Moonlight, sensibilidade e naturalismo

07.03.2017
por André Oliveira


Existe um lugar de sensibilidade e ternura em cada coração humano, mesmo no mais indiferente. Moonlight é uma janela que se abre para que possamos acompanhar a doçura se transformar em violência. A violência como oportunidade de ascensão. Acompanhar o crescimento e as transformações de Chiron, do indefeso Little à sua dura carapaça em fase adulta chamada por Black é como navegar por um mar bravio de dor dentro de um barco firme. O filme não se esquiva dos dramas pessoais e morais que tocam as personagens, mas os enfrenta de forma humana e sutil. A jornada do menino quieto é vivida dentro de si e é bonito de ver como o diretor Berry Jenkins evita o melodrama tocando na clave do acaso, um acaso naturalizado. Do mundo hostil se aproveita a estrutura que oprime, mas as grandes mudanças se passam dentro de quem as vive. As personagens parecem pedir permissão a todo momento para ser sensíveis e é esse o jogo das suas vidas.

Se Paula ama seu filho de verdade? Se o traficante Juan se importa com o mal que causa a Paula? Se Teresa consente com o modo de vida de Juan? Se Chiron é homossexual? Se é difícil ser negro nos Estados Unidos? Nunca é dito nada sobre a estrutura que subjuga a comunidade negra de Miami aos guetos e a escolha do diretor pelas passagens do tempo na vida de Chiron naturalizam ainda mais a ideia de que o futuro é o mero passar dos dias para aquelas pessoas. Drogas, cadeia e a morte são parte dessa comunidade tanto quanto a proximidade do mar. O ótimo texto e as brilhantes atuações permitem que o subtexto grite em praticamente todos os quadros do filme. Não existe maniqueísmo. O que existe é a vida como o mar que desequilibra, que é ao mesmo tempo calmo e bravio e sem respostas. Comete-se erros, atos de coragem são omitidos. É um registro de olhares, e que olhares tristes. 

Vale o comentário sobre alguns trailers que antecederam a sessão: a história de um herói policial branco contra terroristas ameaçadores, a saga de vítimas indefesas perante um sequestrador com múltiplas personalidades. Maniqueísmo, maniqueísmo, maniqueísmo – Uma das especialidades de Hollywood. Moonlight é sobre fazer escolhas dentro de si quando se vive em um universo cercado, sem esperança. Talvez não seja distante dizer que é um retrato triste de uma sociedade que valoriza esse simplismo patético e obliterante, pois fala de quem não é herói e nunca quis ser. 

No mundo machista em que vivemos parece estranho escutar da boca de Juan (retratado de forma esplêndida) a resposta doce e encorajadora, à sua maneira, à pergunta do pequeno Chiron sobre sua sexualidade. Porém pessoas reais também são assim, complexas, multifacetadas. É um erro afirmar que um traficante de drogas não o seria. O que interessa é ver essa complexidade naturalizada dentro daquele universo. O grande valor está em debater a sensibilidade nesse universo masculinizado sem torná-lo caricatural ou martirizante. A dicotomia homem forte/mulher sensível se dissolve aqui. Embora esteja marcada pelas forças antagônicas do filme. 

É lindo o rápido momento em que Chiron (ainda “Little”) foge das ondas que avançam a areia da praia para que, quando estas retornam ao mar, ele as siga dando murros e chutes no ar fingindo que a água só recua pela imposição de seu poder. Rapidamente corre na direção contrária graças ao novo rebote do mar. Talvez tenha repetido o gesto pela tarde toda. Metaforicamente, continua o repetindo pela vida toda. 

A dificuldade de se expressar daquele menino continua nos contagiando ao término do filme como o sintoma mais forte dessa dor naturalizada. Não há grande discurso que redima aquela comunidade negra de Miami mas, apesar de ver este retrato de dor, a mensagem que fica é de esperança ainda que na melancolia. Chiron tenta afogar o amor dentro de si, mas o amor é grande demais e o reencontra, volta à superfície. 

Teresa nunca tomará o papel da mãe de Chiron ainda que este seja incapaz de amar sua mãe Paula, mesmo dando nela um lindo abraço que mostra o quanto tem ternura. Não sabemos se nascerá um relacionamento amoroso em sua vida. Ficamos sempre com a sensibilidade, nunca com a redenção. 

O discurso de Kevin nos últimos instantes do filme é alentador demais para o contexto deste novo século. Kevin é um homem comum e um homem feliz, em sua felicidade reside uma moralidade esmorecida em uma sociedade que transforma doces meninos em escravos de um jogo de poder. É a moralidade do homem simples. Do homem sensível.


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