Ecos da Discussão de 10.01.2013
por Cláudia Mogadouro
Juro que tentarei escrever os ecos das discussões deste ano. Assim, todos os amigos do grupo poderão, ao menos, imaginar as intensas e saborosas conversas que travamos aos domingos à tarde (saborosas, inclusive, porque há indizíveis iguarias).
Antes da discussão propriamente dita, iniciamos nosso primeiro encontro do ano, em 13/01/2013, com a re-exibiçãodo curta Recife Frio,muito apreciado pelo grupo no ano passado, por ser também do diretor Kleber Mendonça Filho. Este e outros curtas sobre os quais comentamos, como Eletrodoméstica, podem ser vistos no site www.portacurtas.com.br. Falamos também do seu primeiro longa, o documentário Críticos, sobre a crítica cinematográfica (trabalho de conclusão de curso de jornalismo de Kleber). Contextualizamos sua obra como parte da ótima safra de cinema realizada em Pernambuco, talvez o movimento mais criativo no Brasil, atualmente.
O Som ao Redor é seu primeiro filme longa metragem de ficção, que tem obtido sucesso em festivais (muitos prêmios aqui e no exterior), de crítica e de público (dentro do que é possível no cenário do cinema brasileiro atual). Entendemos que o jovem diretor (ex-crítico) já apresenta uma marca autoral e tem algo a dizer sobre alguns temas recorrentes, entre eles: a decadência da cidade de Recife e a crescente verticalização; o coronelismo ainda presente na sociedade nordestina e a hipocrisia da classe média recifense, que se acha moderna e arejada. Em O Som ao Redor, ele avança e aprimora esse viés crítico e sarcástico, especialmente no que tange às relações de classe. Ainda, demonstra profundo conhecimento de cinema, ao nos mostrar que quase sempre prestamos atenção apenas à imagem, sendo que audiovisual também é som.
Foi inevitável que comentássemos bastante sobre a sonorização e a trilha sonora (ou ausência dela). O filme nos provoca muito estranhamento, pois o som é exacerbado e, a ausência de trilha extra diegética nos mantém como observadores distantes. No cinema clássico, a trilha sonora narrativa funciona para nos emocionar e nos levar para dentro do filme. A música e a sonorização diegética (dentro da cena) é propositadamente estridente e desconcertante, nos deixando em permanente estado de alerta. Rianete comentou que não conseguiu se envolver, como se houvesse uma parede de vidro que a excluísse, como se não tivesse sido convidada para o filme. Esther e Elza também se sentiram assim.
Uma cena bem discutida foi a da cachoeira. Marcos desejou que ela fosse mais longa, pois, além de ser linda plasticamente, é um momento de catarse, a hora do grito. Leonor e Mônica lembraram que ela remete a quadros do pintor Francis Bacon. O vermelho talvez esteja revelando o sangue por traz daquelas relações seculares de desigualdade dos engenhos nordestinos. Toda a sequência das cenas do engenho mostra a decadência desse segmento social dominante (econômico-cultural-político), representado por Francisco. A arrogância do personagem (que mergulha no mar com tubarões e sai ileso) mostra a prepotência de um poder que não percebe sua sutil derrocada e que está atualizado em personagens travestidos de modernos, como o simpático João. Nessa sequência, o som também adquire sabor especial, pois resvala no sobrenatural, mas se mantém como registro histórico. Assim como as fotos do início do filme, que denunciam a exploração dos trabalhadores da terra, os sons do passado habitam a velha casa e o velho cinema (gritos dos filmes de terror que se mesclam ao som das crianças da escola). A rapidez das cenas e o inusitado da narração sonora nos dão uma sensação de insegurança, que é naturalizada em nosso cotidiano. O som é uma eterna e onipresente ameaça a uma classe média alienada e desavisada, que acredita que as infinitas câmeras as protegerão dos pobres, dos moleques da rua, do porteiro sonolento, do ladrão de toca-fitas (que faz parte da elite) e de todas as supostas ameaças à sua estabilidade.
A alienação dessa classe privilegiada, que se vê obrigada a interagir – numa sociedade em mutação – com pobres que estão ganhando voz, é ironizada também na personagem Bia (muito bem interpretada por Maeve Jinkings) que não consegue dormir (teoricamente por conta do som do cachorro que uiva). Bia está insatisfeita com a vida besta que leva: casamento assexuado, filhos que estudam inglês e chinês, TV de tela plana com boas dimensões...Situação que ela enfrenta com maconha e remédios para dormir. Na forma, o filme tem como base a exacerbação do som como elemento narrativo. Na temática, o grupo achou que a questão essencial são as relações de classe. Lembramos que, em entrevista, o diretor conta que os estudos de sua mãe – historiadora e pesquisadora das relações coloniais do nordeste – foram fundamentais na suaformação. No início da reunião, Cristina manifestou-se dizendo que nada havia mudado nas relações de classe daquela (nossa) sociedade. O poder do dono do engenho se transferiu para o dono da rua, em Recife. E que tanto fazia a escravidão ou não, as relações de trabalho continuavam as mesmas. Mas ela mesma, ao final do nosso debate, mudou de ideia. Ela reconhece que o filme mostra a cegueira dessa classe dominante que não se dá conta de que algo mudou e quem está dando as cartas são, agora, os explorados. De nada adiantam as câmeras. Excelente reunião, começamos bem o ano!
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