16.09.2018
Por Rianete Lopes Botelho
Arábia é o título do filme de Affonso Uchoa e João Dumans, exibido na festa de comemoração de 23 anos do Grupo Cinema Paradiso, no CineSesc, em agosto deste ano.
A história se desenrola a partir da leitura do diário do personagem Cristiano (Aristides de Sousa), feita pelo adolescente André (Murilo Caliari), depois que seu autor adoece e é levado ao hospital. O adolescente mora com um irmão mais novo, que parece doente devido à insalubridade do ar na região. Os garotos não contam com seus pais porque nunca estão em casa. Cristiano também é sozinho. À medida que André vai lendo o diário, ficamos sabendo que Cristiano teve uma vida dura, trabalhando em Ouro Preto, MG, e em outros lugares próximos, sempre em atividade braçal.
O filme é um retrato da exploração da força de trabalho de um homem, até que ele não possa mais produzir, por estar cansado e doente. Um dos méritos do filme é mostrar essa visão da desumanização a que muitas pessoas estão expostas, sem ser panfletário ou caricato. Porém, os diretores vão além desse dado conhecido e revelam ao espectador a resignação quase bovina do personagem, que parece aceitar que "a vida é assim mesmo", sem se dar conta de que ela é muito maior do que aquela pequena parcela que lhe é dada conhecer. Essa falta de conscientização do personagem fica mais clara quando ele é solicitado a escrever sobre sua vida e ele acha que nada tem a contar. Na verdade, essa primeira reação do Cristiano é reveladora da sua dificuldade de se relacionar consigo mesmo, porque não era, de fato, o sujeito de sua própria história. Sua autoimagem era de uma insignificância tal que ele não se percebia com angústias, medos, sonhos. Mas quando começou a escrever sobre suas andanças em busca de trabalho, ele passou a enxergar a vida a seu redor e as pessoas que conhecera no seu percurso. Relembra os raros momentos de lazer com música e até a descoberta do amor. Aos poucos, ele vai tomando contato com seus sentimentos em relação a tudo o que vivera. É como se o fato de escrever sobre seu passado lhe mostrasse que ele era mais do que músculos; descobrindo um pouco de sua alma. Para ele, era uma experiência nova. Principalmente quando escreve sobre o amor, representado por Ana, com quem consegue usufruir de aventuras até então desconhecidas. Mas acontece uma gravidez inesperada e quando ela aborta espontaneamente, eles se afastam sem um motivo aparente. É como se a perda do filho fosse um aviso de que ele estava indo além do permitido, com pretensões de ser feliz, de pretender usufruir o que não lhe cabia. Afinal, Cristiano tinha se constituído para ser uma máquina que produz força de trabalho. Ele foi embora para continuar sendo o que sempre fora.
Embora a lembrança de Ana fosse uma constante na sua vida, ele não atendeu ao pedido dela de ficarem juntos e viverem o amor que sentiam um pelo outro. Fica claro que ele não se sentia no direito de exercer sua humanidade. Preferiu sofrer a saudade da ausência de Ana, ficando só com a lembrança do que foi a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Nada impedia que Cristiano vivesse as delícias e as tormentas do amor, mas isso requereria dele abertura para ver a poesia no mundo, e seu espírito estava aprisionado. Para se sentir humano é necessário que o espírito esteja livre, mesmo quando o corpo não está, porque nem só de pão vive o homem.
A postura de Cristiano diante da vida era o resultado de uma criação cultural que impede o reconhecimento de que todos merecem respeito e fazem jus aos mesmos direitos numa sociedade tão desigual como a nossa, fica difícil aceitar que todos somos iguais quando o que é transmitido como natural é que parte dela nasceu para servir, enquanto outra para ser servida, uma para mandar e outra para ser mandada. Mas, no final do filme, Cristiano em dois momentos começa a se dar conta de que talvez seja possível contestar a sociedade não inclusiva e hierarquizada. Primeiro, o vislumbre da possibilidade de uma reação como demonstração da existência de uma vontade própria, em oposição a uma submissão conformista. É quando ele se permite fantasiar a probabilidade dos empregados pararem a fábrica como demonstração de sua condição de sujeitos. Depois, a coragem de assumir uma posição crítica à sua conivência em não ser tratado como um homem. Num segundo momento, Cristiano já esgotado, refere-se a si mesmo não como um homem cansado, mas sim como "um cavalo cansado", numa demonstração de conscientização de que fora reduzido a um animal de carga.
Quando o filme acaba fica uma sensação de vazio e de inutilidade que não nos deixa indiferentes.
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