Cidades Personagem

11.12.2015
por Cláudia Mogadouro

Há filmes em que a cidade é tão importante que passa a ser um personagem

Imaginemos a seguinte situação: um amigo estrangeiro vem passar uns dias com você, para conhecer sua cidade. Você escolhe os lugares que ele poderá gostar. Se a sua cidade é pequena será possível mostrar a cidade toda. Se for uma metrópole, você vai ter que fazer uma escolha a partir do seu gosto pessoal e dos interesses do seu amigo. Provavelmente, você vai querer levá-lo a lugares que considera agradáveis, bonitos, arborizados, pontos turísticos e representativos da cultura local. E seu amigo ficará com a impressão da cidade a partir desses lugares. Se você só mostrar a ele os bairros nobres e as belas construções, ele poderá ficar com a impressão de que não há pobreza na cidade. Portanto, tudo depende do recorte, das escolhas que fizermos.

Também é assim no cinema. Podemos conhecer o mundo pelo cinema, mas é sempre bom lembrar que os recortes (enquadramentos, escolha de locações) são escolhas do cineasta. Ele é o guia turístico da sua viagem cinematográfica. Há filmes que propositadamente se passam em locais indefinidos e, também, em tempos indefinidos, o que nos levará a pensar sobre as relações humanas como um todo. Outros filmes tratam marcadamente da cultura local, portanto, o cenário é importantíssimo para localizar o espectador. Muitas vezes, o filme tem início com um grande plano geral da cidade, anunciando ao espectador a moldura da história.

Ugo Giorgetti, em Pizza (2005)

Há cineastas que fazem filmes sobre cidades, documentário ou ficção. A cidade é um personagem e as pessoas estão ali para falar da cidade. Talvez o cineasta mais paulistano de todos seja Ugo Giorgetti, que apresenta sempre aspectos culturais de São Paulo, com um olhar crítico, alertando para a decadência de qualidade de vida e mostrando como o dinheiro se sobrepõe às relações humanas. Vários de seus filmes falam das transformações de São Paulo, como Sábado (1995), que se passa num prédio antigo e deteriorado do centro da cidade, mas que tem um lindo elevador com porta pantográfica, escolhido como locação para um anúncio publicitário “glamouroso”. Em um local fechado, ele fala de inúmeras contradições e desigualdades sociais da cidade.

Outro filme seu que tem São Paulo como centro da história é O Príncipe (2002), além de curtas como Edifício Martinelli (1975) e Campos Elíseos (1973); e médias metragens como Uma Outra Cidade (2000) e Pizza (2005). Neste último, Giorgetti faz um mapa sociológico da cidade de São Paulo a partir do consumo de pizza. O amor pela pizza é praticamente uma unanimidade entre os paulistanos, mas como são as pizzarias nos bairros nobres e nas favelas? Quem elabora os cardápios e quem são os entregadores de pizza? Infelizmente esse filme não está disponível em DVD. Para conhecê-lo, é preciso ficar atento às mostras de cinema nas salas especiais, ou em exibições em alguns canais de TV (como o Canal Curtas, Canal Brasil ou TV Cultura)

Outra cineasta paulistana que insiste em mostrar amorosamente as contradições da cidade é Lina Chamie, cujo filme mais recente Os Amigos (2013) mostra um paralelo entre a odisseia de Ulisses e as aventuras no dia de um paulistano. Todos os seus filmes também articulam o frenesi da cidade com música clássica (a formação inicial da cineasta) como Tônica Dominante (2000), A Via Láctea (2006), São Silvestre (2013). 

Entre muitos filmes em que São Paulo é personagem, há o clássico São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luiz Sérgio Person. Nele, um homem se sente dividido entre seus desejos pessoais e a pressão pela ascensão profissional, no momento em que a indústria se expande na cidade.


[1] O Grupo Cinema Paradiso exibiu esse documentário em nossa festa de aniversário de 17 anos de existência do grupo no CineSesc, em 2012.

Recentemente, o jovem Gregório Graziosi fez uma grande homenagem a São Paulo, no filme Obra (2013), estrelado por Irandhir Santos, com primorosa fotografia em P&B. 

Outras cidades brasileiras também são personagens de filmes. As imagens do Rio de Janeiro, que tem uma geografia generosa, sempre foram usadas como cartão postal do Brasil tanto no cinema como nas telenovelas. O Rio que nelas aparece é a zona sul carioca, o Cristo Redentor e o Leblon. A mesma cidade pode ser vista por outra perspectiva, não necessariamente pessimista, no filme Cidade de Deus (Fernando Meireles e Kátia Lund, 2002). Os episódios de Cinco Vezes Favela – Agora por nós mesmos (vários diretores, 2010), que mostram o morro com muito bom humor e humanidade, apesar dos problemas sociais. 

O cinema brasileiro tem sido brindado nos últimos anos com excelentes filmes produzidos em Pernambuco, que hoje já representa uma escola inovadora. Um filme, dessa safra de grandes cineastas pernambucanos, ganhou destaque internacional e tem a cidade de Recife como centro da trama: O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, fala das relações sociais a partir da organização de um quarteirão da capital.

Adirley Queirós é um cineasta que, aos poucos, tem ganhado destaque no Brasil. O recorte que ele faz para nos apresentar o Distrito Federal mostra sua opção ideológica. Morador da Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, seus filmes são denúncias da organização espacial e cultural da capital brasileira. O diretor insiste em mostrar a periferia para poder discutir as questões sociopolíticas da região. Mostra que Brasília não é só cartão postal desenhado pelo Lúcio Costa com obras de Oscar Niemeyer. Seus filmes A Cidade é uma Só? (2012) e Branco sai, preto fica (2014) receberam vários prêmios em festivais, mas ainda estão longe de se tornarem conhecidos do grande público.


Há muitos filmes internacionais que também nos levam a viajar e conhecer cidades, às vezes como personagem central. É o caso do aclamado Manhattan (1979), de Woody Allen, um apaixonado por Nova York. Mas ele não mostra apenas o glamour da cidade. Filmes como A Era do Rádio (1987) ou A Rosa Púrpura do Cairo (1985) mostram bairros periféricos e nem por isso menos interessantes. Há uns dez anos, Woody Allen aceitou sair da sua cidade e fazer parcerias com produtoras europeias. Fez uma de suas obras-primas em Londres: Match Point (2005), que é um filme denso e sério, com tomadas deslumbrantes de Londres, e uma trilha sonora com óperas (Allen é conhecido por suas trilhas de jazz). Logo depois, em 2008, realizou a comédia Vicky Cristina Barcelona, em que brinca com os estereótipos culturais da loira americana alienada (Scarlett Johansson) e da espanhola brava e maluca (Penélope Cruz). Em 2011, Allen se derrete pela efervescência cultural de Paris, em oposição à vida fútil e consumista dos americanos, com Meia-noite em Paris (maior sucesso comercial de sua carreira). Apesar de o roteiro ter como foco central as diferenças culturais, o filme é uma coletânea de cartões postais de Paris. Os europeus adoraram a presença de Woody Allen por lá e o chamaram para realizar Para Roma com Amor (2012). Sem o mesmo brilho do filme anterior, a comédia diverte, mas parece mais um roteiro turístico. Tanto é que agências de turismo passaram a vender pacotes de passeios nos locais utilizados no filme.


A mesma Barcelona, mostrada com glamour por Woody Allen em Vicky Cristina Barcelona, tem sua periferia mostrada com afeto por Almodóvar em Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e com piedade e denúncia por Alejandro González Iñarritu no tristíssimo e belo filme Biutiful (2010).

Javier Bardem na desolada Barcelona de Iñarritu

Em 2004, a Mostra Internacional de São Paulo, criada e dirigida por Leon Cakoff, convidou vários cineastas internacionais para exibir seu olhar estrangeiro sobre a cidade, em produções de curta metragem, que geraram o documentário Bem-vindo a São Paulo, com narração de Caetano Veloso. 

Um formato parecido foi usado para a produção de Paris, Te Amo (2006), que reuniu 22 diretores do mundo todo, com curtas de cinco minutos, sobre algum aspecto de Paris (nós fomos dignamente representados por Walter Salles e Daniela Thomas, em um dos melhores episódios). Ao contrário dos cartões postais, o filme mostra os vários bairros de Paris, inclusive periféricos e povoados por imigrantes, sempre contando histórias de amor. Na mesma proposta, que já passou a se chamar Cities of Love, já foi feito Nova York, Te Amo (2008) e, em 2014, Rio, Eu Te Amo, com curtas dirigidos por cineastas brasileiros e estrangeiros. 

O cinema pode nos fazer viajar pelo Brasil e pelo mundo. A partir dele, podemos conhecer os cenários e a cultura do Japão, da Austrália, do Senegal, de El Salvador e de Buenos Aires. Mas é sempre bom lembrar que cada filme faz um recorte. Não podemos tomar a parte pelo todo, o que não nos impede de aprender, articular conhecimento e ampliar nossa visão do mundo a partir dos filmes. Os recortes e enquadramentos sempre representam opções estéticas e ideológicas.

Cecilia Roth em Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar

''Artigo escrito e publicado no Portal NET Educação: www.neteducacao.com.br"

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