18.10.2017
Por João Moris
O Rio de Janeiro celebrou a 19ª edição do seu Festival Internacional de Cinema entre 5 e 15 de outubro. Tradicionalmente, o Festival do Rio tem um viés mais comercial e menos alternativo, exibindo filmes de diretores consagrados ou em competição nos principais festivais de cinema do mundo (Cannes, Berlim, Toronto, Veneza, Rotterdam e Sundance). Assim, muitos filmes badalados lá fora estreiam no Festival do Rio antes de serem lançados no circuito comercial brasileiro. O Festival também serve de vitrine para o lançamento de filmes brasileiros, com muitos diretores e atores, veteranos ou estreantes, passando pelo seu “tapete vermelho”. Este ano, o Festival contou com 76 filmes nacionais, entre longas e curtas, que é um número respeitável.
Além dos brasileiros, várias coproduções latino-americanas comprovam o vigor do cinema no continente, como o arrebatador filme colombiano-argentino Matar Jesus (“Matar a Jesús” – dir. Laura Mora), que mostra a tensão e a ruptura das relações sociais na Medelin atual, onde a vida é vivida no fio da navalha, principalmente para os jovens que estão na base da pirâmide social. O documentário mexicano A Liberdade do Diabo (“La Libertad del Diablo” – dir. Everardo Gonzáles) também expõe as mazelas sociais latino-americanas através da violência causada pela guerra do tráfico, que anualmente custa a vida de mais de 20 mil pessoas no México. O documentário entrevista os familiares de alguns mortos e desaparecidos para a guerra, que dão depoimentos contundentes sobre sua dor, sofrimento e medos. Os depoimentos são dados com a cabeça dos familiares encapuzadas, apenas os olhos e os lábios aparecem, o que dá um aspecto ainda mais marcante ao filme.
Natasha Jaramillo e Giovanny Rodríguez em Matar Jesus, de Laura Mora
Outros filmes latino-americanos exibidos no Festival abordaram a questão de gênero em sociedades ainda dominadas pelo machismo, homofobia e intolerância. A produção costarriquenho-chilena Medeia (“Medea” – dir. Alexandra Latishev Salazar) impacta ao contar a odisseia e invisibilidade de uma jovem de classe média que gosta de jogar rugby e é totalmente desconectada com as pessoas e o ambiente em que vive, a ponto de ninguém ao seu redor perceber que está em estado adiantado de gravidez. O cinema cubano também marcou presença com uma pequena obra-prima: Santa & Andres (dir. Carlos Lechuga). A história se passa em 1963 e fala de uma camponesa de 30 anos (Santa), que é designada pelo Partido Comunista a vigiar as atividades de um escritor homossexual de 50 anos (Andres), suspeito de manter atividades contrarrevolucionárias. A aproximação e o convívio de duas pessoas com ideologias tão distintas, mas profundamente humanistas, dão o tom do filme, sem nunca resvalar para o piegas. O Festival do Rio deste ano também trouxe a cópia restaurada de um dos mais importantes filmes cubanos pós-revolução, Memórias do Subdesenvolvimento (“Memorias del Subdesarrollo”, 1968), dirigido pelo veterano Tomás Gutiérrez Alea. Uma obra essencial, metafórica e altamente didática sobre como a ideologia burguesa se instaura e se articula na América Latina.
Santa y Andres, uma pequena obra-prima do cinema cubano contemporâneo
A França, com seu cinema sólido e maduro, trouxe dramas de qualidade ao Festival, como o vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano, o aguardado 120 Batimentos por Minuto (“120 Battements par Minute” – dir. Robin Campillo), um filme intenso que mostra as ações do grupo ativista Act Up, em defesa das minorias atingidas pela epidemia da AIDS e ignoradas pelo poder público na Paris do final dos anos 80 e início dos anos 90. À maneira de Filadélfia, Meu Querido Companheiro e tantos outros filmes dos anos 80/90 que retrataram a maneira devastadora como a AIDS atingiu os chamados “grupos de risco”, o filme de Robin Campillo leva às últimas consequências a luta contra o preconceito à comunidade LGBT e contra o monopólio das grandes indústrias farmacêuticas. Não é pouco em tempos que o conservadorismo e o neoliberalismo avançam com força total em todos os cantos do planeta.
O filme Uma Casa à Beira Mar (“La Villa”) de Robert Guédiguian, um dos poucos diretores franceses vivos verdadeiramente autorais, é um drama muito bem construído sobre a passagem do tempo e acertos de contas de uma família francesa. O diretor, mais uma vez, trabalha com a grande atriz Ariane Ascaride, que dá seu show de interpretação costumeiro. Outro excelente drama francês é Seguindo o Vento (“Prendre la Large” – dir. Gäel Morel), em que a veterana atriz Sandrine Bonnaire encarna uma operária de meia idade que, na iminência de perder o emprego numa fábrica têxtil francesa, aceita ser transferida para o Marrocos e lá experimentar novas e duras realidades. Um dos destaques do Festival do Rio deste ano foi o biopic Dalida (dir. Lisa Azuelos), um filme biográfico da famosa cantora francesa de origem egípcia, Dalida, praticamente desconhecida no Brasil, cuja carreira se estendeu ao longo de 25 anos e terminou tragicamente em 1987. Uma história de vida inacreditável, não fosse verídica. Cabe ainda destacar o filme O Formidável (“Le Redoutable” – dir. Michel Hazanavicius, o mesmo de O Artista), sobre a fase revolucionária do polêmico diretor Jean-Luc Godard em plena Paris dos anos 60. O filme traça um perfil excêntrico e um tanto quanto mundano de Godard, focando na sua conturbada relação com a atriz Anne Wiazemsky, 20 anos mais jovem do que ele. Estes cinco filmes franceses deverão ser lançados no circuito comercial brasileiro.
120 Batimentos por Minuto, ganhador do Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2017
Do Reino Unido, o tocante drama God’s Own Country (dir. Francis Lee), sobre um rapaz solitário e sexualmente reprimido de 25 anos, que trabalha numa fazenda no interior da Inglaterra e tem de lidar com a aceitação de sua própria homossexualidade num ambiente onde não há nenhum espaço para isto. Descobre na paixão por um imigrante romeno o melhor antídoto para o preconceito e seus medos. Victoria e Abdul, o Confidente da Rainha (“Victoria and Abdul”) é mais um bem humorado e sarcástico filme do diretor inglês Stephen Frears. Ao contar a história da improvável amizade entre a austera rainha Victoria e o camponês indiano Abdul, que se torna seu conselheiro no final do século XIX, Frears aproveita para alfinetar a sociedade “civilizada” atual e seus preconceitos arraigados de classe, raça e religião.
Três filmes vigorosos e não conciliatórios do Festival do Rio vêm de países que raramente são vistos no circuito brasileiro. O filme búlgaro Direções (“Posoki” – dir. Stephan Komandarev) é uma alegoria distópica da Bulgária contemporânea, trazendo questões éticas que envolvem o comportamento das pessoas diante do futuro incerto do país, à medida que se insere na economia neoliberal da União Europeia. Por sinal, os filmes búlgaros recentes lançados no Brasil, como os ótimos A Lição (2015) e Glory (2016), abordam dilemas éticos profundos, sempre de uma forma dura e incisiva. Difícil sair indiferente desses filmes. Outro filme do Festival do Rio a abordar o desencanto da sociedade europeia com o seu futuro é o lituano Frost, do cultuado diretor Sharunas Bartas. O filme mostra um casal de jovens lituanos, que aceita entregar uma carga humanitária na vizinha Ucrânia e acaba no meio do conflito armado entre ucranianos e russos. Um roadmovie sem volta e sem respostas fáceis. Por fim, o surpreendente filme indiano Sexy Durga (dir. Sanal Kumar Sasidharan) mostra aspectos da Índia contemporânea que desafiam nosso imaginário e pressupostos a respeito daquele país. De forma tensa e fragmentada, mostra um casal em fuga de uma cidadezinha onde acontece um festival religioso. O casal tenta desesperadamente se deslocar de carona à noite pelas estradas do estado de Kerala, no sul da Índia, e se depara com um grupo de homens em uma van, dispostos a infernizar a vida do casal na noite que parece não ter fim. Mas, para onde vai o casal e por que está fugindo daquele jeito? E qual a motivação daqueles homens ao assediar insidiosamente o casal? Um dos filmes mais instigantes do Festival do Rio 2017.
Cena do filme indiano Sexy Durga, de Sanal Kumar Sasidharan
Estes foram os meus filmes favoritos do Festival do Rio deste ano. A maioria destes filmes reflete o desencantamento e a perplexidade com o estado das coisas no mundo e também a complexidade dos países de origem dos filmes. Este é o grande tesouro de uma exibição internacional abrangente de filmes, como o Festival do Rio e a Mostra de SP: que, apesar das profundas diferenças culturais e históricas que nos separam, como humanos podemos nos conectar em vários níveis.
1 comentários:
Oi, João. Adorei seus esclarecimentos! Pude apreender, contigo, o que aconteceu nestas mostras e me surpreender, embora em território diferente e embebidos de culturas diferentes, ainda assim somos humanos e muito conectados, como um móbile; sentimos e é este sentir a nossa língua comum. bj Helena
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