05.04.2016
por Alexandre de Carvalho
Poucas sessões, horários inacessíveis e muito pouco tempo em cartaz, assistir aos filmes nacionais de mais de 70 minutos é uma tarefa cada vez mais difícil. Felizmente, para ver os de até 40 minutos – ou até 15, segundo as leis de incentivo – os curtas metragens, o acesso é bem mais fácil: além do festival internacional desta categoria, com sessões específicas com trabalhos nacionais e outras mostras ao longo do ano, temos o excelente site “Portacurtas” com 9673 filmes catalogados e 1185 para assistir, que merece ser navegado:
Observando os números do “Portacurtas”, vemos que são mais de 262.000 usuários cadastrados e 134.000 assinantes. Não é um número pequeno, mas é bem menor do que o público dos filmes de longa metragem. As imagens de curta duração, no entanto, são enormemente consumidas. É só observarmos os vídeos do Youtube, visualizados por milhões de pessoas, com a duração aproximada dos curtas metragens. Esse é o tempo ideal para assistir em smart fones no caminho para casa, ou outro dispositivo tecnológico, de acordo com a necessidade atual de informação rápida. Além de ser um atrativo pela facilidade de consumo, o tempo de duração traz para o curta-metragem um formato específico, com qualidades próprias, não um subgênero inferior ao longa-metragem.
É fácil perceber isto assistindo ao documentário experimental Ilha das Flores, dirigido por Jorge Furtado, em 1989. Este é sem dúvida um dos melhores trabalhos do inovador gaúcho, co-fundador da Casa de Cinema de Porto Alegre, diretor de vários longas, como O Homem que Copiava e responsável por várias séries e especiais de televisão, como Amor de Mãe. Ilha das Flores, ganhador de vários prêmios no festival de Gramado de 1989 e do Urso de Prata de 1990, trabalha informações curtas sobre milhares de assuntos, o que será retomado por Furtado em trabalhos posteriores. Com o formato curta, o cineasta potencializa esse procedimento, a informação fica concentrada, transmitindo muito em pouco tempo. São utilizados elementos do cotidiano, através da colagem e repetição, para fazer uma reflexão pungente sobre o ser humano, aquele que explora seus semelhantes e que é, tanto o explorador quanto o explorado, o ser vivo que tem polegar opositor e telencéfalo plenamente desenvolvido. Furtado consegue extrair uma pequena joia a partir de uma grande quantidade de informações como essa.
Este filme faz parte de um conjunto de outras películas surgidas a partir dos anos 80, após a aprovação da lei do curta metragem, que, obrigando a projeção de curtas antes dos filmes exibidos em circuito comercial, atraiu para este formato vários talentos desanimados com as dificuldades de produção de longas metragens, especialmente após o fim da Embrafilme. A partir desse momento, a estética do curta se desenvolve, com mais produção e experimentação, surge a chamada “escola do curta”. Também desta leva é Rota ABC, do paulistano Francisco Cesar Filho, produzido em 1991. Semelhantemente ao curta citado de Jorge Furtado, aqui vemos uma paisagem desumanizada, mas com a diferença de que a fotografia em preto e branco faz um retrato minimalista, bruto, da descolorida vida no subúrbio. O filme mostra, ao som de Garotos Podres e, na agilidade de seus 11 minutos, o depoimento de três de seus habitantes, jovens que conseguem transcender aquele ambiente opressivo e marginalizado. Rota ABC ganhou diversos prêmios no Brasil e participou de importantes festivais internacionais.
Não é de se estranhar que estes dois filmes tenham se encaixado tão bem no formato curta-metragem. Ele é historicamente muito utilizado para documentários e, nesse gênero, é impossível deixar de citar Aruanda, dirigido em 1960 por Linduarte Noronha. O filme é considerado um dos precursores do Cinema Novo e tem grande influência até os dias de hoje. Conta a história de uma comunidade quilombola na Paraíba. Dentro da precariedade de recursos do filme, prevalece a autenticidade dos elementos utilizados: o trabalho com os habitantes da comunidade, encenando a fundação do quilombo e sendo mostrados em cenas reais na fabricação e no comércio de utensílios de barro; a trilha sonora é executada pela Confraria dos Negros da cidade, durante a festa do Rosário. O resultado é um trabalho com rara poesia, que ressalta o contraste entre a riqueza da cultura popular e a pobreza de recursos da comunidade, resultado da ausência do poder público.
Mais de cinquenta anos depois de Aruanda, o curta-metragem continua um terreno fértil para documentários que denunciam as mazelas do ser humano. Além da época de realização, o documentário paulista E (de Estacione), dirigido por Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos em 2014, difere do paraibano por quase não mostrar pessoas. Essa ausência ressalta a desumanização do espaço público de que os estacionamentos são ótimos representantes. Os depoimentos em off, como o do dono do último cinema de rua de São Paulo, transformado em estacionamento, mostram uma cidade em um movimento constante, que arrasta restos da vida das pessoas e do convívio social.
Outro filme que trata da deterioração das relações humanas na metrópole, agora no gênero da ficção é A Era de Ouro, também de Miguel Antunes Ramos, co-dirigido por Leonardo Moura Mateus. No curta, David vem para São Paulo se encontrar com Simone. Eles haviam encenado a peça As Gaivotas de Tcheckhov, mas tudo deu errado. Aqui o retrato da capital paulistana também desumaniza, como com o arranha-céu onde Simone trabalha, que deixa David minúsculo embaixo tentando encontrá-la com o olhar. Na mistura da peça com a vida real, David sente o fracasso, como seu personagem em As Gaivotas. Já Simone, no papel social que representa, acaba percebendo o tanto que perdeu de si mesma. Um filme tocante.
Existe sempre a discussão de como levar o filme nacional ao grande púbico. Apesar da obrigatoriedade de um determinado número de exibições de longas brasileiros, a força dos interesses do filme americano acaba prevalecendo. Já a exibição de curtas antes dos filmes comerciais foi inviabilizada com a extinção dos órgãos de fiscalização durante o governo Collor. A exceção atual é o projeto “Curta nas telas”, válido apenas para a cidade de Porto Alegre.
Os meios digitais podem ser um caminho para o contato do público brasileiro com o audiovisual nacional. O site Portacurtas, onde estão disponíveis todos os curtas acima citados e um universo de outros filmes ainda a serem explorados pelo grande público, é uma interessante ferramenta neste sentido. O site possui diversas formas de pesquisa: por gênero; por tags; aleatória por uma roleta; canais. O usuário pode criar seu próprio canal, há o “curta na escola” para auxiliar o educador na utilização deste formato na sala de aula. Que tal entrar em contato com o audiovisual nacional através deste formato tão instigante? O endereço é www.portacurtas.com.br.
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