentrar, mas imagens de sua mãe recém-falecida lhe vêm à cabeça e passam a preencher o espaço interno que Gabriela precisa para treinar sua música. A protagonista parte, então, para uma jornada rumo ao resgate da memória e do legado da mãe. Um filme de nuances, suaves planos, fotografia impecável que realçam tanto a sobriedade do casarão onde Gabriela ensaia quanto a simplicidade de sua casa de origem, entrelaçando o passado, o presente e o futuro da personagem. Um honrado exemplo do cinema negro brasileiro contemporâneo. O jovem diretor e roteirista do filme, Bruno Ribeiro, dedicou o prêmio à mãe que morreu de Covid.

Cena do curta-metragem Manhã de Domingo (Foto: Divulgação)

Os Primeiros Soldados (de Rodrigo de Oliveira)
O grande mérito deste oportuno longa de ficção do diretor capixaba Rodrigo de Oliveira é retomar a história dos primeiros anos da AIDS no Brasil no início dos anos 80. Quem contraísse o vírus do HIV nos seus primórdios era como uma sentença de morte: pouco se conhecia sobre o vírus e o que era divulgado é que a transmissão se dava pelo contato entre as pessoas via sangue, saliva e, principalmente, pelo contato sexual. Foi um pulo para que os conservadores de plantão no mundo encontrassem os “culpados” pela disseminação: LGBTs, prostitutas e drogadictos, taxados de promíscuos. O filme é muito perspicaz em mostrar como a crença arraigada, o pensamento único e o pavor de contrair um vírus letal leva a uma histeria generalizada e à estigmatização de pessoas mais vulneráveis. Mas, ainda que carregado de emoção e paixão, o filme, centrado em diálogos intensos, peca por interpretações pouco convincentes e histriônicas. À exceção da grande atriz trans Renata Carvalho.

A atriz Renata Carvalho em Os Primeiros Soldados (Foto: Divulgação)

FESTIVAL DE ROTERDÃ

Freda (Haiti/França/Benin – diretora: Gessica Généus)
O Haiti é um dos países mais pobres do mundo e com uma história complexa, repleta de tragédias políticas, econômicas e naturais. Muito auspicioso assistir a um filme de um país periférico e ignorado que retrata essa complexidade de uma forma tão legítima e impactante. Freda é uma estudante de antropologia que vive com a mãe, a irmã e o irmão mais novos num bairro pobre de Port-au-Prince. Em meio ao caos e violência que toma conta das ruas da capital haitiana, Freda busca encontrar seu lugar numa sociedade patriarcal e marcada pela desigualdade social e de gênero. A diretora Gessica Généus consegue mostrar as mazelas do seu país, sem nunca apelar para o panfletarismo maniqueísta ou clichês feministas. E fazer de Freda uma heroína que luta obstinadamente pela liberdade. O Haiti é aqui e ali.

A atriz haitiana Nehémie Bastien em Freda (Foto: Divulgação)

A Human Position (Noruega – diretor: Anders Emblem)
Uma grata surpresa este filme norueguês onde o nada é tudo. Na pacata cidade portuária de Ålesund, a jovem Asta é uma repórter que trabalha num jornal local e mora com uma amiga. A rotina de Asta é marcada por uma aparente apatia e marasmo que parecem emanar de seu interior, contaminando tudo ao seu redor: a casa onde mora, as ruas, o bairro, a cidade, os habitantes e os pequenos eventos cotidianos. Ou será que é o externo que reflete o interior de Asta? O filme é um mosaico de imagens contemplativas e de longos planos que, longe de entediarem o espectador, trazem grandes reflexões sobre as frágeis relações humanas num mundo hipermoderno, ultraconsumista e (pós)pandêmico. Seria esse o tão decantado “novo normal”?

Cena do filme norueguês A Human Position  (Foto: Divulgação)

Freaks Out (Itália – diretor: Gabriele Maineti)
Na Roma de 1943, uma trupe de artistas circenses busca manter sua arte, mas com a ascensão do fascismo e a invasão dos nazistas, suas vidas estão no fio da navalha. Num país ensandecido pela guerra, acompanhamos as tribulações e desventuras de Matilda, que tem o poder de emanar luzes do corpo, e seus amigos Cencio, capaz de domar enxames de insetos e fazer o que quer com eles, e Mario, um homem-lobo com uma força descomunal. Essa trupe excêntrica é perseguida pelo implacável Franz, um pianista de doze dedos, fiel escudeiro de Hitler e com poder de clarividência. Misto de alegoria e filme de guerra, Freaks Out é arrebatador e vigoroso, cheio de excessos e força bruta, como o período da História que retrata.

Cena do filme italiano Freaks Out  (Foto: Divulgação)

El Gran Movimiento (Bolívia, França, Suíça, Catar – diretor: Kiro Russo)
O jovem diretor e roteirista boliviano Kiro Russo talvez seja o cineasta mais conhecido de seu país hoje. Em El Gran Movimiento, Russo retoma o tema do desenraizamento da população mineira e indígena boliviana em seu próprio país. Mesclando ficção e documentário, o filme acompanha a aflitiva trajetória de Elder, filho desempregado de mineiros, que caminha 7 dias com dois amigos para chegar à La Paz na tentativa de achar emprego. Encontram nada mais que bicos mal pagos e Elder contrai uma doença respiratória que inexplicavelmente piora a cada dia. O diretor injeta elementos do realismo fantástico na trama por meio de personagens como Pacha Mamá, que acredita que Elder é um afilhado desaparecido, e um xamã que irá ajudar o jovem em sua doença. Um filme de marcantes contrastes, com a caótica cidade de La Paz como pano de fundo, em contraposição ao movimento de retorno ao lugar de origem e, em última instância, às raízes perdidas.

Cena do filme boliviano El Gran Movimiento  (Foto: Divulgação)

Eami (Paraguai – diretora: Paz Encina)
Como o filme boliviano acima, Eami é outro digno representante latino-americano do Festival de Roterdã deste ano. A diretora paraguaia Paz Encina também é presença assídua nos grandes festivais internacionais e seus filmes buscam dar voz às populações invisibilizadas de seu país. Desta vez, ela mergulha no mundo e na mitologia do povo indígena Ayoreo-Totobiesogode, habitantes da remota região do Chaco paraguaio. O filme é todo falado em língua local e narrado em um tom quase profético para contar uma história repetida de agressão aos povos indígenas: a destruição de seu habitat e a desintegração da sua cultura. Envolta em imagens oníricas, a pequena Eami, que no idioma ayoreo significa floresta ou mundo, se transforma no pássaro-deus e vagueia pela mata à procura de alguém ou algo que restou.

Cena do documentário paraguaio Eami (Foto: Divulgação)

Neptune Frost (Ruanda/EUA/França – diretores: Saul Williams/Anisia Uzeyma)
Com aura de filme cult, Neptune Frost toma de assalto os sentidos com imagens, sons e movimentos alucinantes e hipnóticos. Um grupo de hackers escapa do local opressivo de trabalho semi-escravo numa mina de coltan (a matéria-prima de computadores e smartphones) em Ruanda e se esconde numa colina. Ali, os rebeldes criam uma comunidade altamente avançada em termos de tecnologia e consciência. Passam a chantagear os fabricantes de computadores para que a tecnologia seja utilizada de forma a libertar a humanidade da opressão e da injustiça. Feito com um orçamento baixíssimo e muita criatividade, esta comédia musical punk afrofuturista não é para todos os gostos, mas não deixa ninguém indiferente.

O ator ruandês Elvis Ngabo em Neptune Frost (Foto: Divulgação)

Vários filmes exibidos em Tiradentes estarão no CineSesc entre 17 de 23 de março na Mostra Tiradentes em SP. Alguns filmes de Roterdã provavelmente serão lançados comercialmente nos cinemas ou online, ou ainda em festivais brasileiros como Olhar de Cinema de Curitiba ou Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Para saber mais:
Mostra de Tiradentes – http://www.mostratiradentes.com.br/
Festival de Roterdã – http://www.iffr.com/ (em inglês)

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