Truman – o filme que eu vi

22.05.2016
por Cibele Rocha

Para falar sobre Truman conto o filme.
Não sei fazer de outro jeito.
O diretor é o premiado Cesc Gay vencedor do Goya 2016 com 05 premiações ao seu filme Truman.


Julián (Ricardo Darin) recebe a visita de seu amigo de juventude Tomás (Javier Camara) morador do Canadá onde, para fazer a viagem de vinda, deixou a equilibrada rotina que desfruta.
Os dois estão na porta do apartamento de Julián que mora em Madrid.
Tomás, na cidade, acompanhará Julián em suas atividades do quotidiano enquanto este se familiariza com a própria morte em data previsível, quase marcada.
Algumas atividades serão pesadas de compartilhar, dessas de doer no estômago. Tomás sabe disso e teme, sofre, reage. Em meio ao que o ameaça, Tomás quer mesmo é dar as mãos ao amigo.
O dar as mãos, ambicionado por Tomás desde o início e tempos depois um pedido gestual de Julián, sobrevoa o filme, o faz emergir e se sobrepor aos limites de uma narrativa que, sem essa inspiração, poderia ser acanhada.
O filme traz a amizade para o primeiro plano, a apresenta como vínculo na vida e ligação insubstituível na aproximação da morte.
Cada expressão da amizade, na interpretação dos dois atores, acontece no interior dos olhos. Darin e Camara são dois atores que olham e se olham. O diretor reforça neles esse traço. A fotografia chama para o detalhe do que falam os olhares.

Julián é irônico, árido, ator de teatro, temperamento mundano. 
Tomás é discreto, doméstico, apreciador do boêmio que existe no amigo.
Tomás permanecerá em Madrid por quatro dias.
Julián lhe pede para se hospedar em casa dele. Tomás argumenta, brinca, dissimula e se refugia em seu quarto de hotel. Na segunda noite Julián que deixou seu cachorro Truman em uma tentativa de talvez possível adoção, confessa não gostar, nem querer estar solitário. Tomás percebe que deve atendê-lo. Combinam passar a noite no hotel do visitante.
Julián está adormecendo quando estende a mão ao amigo e a movimenta pedindo-lhe que a enlace. Tomás se inibe, hesita, quase recusa mas se decide e aperta firme, por inteiro, a mão que lhe foi estendida. 
Tomás, dali em diante, abandonará o comportamento de se opor às decisões do amigo, de tentar convencê-lo a lutar contra o câncer, de querer que ele consinta na quimioterapia. Tomás muda de direção e opta pela parceria com Julián, escolhe estar com ele no descarte às teimosias médicas. Tomás, agora, olha de frente a dor, entende que a faca fincada no peito do amigo é a mesma que o dilacera. Tomás age como um mourão, desses que fixados nos pontões de praia, ancestralmente, não deixam se soltarem as amarras dos barcos na tormenta. Tomás afronta a tormenta, passa a ser escora, discreta e definitiva, para Julián.
E Julián, pelo seu lado, começa a abandonar a sua natureza de opositor, a sua inclinação para contradizer. Ele deixa de lado a irreverência, preserva a altivez mas, amacia seu perfil libertando palavras de ternura.
As mãos unidas, naquela noite no hotel, revelaram aos dois amigos que é para firmar os pés no chão e mantê-los na postura do lado a lado, do pertos e juntos. É assim, que os dois amigos querem estar. Cessam a luta.
Tomás e Julián não se ocupam mais do espaço físico de Madrid ou de qualquer outra cidade. Eles se orientam só pela aberta geografia da amizade – em todo o lugar, a qualquer hora, para o que der e vier.


O filme me movimentou para a frente, para trás, para todos os lados do fechado território da tristeza que é se sobreviver ao amigo. Percebi-me como um joão-bobo, pés abaulados oscilantes sobre os meus lutos, as minhas perdas, os meus ausentes. Eu com muitas saudades dos amigos que partiram e levaram consigo histórias que foram tão nossas.
Saí da sala de cinema e caminhei as quatro quadras que me separam da rua onde moro. 
No caminho soaram-me na memória as palavras rezadas, antes de dormir, na infância:
“... rogai por nós, agora, e na hora da nossa morte”. 
Cheguei em minha casa sob esses pedidos para a Pietá.
Os amigos tinham se encontrado ao rogarem um pelo outro e com o outro, oração de Julián na sua travessia, de Tomás na sua nova solidão, de Truman, o cachorro segundo filho declarado de Julián, na sua adoção por Tomás.

É este o filme que eu vi em Truman.
Um filme sobre a emoção da amizade.
Vocês irão vê-lo?
Não se arrependerão, garanto.

Nota: Na vida real Truman foi um cão de nome Troilo acompanhante de crianças autistas. Era um cão carinhoso, paciente e, já idoso, faleceu de infecção tempos depois do encerramento das filmagens. Darín é cachorreiro, tem três cães. Afeiçoou-se ao cão além dos sets das filmagens. Contou em entrevista que ficou muito triste quando soube que seu amigo Troilo/Truman morrera.

4 comentários:

Janete disse...

Querida, Cibele

Para quem fez o jornal do Grupo Cinema Paradiso durante anos, em que, por várias vezes, teve que diagramar teus textos no jornal, foi uma delícia poder ler um no novo formato de divulgação do Grupo.
Adorei o texto. Ele é da Cibele, mesmo! O jeito de escrever, de se expressar, de passar as emoções estão no texto.
Assisti ao filme Truman. Gostei muito, também. Como você.
Muito boa a tua interpretação sobre o filme. Dois amigos, de personalidades tão diferentes, mas que se entendem, que se aceitam.
Parabéns, Cibele, por mais um lindo texto.
Abraços

Marcos Peter Pinheiro Eça disse...

Cibele querida:

seu texto está delicioso de se ler. O filme é belo e seu texto acompanha essa beleza. Para mim, um dos grandes dilemas da vida é lidarmos com nossas "perdas" (de parentes, de amigos, de conhecidos, de amores...) e no filme Truman essa questão é abordada, além da amizade entre os dois protagonistas. O filme é poético e humano. E você nos emociona ao trazer poesia e humanismo para seu texto e para nossa reflexão. Obrigado! Marcos

João Moris disse...

Olá Cibele,

Muito abrangente e carinhosa sua descrição da amizade entre os dois. Obrigado.

Abs,

Claudinha disse...

Adorei o texto, Cibele. É tão interessante que você não cite a prima do Julián. Você ficou TÃO ligada na dupla de amigos (e eu concordo com você que eles são o mais importante), que esqueceu da personagem da prima... Escreva sempre, Cibele, eu adoro seus devaneios poéticos. Beijos