30.09.2019
Por Fernando Machado
Uma das primeiras coisas que pensei quando assisti ao filme foi como classifica-lo: Drama? Ação? Western? Concluí que “Bacurau” não pode ser descrito como pertencente a essa ou aquela categoria, pois cada uma das três partes que o compõe corresponde a um gênero cinematográfico diferente.
O próprio nome “Bacurau” refere-se a um pássaro brasileiro de hábitos noturnos, cujo nome científico é “Nyctidromus Albicollis”. Dromus e nutki são palavras gregas, que significam, respectivamente, “corredor” e “noturno”; collis e albus, por outro lado, são palavras latinas que significam, respectivamente, “pescoço” e “branco”. Então, temos o nosso animal tema da película bem descrito: o “corredor noturno de pescoço branco”.
No início do filme, que se passa daqui a alguns anos, há a chegada de Teresa (Bárbara Colen) para o enterro da avó e líder local Carmelita no pequeno vilarejo de Bacurau (um distante e isolado distrito pertencente à fictícia cidade de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco). Essa parte da obra faz uma longa apresentação dos personagens e do modo de vida local; a seguir, é mostrado o ataque covarde dos gringos à população indefesa; e finalmente ocorre o desfecho, a resistência, que une as duas partes iniciais.
A película mostra a vinda de um grupo de estrangeiros fortemente armados e organizados, liderados por Michael (Udo Kier), com o intuito de promover uma caçada humana, em que cada morte dá direito a uma pontuação para o assassino.
Nesse ponto, lembra muito o filme de 1993 “O Alvo“, dirigido por John Woo e com Jean Claude Van Damme no papel principal, com um jogo sádico de perseguição em que americanos matavam americanos nos arredores de Nova Orleans.
A semelhança para por aí. Nesse caso, são americanos (Michael é alemão naturalizado americano, mas se considera “mais americano” do que muitos outros) matando brasileiros, e ainda auxiliados por um casal “do Sul do Brasil” (Karine Teles e Antonio Saboia), que apesar de falarem fluentemente a língua dos invasores e de sua aparência, não são considerados iguais a eles, sendo rapidamente eliminados após terem “matado outros da sua espécie” numa incursão ao vilarejo.
Os invasores contam com tecnologia de ponta como drones e acesso a satélites, além de armas variadas. Uma das participantes utiliza uma submetralhadora Thompson, arma com tambor redondo que é um ícone dos filmes sobre a máfia e a Lei Seca da Chicago dos anos 20 e 30 do século XX.
Essa arma podia emperrar com facilidade quando usada em um ambiente com muita areia ou terra, como é o caso do sertão nordestino. Pena que esse defeito potencial não foi aproveitado em alguma cena do filme. Já pensou se a arma engripasse na hora “H”?
Eles também se comunicam com alguém de fora, através de fones de ouvido. Quem estará falando com os invasores? Onde está? O que diz a eles? Não se sabe...
Quem são esses invasores? Fica-se sabendo que um deles tem 37 anos e é um Agente Penitenciário (o salário médio dessa categoria nos EUA é de US$ 2.765/mês (aproximadamente R$ 11.200/mês ao câmbio atual), correspondente a cerca de 60% do salário médio para homens de 35 a 44 anos nos EUA).
Outro é um Assistente de Recursos Humanos com idade semelhante (o salário médio dessa categoria nos EUA é de US$ 2.653/mês (aproximadamente R$ 10.750 ao câmbio atual), correspondente a cerca de 57,5% do salário médio para homens de 35 a 44 anos nos Estados Unidos).
Ou seja, são pessoas comuns, que ganham menos do que a média nacional americana, e aparentemente compensam essa frustração participando desse safári horrendo num país que não conhecem, tendo como alvo uma população que desprezam e não compreendem. Mas não tardam por esperar, pois com certeza não leram Euclides da Cunha: “O Nordestino é, antes de tudo, um forte”.
A população do vilarejo é unida, preza pela cultura local e pela preservação da memória coletiva, respeita a diversidade de gênero e é tecnologicamente conectada: o corrupto e impopular Prefeito de Serra Verde Tony Jr. (Thardelly Lima) e sua caravana são avistados pouco antes de chegar ao distrito e encontram apenas espaços vazios onde antes havia um fervilhante mercado.
Frustrada, sua trupe despeja de qualquer jeito na própria rua os livros velhos que traziam e deixam ali mesmo a doação de mantimentos com validade vencida e remédios de eficácia duvidosa...
A ideia de que uma horrível carnificina está para acontecer vem chegando aos poucos: primeiro com a percepção dos drones de reconhecimento, depois com o desaparecimento do distrito dos mapas digitais, o caminhão pipa chegando crivado de balas, cavalos de uma fazenda próxima vagando sozinhos pela cidade, a estranha visita do casal de brasileiros “do Sul” em motocicletas...
A partir daí o sinal dos celulares é cortado, depois a luz, e até uma criança indefesa é chacinada numa emboscada noturna, numa escalada alarmante que mostra a todos que algo está muito, muito errado em Bacurau...
Ao finalmente tomar consciência dos covardes massacres e do que ainda está por vir, a população se une para defender o “Bacurau Way of Life”. Nesse ponto, o casal Teresa e “Pacote” (Thomas Aquino), juntamente com a médica Domingas (Sônia Braga, a eterna “Gabriela”, “Dona Flor” e “Dama do Lotação”), o professor Plínio (Wilson Rabelo) e o criminoso foragido da Lei Lunga (Silvero Pereira) assumem o comando e organizam a população para enfrentar os invasores.
O museu (uma clara alusão à Memória) e a escola (que representa a Cultura) são os bastiões da resistência. Armas antigas (algumas com mais de 100 anos de idade, como uma “Mauser” alemã de 1918) são retiradas da parede do museu e distribuídas à população.
Um jogo de gato e rato vai se desenrolando, a ideia inicial de superioridade dos gringos é desbaratada pela tática de guerrilha local, e um a um eles vão sendo vencidos, até mesmo com a inusitada ajuda de seu próprio líder Michael, que enlouqueceu e, da campana onde estava, começou a atirar em qualquer coisa que se movia, inclusive em seus próprios companheiros...
Algumas dúvidas: no decorrer de toda a preparação e da invasão propriamente dita, por que os cães do povoado não notaram os estranhos? As armas tiradas do museu eram velhas demais para funcionarem sem terem passado por manutenção adequada. Também não se pode dizer que, depois de todos esses anos, ainda se teria munição funcional para carrega-las. E a pontaria dos moradores revelou-se boa demais para enfrentar e matar, sem sofrerem baixas, invasores muito bem armados que usavam coletes à prova de balas...
No fim, vitória incontestável da “Dama do Lotação” e de seus amigos, que demoliram os gringos malvados e, de quebra, ainda pegaram de jeito o Prefeito corrupto após descobrir que ele estava mancomunado com os atacantes (“os turistas”, como ele os descreveu cinicamente).
Michael, o único sobrevivente do grupo invasor, é enterrado vivo. As cabeças dos demais vencidos são expostas em praça pública, num paralelo muito interessante com a foto histórica das cabeças de Lampião e seu bando após a derrota no Arraial de Angicos (SE) em 1938.
Um detalhe muito curioso e que quase passou despercebido na hora da invasão da vila foi a cena na TV mostrando a chamada para execuções públicas no Vale do Anhangabaú (São Paulo/SP). Quem estava sendo executado? Por que? Ninguém sabe, mas é uma pena que o filme perdeu a oportunidade de desenvolver mais esse ângulo do nosso futuro...
Ao Prefeito é reservado um tratamento que os cinéfilos vão reconhecer do filme dirigido por Ridley Scott, “A Cruzada”(2005), após a captura de Guy de Lusignan: ele é despido e conduzido amarrado montado de costas a um burro.
Diferentemente de Guy, o Prefeito provavelmente vai sobreviver ao vexame público para ter que prestar contas ao grupo que organizou a caçada humana, e ele mesmo admite que acabará sendo morto por eles...
A mensagem do filme dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles parece ser clara: a união faz a força, pode-se vencer mesmo em inferioridade tecnológica, através da valorização da Memória e da Cultura. Aliás, notei que não foram utilizadas tantas expressões regionais quanto seria desejável. Seria uma estratégia dos diretores para melhor atrair o público do Sul/Sudeste do Brasil?
Outro ponto: é crível pensar que alguém iria tentar socorrer quem acabou de tentar embosca-los e mata-los, como fez o casal de idosos local após liquidar sozinho um dos invasores e ferir gravemente a outra? Ou servir uma mesa de quitutes para o imprevisível e fortemente armado líder dos atacantes, como fez Domingas com Michael?
Entretanto, será que não se está, de um modo geral, apresentando uma visão por demais maniqueísta das partes para os tempos atuais? Brancos americanos maus versus sertanejos brasileiros bons e totalmente entrosados (mesmo os criminosos), uma visão simplista de superioridade cultural que vem dominar sem se importar com quem está no lugar, que despreza a Memória e a Cultura locais, que só visa à satisfação individual e ao lucro, etc. A sociedade americana hoje é mais multifacetada. Por que não foram mostrados negros, orientais ou latinos no grupo de invasores?
E mesmo assim, dentro dessa visão crítica do capitalismo, a película poderia ter sido mais ousada: não seria melhor, por exemplo, colocar mais especificamente um interesse econômico escuso na terra de Bacurau que justificasse o erguimento da barragem que impedia o abastecimento da água do rio para a vila?
Nessa ótica, não parece que estamos vendo mais um filme simplista dos anos 80, da época da Guerra Fria? Hoje o mundo é muito diferente e multipolar, não há como ficar isolado dos outros, e mesmo as culturas locais são inundadas por outras culturas e pela cultura global. Até Bacurau tem acesso à internet e à TV, e um tablet era usado pelo professor na escola. Será que só interessou mostrar o lado negro dos EUA e da economia capitalista? E o resto, como fica?
Pelo que se viu no filme, Bacurau é distante de outros centros urbanos e tem poucos habitantes, um lugar pobre onde todos se conhecem, que vive provavelmente mais de transferências de renda (aposentadorias dos mais idosos, bolsa-família, os parcos donativos da Prefeitura, etc) do que do próprio trabalho.
Quem bancava o caminhão pipa, que trazia água por toda aquela distância? Como os habitantes pagavam pelo que consumiam, já que os possíveis mercados para escoar a produção local ficavam muito longe do distrito? Tudo bem valorizar a Memória e a Cultura, mas e o resto?
É muito provável que o filme toque os espectadores em relação a uma ferida ainda aberta na sociedade brasileira, fraturada após as crises dos últimos anos e, sobretudo, pelo último processo eleitoral. Mas como essa mensagem de resistência ecoará numa sociedade infinitamente maior, mais complexa e incrivelmente mais interconectada?
Será que, na realidade brasileira atual, não seria melhor uma tentativa de promover a valorização de cada uma das diferentes culturas, bem como a busca de um entendimento entre as múltiplas partes que seja vantajoso e benéfico para o País como um todo? Afinal, as pernas direita e esquerda tem que se equilibrar, senão não sairemos do chão...
*Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.
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