16.07.2019
Por Fernando Machado *
Achei interessante a ideia de ver um filme que retratasse um futuro próximo, 2027, em que o Brasil consolidaria a chamada “onda conservadora”. Foi com esse espírito que fui assistir a Divino Amor, de Gabriel Mascaro, também autor do renomado Boi Neon.
O filme mostra um Brasil em que, aparentemente, os evangélicos são maioria, tendo o Carnaval sido substituído pela “Festa do Amor Supremo”. A personagem principal é Joana (Dira Paes), uma escrivã de cartório especializada em divórcios, que interfere no processo burocrático a fim de tentar salvar os casamentos quase desfeitos, o que vai ao encontro de suas crenças religiosas.
Numa sociedade que privilegia a família e o nascimento de mais crianças, ela sofre por não conseguir ter um filho com seu marido Danilo (Júlio Machado), que trabalha como florista de velórios. A estória é contada (com uma voz ridícula, como a de um robô de feira de ciências, entremeada por forte sotaque carioca), por uma criança.
Nesse momento que vivemos atualmente, o ano de 2019, em que o País atravessa tantos desafios, em que há tanto a se dizer sobre tantas coisas relevantes, o resultado final foi muito, muito fraco. Por quê?
Vamos por partes: se em 2027 a sociedade é conservadora e incentiva a Família e o nascimento de crianças, por que não foram mostradas famílias com crianças no filme? E se o País está mais conservador e implantou um rigoroso controle de identidade (quando alguém entra numa loja, por exemplo, aparece num painel o seu nome, profissão e estado civil), por que não foi mostrado o que acontece/aconteceu com quem não está “de acordo” com o status quo vigente?
Onde estão os mendigos, os desempregados, os indesejáveis e os que contrariaram a posição defendida pela maioria? Emigraram? Para onde? Estão presos? Onde? Morreram lutando por seus ideais? Quando? Para que esse controle de identidade é usado, afinal de contas?
No fim, o que acontece com os divorciados e divorciadas nesse futuro? Enfrentam dificuldades para se empregarem ou se manterem? Sofrem perseguições? Ou pior? Como é o governo do futuro? Como é a economia do futuro? Como é o emprego do futuro? Como são as questões de gênero? E as minorias? O filme, ao não abordar nem de leve nenhuma dessas facetas da sociedade, é muito raso.
São, portanto, muitas lacunas que não são explicadas. Só se fica tocando na mesma tecla, do Estado laico que tenta “interferir” com as tentativas da Joana de preservar os casamentos, implicando assim uma “resistência” à onda conservadora. Muito pouco, terrivelmente pouco, em face do que poderia ser desenvolvido...
A questão tecnológica é outro ponto sensível: por exemplo, hoje já há muitas alternativas de micromobilidade nas grandes cidades, como as bicicletas e patinetes, e seu uso só tende a se ampliar, mas a personagem ainda usa o velho automóvel para os seus deslocamentos, e sequer tem celular ou outra alternativa de comunicação compatível com a nova era. É esse o nosso futuro tecnológico? Que falta de imaginação!
Infelizmente, parece que estamos vendo um daqueles filmes futuristas feitos nos anos 80 e que ficou guardado com naftalina, e só agora foi “redescoberto” e lançado para o grande público. Que decepção! Penso em toda a equipe que participou do projeto e de todo o tempo, esforço e dinheiro (público, inclusive) investidos para um resultado tão pífio...
Para não dizer que tudo que foi mostrado foi ruim, gostaria de elogiar as cenas de sexo, muito bem feitas, principalmente pela desinibida Joana, apesar de uma exposição desnecessariamente excessiva dos corpos nus (“sarados”, ao contrário da média brasileira, provavelmente um artifício da direção na tentativa de atrair mais espectadores), incompatível com a sociedade mais conservadora que se quis retratar, mesmo se pensarmos numa tentativa religiosa nesse sentido, no Brasil do futuro.
Nesse quesito, o filme não inovou absolutamente, pois me senti novamente transportado aos anos 80, como se as cenas de sexo tivessem saído do filme “Luz Del Fuego”, de 1982, esplendidamente protagonizado por Lucélia Santos.
Respeito os sentimentos religiosos (e também a sua ausência) de todos, por isso achei que o filme foi desnecessariamente deselegante com os evangélicos, em particular, e com os seguidores da Bíblia, em geral. Pelo que me lembro, salvo engano, os cânones sagrados dizem que se deve dividir o pão, não a carne...
Foram apresentados pequenos fragmentos da prática da religião evangélica, de forma superficial e com lacunas importantes (por exemplo, nessa religião dá-se grande importância ao papel do Diabo e das possessões espirituais, ambos inexplicavelmente ausentes do filme). É algo incompreensível, pois com todos os recursos disponíveis, valeria a pena ter gasto mais uns trocados com uma pequena pesquisa, mais aprofundada, sobre o tema...
Também há contradição entre os rituais sexuais supostamente apregoados pela religião da protagonista e os princípios da biologia reprodutiva, tendo em vista que a manutenção de relações da forma como mostrada no filme pode implicar numa gravidez em que o marido não seja o pai do rebento...
A descoberta da tão desejada gravidez se mostra um grande problema para Joana, tendo em vista que Danilo não é o pai da criança. Ela utiliza seu acesso aos computadores do governo para pesquisar quem é o pai, e, ao não encontrar um entre seus parceiros recentes, imagina que esteja carregando em seu ventre o Messias que todos de sua religião esperam.
Nesse ponto, há controvérsias: as pesquisas que ela fez no computador podem ter dado falsos negativos, embora a probabilidade disso ocorrer seja extremamente baixa? O local da realização dos rituais pode ter sido de alguma forma contaminado por terceiros? Por outro lado, ela deveria ter feito a pergunta inversa: dado o DNA do bebê, quem é o pai?, E só aí tirar conclusões...
Ao expor essa inusitada teoria a seu pastor do “Drive Thru”, ela não encontra apoio, e ao revelar a questão a seu marido, ela o perde, e com ele o acesso a sua célula. Nesse ponto, ela se resigna e larga sua fé. Chega a abandonar os filhotes que o seu cachorro gerou com a cadela da vizinha, e que essa lhe entregara para criar. Finalmente, tem o bebê num hospital.
Uma questão relevante: se ela largou a sua fé ao ser abandonada por sua igreja, então será que ela tinha realmente fé? Em quê? Não era ela a escolhida por Deus para trazer o Messias à Terra?
No final, o bebê/narrador revela que ele não tinha registro ou nome, e que era realmente o Messias, mas que o mundo não estava preparado para sua vinda. Há controvérsias: além das questões elencadas sobre a sua concepção, deve-se notar que o bebê, ao nascer num hospital, deve sim ter sido registrado. Teria a estória toda sido contada a ele por sua mãe, e então recontada por ele numa data ainda mais futura, com essas peculiaridades?
Enfim, agora é muito fácil se dizer que o filme quis supostamente abordar isso ou aquilo, mas acho que a verdade é que o resultado final evidenciou que foi perdida uma oportunidade incrível, talvez única, de se fazer com ótimos atores e atrizes uma discussão séria sobre o Brasil atual e seus rumos, sobre o papel do conservadorismo na sociedade, sobre o controle dos indivíduos pelo governo, enfim, sobre as contradições entre o futuro que queremos e o que provavelmente teremos...
Infelizmente, sou obrigado a concluir com uma contribuição que, na verdade, veio do trailer de um filme europeu apresentado antes da sessão propriamente dita: “é um filme que você não gostaria de ter assistido”.
*Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.
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