09.11.2018
Por Cláudia Mogadouro
O Estado Brasileiro é laico. Oficialmente, a separação entre a Igreja e o Estado aconteceu em 1889 com a instauração do regime republicano. Porém, esta separação parece ainda não estar consolidada. Vemos símbolos religiosos em espaços públicos, feriados religiosos na agenda nacional e o ensino religioso nos currículos oficiais de várias cidades e estados. O sistema escolar público reflete essa ambiguidade, embora seja muito importante garantirmos a laicidade da escola.
Temos uma herança religiosa em nosso país, que vem da colonização portuguesa, cuja dominação não se deu apenas na conquista de terras e exploração de nossas riquezas, mas muito fortemente na catequização, o que implicava na aculturação dos índios e imposição da fé católica. Os jesuítas, responsáveis pelo sistema educacional brasileiros por 300 anos, justificavam a escravização dos negros e proibiam qualquer culto que não fosse cristão. Identifica-se nesta tradição jesuítica a mistura entre educação e religião, mas também os preconceitos com as religiões de raízes africanas.
A religião é cultura. Desde a pré-história os mistérios da existência inquietaram os seres humanos e as religiões se constituíram. O termo “religião” é de origem latina e estudiosos dão duas explicações para esta palavra: da palavra “religare”, que se refere à ligação entre o mundo dos humanos e o mundo divino; a outra explicação é que venha do termo também latino “relegere” que quer dizer “reler” e, para muitos, esse significado é interpretado como prestar atenção às leituras, não se enganar, estar certo de ter praticado boas ações, ter feito boas orações. Existem pessoas que vivem tranquilamente sem religião, mas não existe nenhuma sociedade sem religião.
No século XX, muitos foram os estados laicos que se formaram, como é o caso do Brasil, o que significa “imparcialidade em relação aos assuntos religiosos”. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada após a segunda guerra mundial, em 1945, e proclamou, três anos depois, a Declaração Universal dos Direitos do Homem que coloca a liberdade religiosa como uma questão de alta relevância. Em seu parágrafo 18, está:
Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou sua convicção sozinho ou em comum, tanto em público quanto em particular, pelo ensino, práticas, culto e feitura dos rituais
Não é difícil chegarmos à conclusão que liberdade de religião e de não religião é uma questão de direitos humanos, assunto tão caro a toda a sociedade, mas especialmente às escolas. Manter a laicidade da escola não significa não falar de religião, até porque isso seria impossível, já que cabe à escola conservar a cultura construída pela humanidade. Mas a escola não pode professar qualquer tipo de religião e nem escolher uma religião para si, se sobrepondo aos que professam outros cultos e nem permitir manifestações preconceituosas e de intolerância. A escola – pública ou privada – tem que falar da religião como cultura, como parte da História. E, para que seja justa, tem que reconhecer todas as religiões como parte das escolhas dos diferentes indivíduos. Para isso, é preciso conhecer, buscar infinitamente mais conhecimentos sobre a história das religiões e suas manifestações na cultura cotidiana. Como se sabe, o preconceito é fruto da ignorância.
Os educadores naturalmente têm suas opções religiosas ou de não ter religião, mas é preciso uma reflexão muito séria e honesta para que ele consiga discernir o que é sua crença interior e o que são as práticas religiosas automatizadas no cotidiano escolar. Músicas religiosas são cantadas antes da merenda, orações são faladas na sala de aula, o que não deve acontecer em uma escola laica, por respeito a todas as pessoas que não comungam daquela crença.
Por outro lado, o estudo das culturas e das religiões tem que ser preservado, o que representa uma oportunidade muito rica para o desenvolvimento da alteridade e do respeito ao outro. Há relatos de manifestações de intolerância por parte de familiares, especialmente neopentecostais, que não querem que seus filhos estudem a cultura africana, por se tratar de “macumba” ou “coisa do diabo”. Se um professor de Arte ou Educação Física resolver trabalhar a capoeira na escola, alguns familiares se recusam a enviar seus filhos.
A Escola – entendendo-se aqui a gestão escolar e os professores – não pode se curvar a esse tipo de imposição, pois ela tem o dever de cumprir nossa constituição e nossas leis educacionais. No caso da cultura africana, a Lei Federal 10.639 de 9/1/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação incluindo o ensino da História e Cultura Afro-brasileira, como parte obrigatória do currículo. O samba, a capoeira e muitas outras expressões artísticas de origem africana fazem parte da cultura brasileira, por isso é fundamental que esteja no currículo. O fato de uma música popular citar algum termo religioso ou um filme apresentar algum culto não faz disso uma prática religiosa e não pode ser motivo de censura. Isso vale para qualquer expressão cultural. Olhar para a cultura buscando diferenças só vai estimular o fanatismo religioso, portanto, as bases da intolerância e das guerras.
A boa notícia é que há relatos de gestores que estão chamando os pais para esse diálogo tão necessário atualmente. Foi o caso de uma escola que programou uma visita de suas crianças ao Museu Afro Brasil. Sentindo que poderia haver reação preconceituosa por parte de alguns familiares, antecipou-se chamando os pais para explicar o propósito da atividade e a importância da cultura afro-brasileira na formação dos alunos. A adesão ao passeio foi total.
Alguns filmes que abordam a questão da diversidade religiosa podem nos ajudar a construir uma cultura de paz e a conhecer as religiões na perspectiva da cultura e no combate aos preconceitos. O curta metragem Carnaval dos Deuses, de Tata Amaral http://grupocinemaparadiso.hospedagemdesites.ws/cursos/curta_carnaval_dos_deuses_educ_infantil_ensino_fund_1.pdf, apresenta uma conversa espontânea entre crianças, em uma situação de festa carnavalesca na escola. Um dos meninos pertence a uma família judaica e narra a cerimônia de circuncisão de seu irmão menor, despertando a curiosidade de seus colegas. Uma garota não quer participar da festa da escola porque “Carnaval é pecado”. A conversa se desenvolve mostrando de forma saudável o entrecruzamento de discursos e de culturas familiares. Este filme tem sido utilizado por educadores tanto entre as crianças, como nas reuniões de professores e de pais, provocando um debate interessante sobre respeito à diversidade religiosa e de não religião.
O filme Vida de Menina, de Helena Solberg, baseado no livro homônimo de Helena Morley, conta a história de uma menina que vive em Diamantina/MG, no início do século XX. A família de seu pai é protestante e a de sua mãe é católica. Há várias cenas na obra mostrando a importância da escola pública laica, no início do estado republicano, em contraposição à escola católica particular.
Os filmes estrangeiros também abordam essa temática. No espanhol A Língua das Mariposas, de José Luis Cuerda, o menino Moncho está construindo sua visão de mundo a partir da fé católica da mãe e da postura agnóstica e republicana do pai. Seu professor Dom Gregório, de ideologia libertária, é seu grande ídolo. Há uma conversa interessante entre o menino e o professor sobre a existência ou não do inferno. Dom Gregório deixa claro que se trata de um assunto da legislação da família e não da escola. Quando o menino diz ter medo do inferno, o professor tranquiliza o aluno, dizendo que o inferno é o ódio e a crueldade.
O ótimo filme franco-italiano A Culpa é do Fidel, de Julie Gavras, aborda de forma bem humorada a visão de mundo da pequena Anna, que se constrói a partir dos discursos da avó católica, dos pais militantes de esquerda e da babá que é anticomunista. Sua vida escolar reflete a confusão ideológica da família, até que Anna sai da escola católica e vai para a escola pública, portanto, laica.
Alguns filmes nacionais que apresentam a diversidade e o sincretismo religioso no Brasil: os documentários Fé, de Ricardo Dias e Santo Forte, de Eduardo Coutinho e a ficção Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, que conta a história real de um capoeirista na década de 1920. Não custa lembrar que é fundamental que o professor assista aos filmes com antecedência para pensar se são adequados à sua proposta e ao contexto dos alunos. Outros filmes estrangeiros: o premiado Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, co-produção França/ Mauritânia, mostra uma comunidade muçulmana no Mali, que sofre com um grupo de fundamentalistas no poder. O filme mostra muçulmanos de vários matizes, sem os clichês que normalmente relacionam a religião ao terrorismo.
O clássico Gandhi, de Richard Attenborough, apresenta a religião, identificada pelo líder pacifista como de não-violência. Outro clássico conhecido é O Pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci. São filmes longos, talvez pequenos trechos sejam suficientes para apresentar aos alunos a diversidade de olhares religiosos existentes no planeta.
E, por fim, o filme do cineasta britânico Ken Loach Apenas um Beijo, que traz um romance marcado pela intolerância religiosa. O filme se passa na Escócia. Casim é um jovem DJ de origem paquistanesa. Sua família, conforme a tradição muçulmana, arranja seu casamento com uma prima. Mas ele conhece Roisin, professora de música de uma escola católica. O casal sofrerá com os preconceitos tanto de católicos como de muçulmanos para ficarem juntos.
A escola é um espaço estratégico para desconstruirmos estereótipos e preconceitos. Conhecer a história das religiões e reconhecê-la como cultura é um grande passo.
2 comentários:
Claudia, gostei das indicações. Será sempre um desafio falar de religião. Mas desafio a ser enfrentado com urgência. Vivi uma experiência curiosa em uma escola pública de Barueri. Aplicando uma Oficina sobre Mundialidade, patrocinada por uma entidade de padres missionários, me surpreendi com o comentário de alguns funcionários, dizendo que a diretora ia pedir para que um padre fosse benzer a escola. Disse que não era uma boa ideia, pois a escola é laica. Surpresa: não conheciam a palavra!
Boa Tarde, Professora Caudia. Recentemente, em nossa JEIF, a Professora Coordenadora Cátia Silene trouxe para nós a reflexão sobre uma "Escola laica" e a pergunta para todos nós presentes: Vocês acham que as Escolas deveriam proporcionar o Ensino Religioso? Ah! Como sempre, falei demasiadamente... "Cala-te, Boca!". Mas não me contive! Externei o meu ponto de vista... Retornei à minha Infância e ao "meu tempo ginasial", na década de 70, na Cidade de Itabaiana, no interior paraibano. A influência e covivência religiosas eram praticadas en casa, na casa dos meus Avós. E aminha Avó exercicia forte religiosidade sobre todos nós... Já na escola "ginasial", tivemos entre os componentes curriculares ("disciplinas"), o "Ensino Religioso", ministrada por uma Professora Católica e com expressiva atuação na Igreja, naquela Cidade. Estudei no Colégio Técnico Comercial "Dom Bosco", do Jesuíta Dom Bosco? Recebi uma bolsa de estudos, pois não tínhamos condições para estudar no "Colégio Nossa Senhora da Conceição". No colégio "Dom Bosoco", estudei até 1982... Em São Paulo, tive a oportunidade de estudar em colégios públicos, LAICOS, portanto. No entanto, trago para as minhas reflexões o Tema e concordo quando você escreve em seu texto, categórica e lucidamentemente: "...a 'laicidade' nas instituições públicas educacionais devem ser reconhecidas e vivenciadas, pois proporciona à liberdade de escolhas no universo da "religiosidade e, fundamentalmente, no respeito e no acolhimento de pessoas que não as têm e praticam(religião)...". Concordo plenamente, mas penso "o Estado deve ser laico, porém, algumas pessoas não são laicas e outras são... Talvez, a introdução aos Estudos sobre a Filosofia e a História das Religiões, proporcionem a entender e também respeitar a "DIVERSIDADE das/nas Religiões"... Estou a estudar o tema e COMPARTILHAR com as(os) minhas (meus) Colegas Professores e Educandas(os) este assunto em sala de aula. Recorri a 3 leituras, a saber: "Os Direitos Humanos na Sala de Aula: a Ética como tema transversal,(Autores: Professores Ulisses F Araújo, da UNICAMP e o também Professor Júlio de Groppa Aquino, da USP), Ed. Moderna; "Direitos Humanos e Cidadania, do Professor Jurista Dalmo de Abreu Dallari, Editora Moderna e "Educação em Direitos Humanos: sistematização de práticas de Educação Básica, SP 2014, pelo Instituto Suoerior de Filosofia Berthier (IFBE, em parceria com a FAED/UFP (universidade Passo Fundo e pala Secretaria de Direiotos Humanos da Presidência da República. Oportunamente, compartilharei o seu texto com os (as) Colegas Professoras(es) em nossas JEIFs) na EMEF. Deputado Rogê Ferreira, Pq. PanAmericano, DRE P/J (Pirituba e Jaraguá). A referência de Filmes que você fez, certamente, será primordial para as nossas reflexões e práxis. Recordo-me, em seus Cursos sobre o Cimena e Educação, quando vc ressalta O Cinema (filmes) como fonte indispensável para á nossa Educação. E que o Cinema nos proporciona 'emoções, sentimentos e uma nova PERCEPÇÃO,OLHAR E LEITURA DE MUNDO" e além disso, traz para nós uma CONSCIETIZAÇÃO de como atuar, ver, DIALOGAR e relacionar com a outra Pessoa ("ALTERIDADE") nas relações Sociais. Sou-lhe, eternamente grato pela "abertura desse universo que é o Cinema, enquanto linguagem, expressão artítica e instrumento EDUCACIONAL. Cordial abraço Professora Claudia. Agradeço pelas indicações de filmes. Espero brevemente reencontrá-la. Oliomar A. de Pontes (Geografia/"Rogê"). São Paulo-Sp, Outono de 2017.
Postar um comentário