Gostei de Saber

26.03.2017
por Rianete Lopes Botelho

Cena do filme Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, mostrando a organização do movimento

Embora eu soubesse da existência do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), só recentemente tive oportunidade de ver na internet entrevistas com militantes desse movimento social, feitas por jovens voluntários que se dispuseram a colaborar para a divulgação do que de fato ocorre no MTST. 

Achei oportuno esse trabalho porque, em geral, os movimentos sociais só aparecem na mídia associados à “baderna” e como ameaça à ordem vigente. Mas, na verdade, eles são resultado do processo de democratização que começou com a campanha das Diretas Já e tem conduzido a sociedade brasileira ao inegável desenvolvimento de políticas sociais afirmativas. Se por um lado os avanços sociais estimulam novas reivindicações, também é certo o aumento da resistência dos setores conservadores da sociedade, procurando desconstruir as conquistas democráticas e tentando impedir que novos grupos consigam seu espaço. 

Muitas vezes a desqualificação desses movimentos é feita através de uma confusão entre a psicologia de grupo e a psicologia de massa, onde o vandalismo costuma aparecer. A massa é efêmera, instável e irracional, por isso tende a agira por impulso. Nos movimentos de massa as repressões internas caem por terra e a barbárie pode vir à tona. É quando ocorrem os linchamentos, quebra-quebras, explosões violentas de torcidas organizadas, etc. A massa não procura a verdade, mas sim a certeza. E a gente sabe que a certeza paralisa e rebaixa o raciocínio e o princípio de realidade. Assim, um simples boato, uma suposição, um indício é imediatamente aceito como certeza, sem qualquer questionamento. O clima de onipotência da massa leva a suprimir a responsabilidade, o que é agravado pelo anonimato (onde a responsabilidade individual desaparece). Fica evidente que a massa, por desconsiderar a razão e o bom senso, pode ser manipulada por algum líder oportunista, como Hitler, por exemplo, o fez. É importante lembrar que nem todos os indivíduos da massa cometem violência nas manifestações, mas apenas aquelas pessoas que têm um alto potencial agressivo reprimido e que irrompe pela queda da censura interna que o fenômeno de massa propicia. Trata-se, pois, de indivíduos vulneráveis diante do anonimato da manifestação coletiva. 

Já o fenômeno grupal mantém uma permanência no tempo e no espaço e é organizado pelo princípio da realidade. Os movimentos grupais (grupos de estudo, grupos de trabalho, etc) são apoiados na execução de tarefas e usam a linguagem como um convite a pensar. O grupo não é uma manada que não tem dúvidas, mas é capaz de argumentar, de concordar, de discordar, de ter incertezas... 

O MTST, embora numeroso, é caracterizado como um grupo organizado (com vários subgrupos) que planeja caminhos possíveis. É constituído de trabalhadores em busca de um direito que lhes cabe. Um dos entrevistadores me esclareceu que muitos dos componentes do MTST se relacionam como se fossem parentes (que, de fato, alguns não têm) e através desses vínculos afetivos se sentem fortalecidos. As pessoas desse grupo se sentem unidas não só pela busca de moradia, mas também pelos vínculos afetivos que criaram entre si. 

Esse sentimento de pertencimento é muito gratificante, sobretudo para quem, até então, parecia não ter com quem contar ou compartilhar suas vidas. Essa perspectiva lhe foi dada pela força do grupo. 

Outro dado que me foi passado é que apesar da pouca escolaridade, os militantes são capazes de argumentar com clareza sobre seus objetivos, sobre as dificuldades e possibilidades do que pretendem. Na verdade, eles conseguiram essa desenvoltura através do exercício de participação nas discussões grupais, onde toda fala é valorizada, havendo estímulo para esclarecimento de dúvidas. Parece claro que esse processo participativo os faz crescer como seres humanos e como cidadãos: saem da insignificância de suas vidas para a alegria de uma esperança. Acredito que, nesse sentido, o caminhar, o percurso chega a ser mais importante até do que a própria conquista do objetivo. 

O MTST funciona em todo o território brasileiro, através de coordenações locais e nacionais. Em todos os níveis são feitos planejamentos, análises, avaliações, etc. As discussões fortalecem o convívio entre os participantes, que desenvolvem uma consciência política que dificilmente conseguiriam sozinhos. 

O MTST não é, pois, uma massa irracional, movida por algum líder messiânico. São trabalhadores que têm consciência de que podem, com sua mobilização, sensibilizar o poder público para a questão do direito à moradia. 

Apesar da falta de moradia para grande parte da população brasileira ser algo muito antigo, só recentemente as pessoas estão se sentindo encorajadas a lutar por esse direito. Antes, havia um conformismo entre os excluídos de que sua situação era natural, como se fosse um destino traçado. É evidente que havia insatisfações, mas as pessoas não se faziam ouvir. A exclusão fazia parte de suas vidas, como algo imutável. Mas, ao longo da história da humanidade, os homens aprenderam que conseguem muito pouco se agirem individualmente, porém, quando se juntam, o grupo que se forma adquire um poder que está acima da simples soma de indivíduos que o compõem. O peso social de um grupo é muito grande: a impotência é substituída pela esperança entre pessoas irmanadas e mediadas pela linguagem. A fala permite a convivência. É uma nova ordem que se instala, não por alguma força imposta, mas pela conscientização de todos. É claro que aparecem conflitos decorrentes das diferenças individuais e das dificuldades naturais de convivência comuns a todo grupo humano. Também é claro que são inúmeras as resistências externas que qualquer grupo insurgente tem que enfrentar. 

Condições históricas e políticas permitem o surgimento de movimentos sociais que dão voz às minorias e aos excluídos. É inegável a importância desses movimentos pela pressão que podem exercer para a criação de leis que favoreçam parcelas da população que carecem de proteção pública. A experiência tem mostrado que muitas vezes as leis surgem a reboque dos movimentos sociais. 

O MTST – como todo movimento social – não tem o apoio da mídia, exatamente porque ele representa uma força que vai de encontro aos interesses de grandes grupos econômicos que lidam com o espaço urbano. Aliás, o foco de muitas crises no mundo contemporâneo tem a ver com crises hipotecárias, imobiliárias. A política urbanística é resultado dos interesses econômicos, cujo objetivo é o lucro e não o de atender às necessidades da população. É, pois, muito alentador perceber que um movimento eminentemente popular como o MTST esteja podendo se manifestar como uma militância que merece respeito por sua persistência, coragem e disposição em ser ouvida e atendida nas suas pretensões.

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