BRASIL CONTEMPLADO NO INDIELISBOA

08.05.2022
Por João Moris, de Lisboa

Terminou hoje a 19ª edição do aclamado Festival IndieLisboa de cinema independente. O Brasil foi o grande vencedor do festival deste ano, visto que concorreu apenas com 6 filmes, entre produções nacionais e coproduções, e 4 desses filmes emplacaram prêmios. Este não deixa de ser um feito notável, considerando que a produção de filmes brasileiros está minguando, devido ao desmantelamento da cultura no país engendrada pelo atual governo, e muitos de nossos filmes estão deixando de concorrer em grandes festivais internacionais por falta de incentivos financeiros e estratégicos.

O IndieLisboa busca exibir filmes “fora da caixa”, fazendo jus a sua proposta de “destacar obras que se encontram fora do radar da regular circulação de filmes, moldada pela produção e exibição dominantes.” A edição deste ano foi a primeira totalmente presencial, após a pandemia que assolou o mundo em 2020, e contou com 250 filmes entre longas, médias e curtas metragens, divididos em várias seções (Competição Internacional, Competição Nacional, Silvestre, Novíssimos, IndieMusic, IndieJunior, Director’s Cut, Boca do Inferno e Retrospectivas).

Como é praxe em festivais com programação eclética e experimental, a qualidade dos filmes varia muito, mas para os espectadores ávidos por explorar novas narrativas e linguagens, é possível garimpar pequenas preciosidades.

Abaixo, destaco alguns filmes que vi no IndieLisboa 2022:

Mato Seco em Chamas (Brasil/Portugal – diretores: Adirley Queirós e Joana Pimenta)

O novo filme do incendiário diretor brasiliense Adirley Queirós, codirigido com a portuguesa Joana Pimenta, ganhou dois prêmios no IndieLisboa: Melhor Longa Metragem Português e Grande Prêmio Cidade de Lisboa. Apesar de ser uma coprodução com Portugal, o filme é todo passado na cidade satélite de Ceilândia (DF) e fala de um futuro não muito distante com uma realidade muito presente. A de um Brasil beirando o fascismo, com a extrema-direita ameaçando tomar o poder e o caos instalado nas comunidades empobrecidas do país. O subsolo da favela Sol Nascente é rico em petróleo, que se torna moeda de troca entre gangues rivais. Uma líder local, a gasolineira Chitara, se junta à irmã Léa para garantir seu negócio de venda de gasolina aos motoqueiros da região. Um intenso e tenso docudrama (que mistura documentário e ficção) para contar a história de uma nação pegando fogo e que está longe de extinguir suas chamas.

Cena do docudrama Mato Seco em Chamas (Foto: Divulgação)

Medusa (Brasil – diretora: Anita Rocha da Silveira)

Mais um filme brasileiro premiado no IndieLisboa (Prêmio Especial do Júri) que fala de um Brasil distópico, desta vez assolado por um Estado ultraconservador onde o fundamentalismo cristão predomina em vários setores da sociedade, que se organizam em grupos justiceiros “por Jesus”, atacando e aniquilando qualquer pessoa que julgam ameaçadora à sua moral e ordem. Nos últimos anos, alguns filmes brasileiros (como Divino Amor, de 2019) e muitos estrangeiros vêm retratando esse avanço religioso-conservador no mundo. Neste caso, em que pese a força das imagens gerando uma tensão permanente, Medusa se perde no registro ora naturalista, ora evocando o gênero terror, ora em tom de fábula apocalíptica, num emaranhado de diálogos e explicações que enfraquecem a trama e cansam o espectador. Ainda assim, um filme para ver e refletir.

Cena do filme Medusa (Foto: Divulgação)

Escasso (Brasil – diretoras: Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles)

Um pequeno grande filme brasileiro que merecidamente ganhou o Prêmio de Melhor Curta Metragem de Ficção do IndieLisboa. O curta é um típico “mockumentary” (documentário falso) e se desenrola no interior de uma casa na Zona Norte do Rio. A dona do imóvel está ausente e a casa é ocupada pela “profissional de pets” Rose, uma carioca falastrona e muito engraçada vinda da comunidade da Pavuna. A protagonista é interpretada por uma das diretoras, Clara Anastácia, e é entrevistada de frente pela equipe de filmagem durante a ocupação. Aos poucos, vamos nos encantando com a Rose, conhecendo suas motivações e seu rico universo. As mazelas que cercam a população negra e marginalizada no Brasil são tratadas de maneira transversal e irônica, mas nunca superficial ou panfletária. As diretoras garantem que a personagem Rose fará parte de uma trilogia. Que venha a Rose!

A protagonista Rose do premiado curta Escasso (Foto: Divulgação)

Urban Solutions (Alemanha/Brasil – diretores: Arne Hector/Luciana Mazeto/Minze Tummescheit/Vinícius Lopes)

Esta curiosa produção germano-brasileira ganhou dois prêmios no IndieLisboa: Melhor Curta Metragem e Prêmio Anistia Internacional. O filme mescla o passado colonial brasileiro, em que um artista europeu escreve sobre suas experiências de viagem ao Brasil, com o momento atual, em que um porteiro de um prédio classe média numa cidade grande brasileira fala do dia a dia dos moradores confinados em apartamentos e o significado de sua profissão. Em ambos os casos, o retrato de um Brasil que hesita em evoluir. O filme fez parte da programação do Festival de Roterdã em fevereiro de 2022.

Cena do curta germano-brasileiro Urban Solutions (Foto: Divulgação)

Detours (Rússia/Países Baixos – diretores: Ekaterina Selenkina e Alexey Kurbatov)

Uma grande cidade, um bairro, um quarteirão, uma praça, uma rua na Rússia atual. A câmera fixa capta movimentos insuspeitos de seus habitantes, pessoas comuns e anônimas, transitando pelo ambiente urbano, aparentemente ermo. Mas, quem é esse rapaz loiro que vira e mexe cruza a câmera? O que ele faz? Qual sua intenção? Quem são as pessoas que encontra? Detours (Desvios) traz um olhar estático e extático à onipresença de um estado opressor sobre a vida de seus cidadãos, desvendando parte do mundo do tráfico de drogas de Moscou, que à distância parece invisível, mas que de perto, se agita na ilegalidade dos encontros propiciados pela darknet. Um filme instigante que permite várias reflexões sobre as relações na e com a cidade.

Cena do filme russo Detours (Foto: Divulgação)

Freda (Haiti/França/Benin – diretora: Gessica Généus)

O Haiti é um dos países mais pobres do mundo e com uma história complexa, repleta de tragédias políticas, econômicas e naturais. Muito auspicioso assistir a um filme de um país periférico e ignorado que retrata essa complexidade de uma forma tão legítima e impactante. Freda é uma estudante de antropologia que vive com a mãe, a irmã e o irmão mais novos num bairro pobre de Port-au-Prince. Em meio ao caos e violência que toma conta das ruas da capital haitiana, Freda busca encontrar seu lugar numa sociedade patriarcal e marcada pela desigualdade social e de gênero. A diretora Gessica Généus consegue mostrar as mazelas do seu país, sem nunca apelar para o panfletarismo maniqueísta ou clichês feministas. E fazer de Freda uma heroína que luta obstinadamente pela liberdade. O Haiti é aqui e ali. Este filme foi exibido no Festival de Roterdã em janeiro de 2022 e faz parte da programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

A atriz haitiana Nehémie Bastien em Freda (Foto: Divulgação)

Convenience Store (Rússia/Eslovênia/Turquia – dir. Michael Borodin)

Mais um filme potente sobre imigrantes pobres que buscam fugir de uma vida opressiva em seus países de origem e, na maioria das vezes, encontram situações piores no país hospedeiro. No filme, a jovem e frágil Mukhabbat, do Uzbequistão, trabalha juntamente com outras jovens de seu país numa loja de conveniência de Moscou. Para servir os clientes e autoridades locais e gozar de privilégios dentro do rígido sistema russo, a dona do estabelecimento, também de origem uzbeque, mantém as jovens trabalhando e morando no local em condições degradantes e abusivas. No desespero de escapar da dura realidade, as jovens tomam uma atitude extremada. Mas, a que preço? Um dos trunfos do filme é mostrar o nível de violência a que essas mulheres são submetidas sem apelar para cenas gráficas e gratuitas.

Cena do filme russo-esloveno Convenience Store (Foto: Divulgação)

Coma (França – diretor: Bertrand Bonello)

O renomado diretor francês Bertrand Bonello (que dirigiu Nocturama, Saint Laurent e L’Apollonide) foi um dos nomes mais badalados do IndieLisboa 2022. O filme Coma foi feito durante a pandemia e é dedicado à filha adolescente de Bonello. O longa é uma ode melancólica ao período de isolamento social e mostra o estado ora de angústia, ora de devaneio, ora catatônico, ora eufórico da jovem Patricia Coma, que completa 18 anos trancada em casa. A garota passa o dia interagindo com a tecnologia digital e com seus amigos online e lança mão da fantasia, da imaginação e do sonho como recurso para lidar com seus desejos, frustrações e ansiedades. Um retrato certeiro do turbilhão de emoções que tomou de sobressalto a vida da maioria das pessoas no planeta durante o confinamento. O filme integra a programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

A atriz Julia Faure em cena do filme Coma (Foto: Divulgação)

El Gran Movimiento (Bolívia, França, Suíça, Catar – diretor: Kiro Russo)

O jovem diretor e roteirista boliviano Kiro Russo talvez seja o cineasta mais conhecido de seu país hoje. Em El Gran Movimiento, Russo retoma o tema do desenraizamento da população mineira e indígena boliviana em seu próprio país. Mesclando ficção e documentário, o filme acompanha a aflitiva trajetória de Elder, filho desempregado de mineiros, que caminha 7 dias com dois amigos para chegar à La Paz na tentativa de achar emprego. Encontram nada mais que bicos mal pagos e Elder contrai uma doença respiratória que inexplicavelmente piora a cada dia. O diretor injeta elementos do realismo fantástico na trama por meio de personagens como Pacha Mamá, que acredita que Elder é um afilhado desaparecido, e um xamã que irá ajudar o jovem em sua doença. Um filme de marcantes contrastes, com a caótica cidade de La Paz como pano de fundo, em contraposição ao movimento de retorno ao lugar de origem e, em última instância, às raízes perdidas. O filme ganhou Menção Especial no IndieLisboa, foi exibido no Festival de Roterdã em janeiro de 2022 e faz parte da programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

Cena do filme boliviano El Gran Movimiento (Foto: Divulgação)

Spider / Bear / Shark (Austrália – diretor: Nash Edgerton)

Faço uma menção especial a esta divertida trilogia de curtas metragens do cineasta australiano Nash Edgerton, protagonizados por ele mesmo. Para estes curtas, que fizeram parte da Seção Boca do Inferno do IndieLisboa, o diretor criou Jack, um personagem meio bobalhão, desajeitado, afável, mas com muitos resquícios do machista australiano, que na busca por agradar a(s) namorada(s) se mete em situações sempre hilárias ou surreais. Os filmes envolvem cenas ou alusões aos animais do título (aranha, urso e tubarão). Seria Jack um alter ego do típico homem australiano? Além de fazer uma sátira à chamada masculinidade tóxica, o diretor não deixa de dar umas alfinetadas em estereótipos feministas.
 
O protagonista Jack do filme Bear de Nash Edgerton (Foto: Divulgação)

Frágil (Portugal – diretor: Pedro Henrique)

Entre os vários filmes portugueses exibidos no IndieLisboa, destaco este longa do jovem diretor Pedro Henrique por trazer uma curiosidade. A exibição do filme foi precedida por uma longo discurso (“protesto-performance”), sob vaias e aplausos da plateia, com duras críticas aos órgãos de cinema portugueses, aos festivais de cinema e ao próprio IndieLisboa, acusando-os de promover uma cultura de precariedade na indústria cinematográfica portuguesa. O inusitado é um realizador ler um discurso tão longo (ao menos 30 minutos) no palco de um festival antes da estreia do seu filme, sob o olhar complacente dos organizadores. O filme em si é uma tentativa de mostrar jovens amigos (todos brancos e homens) se rebelando contra o sistema, vagando de balada em balada na noite clubber lisboeta. Realmente, muito frágil!

Cena do filme português Frágil (Foto: Divulgação)

Para saber mais sobre o Festival IndieLisboa: https://indielisboa.com/

08.05.2022
Por João Moris, de Lisboa

Terminou hoje a 19ª edição do aclamado Festival IndieLisboa de cinema independente. O Brasil foi o grande vencedor do festival deste ano, visto que concorreu apenas com 6 filmes, entre produções nacionais e coproduções, e 4 desses filmes emplacaram prêmios. Este não deixa de ser um feito notável, considerando que a produção de filmes brasileiros está minguando, devido ao desmantelamento da cultura no país engendrada pelo atual governo, e muitos de nossos filmes estão deixando de concorrer em grandes festivais internacionais por falta de incentivos financeiros e estratégicos.

O IndieLisboa busca exibir filmes “fora da caixa”, fazendo jus a sua proposta de “destacar obras que se encontram fora do radar da regular circulação de filmes, moldada pela produção e exibição dominantes.” A edição deste ano foi a primeira totalmente presencial, após a pandemia que assolou o mundo em 2020, e contou com 250 filmes entre longas, médias e curtas metragens, divididos em várias seções (Competição Internacional, Competição Nacional, Silvestre, Novíssimos, IndieMusic, IndieJunior, Director’s Cut, Boca do Inferno e Retrospectivas).

Como é praxe em festivais com programação eclética e experimental, a qualidade dos filmes varia muito, mas para os espectadores ávidos por explorar novas narrativas e linguagens, é possível garimpar pequenas preciosidades.

Abaixo, destaco alguns filmes que vi no IndieLisboa 2022:

Mato Seco em Chamas (Brasil/Portugal – diretores: Adirley Queirós e Joana Pimenta)

O novo filme do incendiário diretor brasiliense Adirley Queirós, codirigido com a portuguesa Joana Pimenta, ganhou dois prêmios no IndieLisboa: Melhor Longa Metragem Português e Grande Prêmio Cidade de Lisboa. Apesar de ser uma coprodução com Portugal, o filme é todo passado na cidade satélite de Ceilândia (DF) e fala de um futuro não muito distante com uma realidade muito presente. A de um Brasil beirando o fascismo, com a extrema-direita ameaçando tomar o poder e o caos instalado nas comunidades empobrecidas do país. O subsolo da favela Sol Nascente é rico em petróleo, que se torna moeda de troca entre gangues rivais. Uma líder local, a gasolineira Chitara, se junta à irmã Léa para garantir seu negócio de venda de gasolina aos motoqueiros da região. Um intenso e tenso docudrama (que mistura documentário e ficção) para contar a história de uma nação pegando fogo e que está longe de extinguir suas chamas.

Cena do docudrama Mato Seco em Chamas (Foto: Divulgação)

Medusa (Brasil – diretora: Anita Rocha da Silveira)

Mais um filme brasileiro premiado no IndieLisboa (Prêmio Especial do Júri) que fala de um Brasil distópico, desta vez assolado por um Estado ultraconservador onde o fundamentalismo cristão predomina em vários setores da sociedade, que se organizam em grupos justiceiros “por Jesus”, atacando e aniquilando qualquer pessoa que julgam ameaçadora à sua moral e ordem. Nos últimos anos, alguns filmes brasileiros (como Divino Amor, de 2019) e muitos estrangeiros vêm retratando esse avanço religioso-conservador no mundo. Neste caso, em que pese a força das imagens gerando uma tensão permanente, Medusa se perde no registro ora naturalista, ora evocando o gênero terror, ora em tom de fábula apocalíptica, num emaranhado de diálogos e explicações que enfraquecem a trama e cansam o espectador. Ainda assim, um filme para ver e refletir.

Cena do filme Medusa (Foto: Divulgação)

Escasso (Brasil – diretoras: Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles)

Um pequeno grande filme brasileiro que merecidamente ganhou o Prêmio de Melhor Curta Metragem de Ficção do IndieLisboa. O curta é um típico “mockumentary” (documentário falso) e se desenrola no interior de uma casa na Zona Norte do Rio. A dona do imóvel está ausente e a casa é ocupada pela “profissional de pets” Rose, uma carioca falastrona e muito engraçada vinda da comunidade da Pavuna. A protagonista é interpretada por uma das diretoras, Clara Anastácia, e é entrevistada de frente pela equipe de filmagem durante a ocupação. Aos poucos, vamos nos encantando com a Rose, conhecendo suas motivações e seu rico universo. As mazelas que cercam a população negra e marginalizada no Brasil são tratadas de maneira transversal e irônica, mas nunca superficial ou panfletária. As diretoras garantem que a personagem Rose fará parte de uma trilogia. Que venha a Rose!

A protagonista Rose do premiado curta Escasso (Foto: Divulgação)

Urban Solutions (Alemanha/Brasil – diretores: Arne Hector/Luciana Mazeto/Minze Tummescheit/Vinícius Lopes)

Esta curiosa produção germano-brasileira ganhou dois prêmios no IndieLisboa: Melhor Curta Metragem e Prêmio Anistia Internacional. O filme mescla o passado colonial brasileiro, em que um artista europeu escreve sobre suas experiências de viagem ao Brasil, com o momento atual, em que um porteiro de um prédio classe média numa cidade grande brasileira fala do dia a dia dos moradores confinados em apartamentos e o significado de sua profissão. Em ambos os casos, o retrato de um Brasil que hesita em evoluir. O filme fez parte da programação do Festival de Roterdã em fevereiro de 2022.

Cena do curta germano-brasileiro Urban Solutions (Foto: Divulgação)

Detours (Rússia/Países Baixos – diretores: Ekaterina Selenkina e Alexey Kurbatov)

Uma grande cidade, um bairro, um quarteirão, uma praça, uma rua na Rússia atual. A câmera fixa capta movimentos insuspeitos de seus habitantes, pessoas comuns e anônimas, transitando pelo ambiente urbano, aparentemente ermo. Mas, quem é esse rapaz loiro que vira e mexe cruza a câmera? O que ele faz? Qual sua intenção? Quem são as pessoas que encontra? Detours (Desvios) traz um olhar estático e extático à onipresença de um estado opressor sobre a vida de seus cidadãos, desvendando parte do mundo do tráfico de drogas de Moscou, que à distância parece invisível, mas que de perto, se agita na ilegalidade dos encontros propiciados pela darknet. Um filme instigante que permite várias reflexões sobre as relações na e com a cidade.

Cena do filme russo Detours (Foto: Divulgação)

Freda (Haiti/França/Benin – diretora: Gessica Généus)

O Haiti é um dos países mais pobres do mundo e com uma história complexa, repleta de tragédias políticas, econômicas e naturais. Muito auspicioso assistir a um filme de um país periférico e ignorado que retrata essa complexidade de uma forma tão legítima e impactante. Freda é uma estudante de antropologia que vive com a mãe, a irmã e o irmão mais novos num bairro pobre de Port-au-Prince. Em meio ao caos e violência que toma conta das ruas da capital haitiana, Freda busca encontrar seu lugar numa sociedade patriarcal e marcada pela desigualdade social e de gênero. A diretora Gessica Généus consegue mostrar as mazelas do seu país, sem nunca apelar para o panfletarismo maniqueísta ou clichês feministas. E fazer de Freda uma heroína que luta obstinadamente pela liberdade. O Haiti é aqui e ali. Este filme foi exibido no Festival de Roterdã em janeiro de 2022 e faz parte da programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

A atriz haitiana Nehémie Bastien em Freda (Foto: Divulgação)

Convenience Store (Rússia/Eslovênia/Turquia – dir. Michael Borodin)

Mais um filme potente sobre imigrantes pobres que buscam fugir de uma vida opressiva em seus países de origem e, na maioria das vezes, encontram situações piores no país hospedeiro. No filme, a jovem e frágil Mukhabbat, do Uzbequistão, trabalha juntamente com outras jovens de seu país numa loja de conveniência de Moscou. Para servir os clientes e autoridades locais e gozar de privilégios dentro do rígido sistema russo, a dona do estabelecimento, também de origem uzbeque, mantém as jovens trabalhando e morando no local em condições degradantes e abusivas. No desespero de escapar da dura realidade, as jovens tomam uma atitude extremada. Mas, a que preço? Um dos trunfos do filme é mostrar o nível de violência a que essas mulheres são submetidas sem apelar para cenas gráficas e gratuitas.

Cena do filme russo-esloveno Convenience Store (Foto: Divulgação)

Coma (França – diretor: Bertrand Bonello)

O renomado diretor francês Bertrand Bonello (que dirigiu Nocturama, Saint Laurent e L’Apollonide) foi um dos nomes mais badalados do IndieLisboa 2022. O filme Coma foi feito durante a pandemia e é dedicado à filha adolescente de Bonello. O longa é uma ode melancólica ao período de isolamento social e mostra o estado ora de angústia, ora de devaneio, ora catatônico, ora eufórico da jovem Patricia Coma, que completa 18 anos trancada em casa. A garota passa o dia interagindo com a tecnologia digital e com seus amigos online e lança mão da fantasia, da imaginação e do sonho como recurso para lidar com seus desejos, frustrações e ansiedades. Um retrato certeiro do turbilhão de emoções que tomou de sobressalto a vida da maioria das pessoas no planeta durante o confinamento. O filme integra a programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

A atriz Julia Faure em cena do filme Coma (Foto: Divulgação)

El Gran Movimiento (Bolívia, França, Suíça, Catar – diretor: Kiro Russo)

O jovem diretor e roteirista boliviano Kiro Russo talvez seja o cineasta mais conhecido de seu país hoje. Em El Gran Movimiento, Russo retoma o tema do desenraizamento da população mineira e indígena boliviana em seu próprio país. Mesclando ficção e documentário, o filme acompanha a aflitiva trajetória de Elder, filho desempregado de mineiros, que caminha 7 dias com dois amigos para chegar à La Paz na tentativa de achar emprego. Encontram nada mais que bicos mal pagos e Elder contrai uma doença respiratória que inexplicavelmente piora a cada dia. O diretor injeta elementos do realismo fantástico na trama por meio de personagens como Pacha Mamá, que acredita que Elder é um afilhado desaparecido, e um xamã que irá ajudar o jovem em sua doença. Um filme de marcantes contrastes, com a caótica cidade de La Paz como pano de fundo, em contraposição ao movimento de retorno ao lugar de origem e, em última instância, às raízes perdidas. O filme ganhou Menção Especial no IndieLisboa, foi exibido no Festival de Roterdã em janeiro de 2022 e faz parte da programação do Festival Olhar de Cinema de Curitiba em junho.

Cena do filme boliviano El Gran Movimiento (Foto: Divulgação)

Spider / Bear / Shark (Austrália – diretor: Nash Edgerton)

Faço uma menção especial a esta divertida trilogia de curtas metragens do cineasta australiano Nash Edgerton, protagonizados por ele mesmo. Para estes curtas, que fizeram parte da Seção Boca do Inferno do IndieLisboa, o diretor criou Jack, um personagem meio bobalhão, desajeitado, afável, mas com muitos resquícios do machista australiano, que na busca por agradar a(s) namorada(s) se mete em situações sempre hilárias ou surreais. Os filmes envolvem cenas ou alusões aos animais do título (aranha, urso e tubarão). Seria Jack um alter ego do típico homem australiano? Além de fazer uma sátira à chamada masculinidade tóxica, o diretor não deixa de dar umas alfinetadas em estereótipos feministas.
 
O protagonista Jack do filme Bear de Nash Edgerton (Foto: Divulgação)

Frágil (Portugal – diretor: Pedro Henrique)

Entre os vários filmes portugueses exibidos no IndieLisboa, destaco este longa do jovem diretor Pedro Henrique por trazer uma curiosidade. A exibição do filme foi precedida por uma longo discurso (“protesto-performance”), sob vaias e aplausos da plateia, com duras críticas aos órgãos de cinema portugueses, aos festivais de cinema e ao próprio IndieLisboa, acusando-os de promover uma cultura de precariedade na indústria cinematográfica portuguesa. O inusitado é um realizador ler um discurso tão longo (ao menos 30 minutos) no palco de um festival antes da estreia do seu filme, sob o olhar complacente dos organizadores. O filme em si é uma tentativa de mostrar jovens amigos (todos brancos e homens) se rebelando contra o sistema, vagando de balada em balada na noite clubber lisboeta. Realmente, muito frágil!

Cena do filme português Frágil (Foto: Divulgação)

Para saber mais sobre o Festival IndieLisboa: https://indielisboa.com/

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