Ganhar o Mundo

19.04.2015
por Rianete Lopes Botelho


O filme Ida, do polonês Pawel Kowski, me levou a pensar sobre a questão das escolhas que a vida nos impõe. O animal humano é o único que tem a liberdade de escolher seus caminhos, de modificar sua trajetória e até de transformar o mundo. Com erros e acertos, o mundo que temos é fruto de nossas escolhas. É inegável o papel do homem nas mudanças não só no planeta, mas também no modo de relação entre as pessoas e entre grupos sociais. Os outros animais se limitam a cumprir seu destino pré-traçado pela natureza, apenas repetindo o que seus antepassados sempre fizeram, sem nada inovar, sem se indisporem contra o rumo de suas vidas e muito menos sem escolherem fazer diferente. Essa importante capacidade humana, de poder exercer sua liberdade através da escolha dentre os constantes dilemas que a vida coloca, é fonte de muita angústia. Tanto que muitos de nós procuram se enganar, tentando não fazer escolhas, se omitindo de tomar decisões. Mas, na verdade, mesmo quando nos omitimos, estamos tomando uma posição, fazendo uma escolha, ou seja, a de deixar como está. Estamos, assim, compactuando com o status quo e contribuindo para dificultar qualquer possibilidade de mudança.

Quanto mais liberdade conquistamos, mais angústia temos diante da constatação trágica de nossa responsabilidade e, também, a de que nossa liberdade é apenas a de escolher e não a de garantir que tudo dará certo. Continuamos não tendo nenhum poder sobre as circunstâncias que interferem em cada uma de nossas decisões.

Ida é o nome da personagem principal do filme. Ela é uma noviça que viveu, desde criança, num convento e nada sabe da vida lá fora, nem de sua família. Seu mundo é restrito ao convento. O filme começa às vésperas de Ida fazer os votos para se tornar freira. Conhece então uma tia, sua única parente, com quem vai conviver por algum tempo antes de tomar a decisão final de cortar ou não todos os laços com o mundo exterior. 

Em conversas com sua tia, Ida fica sabendo que seus pais e seu irmão, por serem judeus, tinham sido caçados e mortos durante a perseguição nazista na Polônia. E o mais grave foi isso ter ocorrido em 1945 (quando a guerra já tinha acabado) e terem sido seus compatriotas poloneses que se encarregaram da delação, caça e extermínio da família. Seus pais conseguiram salvá-la deixando-a no convento - e nesse ponto, fica claro para nós que Ida não estava no convento por vocação religiosa. Ida e sua tia saem em busca do túmulo onde a família estaria enterrada e do esclarecimento sobre o delator que os levou à morte.

É nítido o contraste entre o recato de Ida e a exuberância de sua tia, extrovertida e até extravagante, sempre fumando e bebendo, enquanto busca aproveitar ao máximo os prazeres da vida. Acho que o contraste é intencional para mostrar a diferença entre uma sociedade fechada e outra bem mais complexa, em que coexiste tanta diversidade de valores. 

Todos nós tendemos a interpretar a realidade de acordo com o grupo social no qual fomos criados. A estrutura de nosso pensamento simbólico é mediada por aquela construção social. Numa sociedade fechada, seus integrantes normalmente pensam e interpretam o mundo de uma única maneira, não havendo muito espaço para discordâncias. Nas sociedades abertas, complexas, compostas de vários subgrupos, com suas respectivas variações que se intercomunicam, as possibilidades de escolha também se multiplicam, o que torna a vida das pessoas mais complicada. Dentro de uma mesma sociedade há valores diferentes conforme a classe social a que se pertence, as diversas religiões, grupos políticos, nível de escolaridade, etc. Assim, o sentido atribuído às coisas, com roteiro de certo e errado pode variar de acordo com cada subgrupo. Estamos falando de liberdade e da decorrente possibilidade de escolha que ela traz. Isso implica que cada qual seja responsável por suas opções e não mero seguidor obediente de uma única norma vigente. Dessa forma, a tão desejada liberdade cobra sempre o ônus das escolhas que fazemos. 

Mesmo em sociedades abertas há pessoas que, por acomodação ou medo, cumprem cegamente normas já decididas, enquanto outras ousam assumir o papel de sujeito e se arriscam a questioná-las. A atitude do primeiro grupo é semelhante à daquelas pessoas que evitam amar para não sofrerem, e não percebem que, se privando da dor, também se privam de viver experiências de felicidade que só o amor é capaz de dar. 

Ida toma contato com a vida mundana e desperta o interesse de um homem atraente. Em um ponto do filme, ela se descontrói como noviça e se dispõe a viver um relacionamento amoroso com aquele músico sedutor, como se quisesse escrever a própria história. Ida volta ao convento vestida de noviça, mas não faz os votos no dia marcado. Continua no convento, talvez para ter mais tempo de tomar a sua decisão, que não sabemos qual será. 

O que importa é que parece ter havido uma possibilidade de escolha que não existia no começo do filme, quando não havia dúvidas quanto ao seu futuro. Acho que, nesse ponto, há uma referência metafórica à saída da criança do mundo protegido da infância para a entrada na vida adulta, cheia de tentações, promessas, descobertas, perigos e, principalmente de liberdade de escolhas constantes, que fazem o prazer e a dor de viver. Quando eu era menina me lembro de que minha avó respondia à minha mãe quando esta lhe perguntava:

- Onde estão as meninas? ( eu e minhas duas irmãs)
- Foram ganhar o mundo!


Na época, eu entendia que "ganhar o mundo" era simplesmente sair pra brincar. Hoje eu percebo o sábio sentido da expressão: quanto mais a gente vai conhecendo o mundo, mais a gente o ganha e mais opções de escolha vão aparecendo. E é também uma ampliação do nosso mundo interno. Penso que as frequentes referências à saudade da inocência perdida da infância tem a ver, não com o tempo feliz daquela época - a gente sabe que ser criança não é sinônimo de ser feliz -, mas sim com a perda da inocência do tempo em que não sofríamos a angústia das escolhas. O filme mostra que o crescimento, o amadurecimento implica no questionamento de nossas certezas, o que não é nada confortável... 

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