13.03.2020
Por Fernando Machado *
Quem não quer receber uma pizza bem quentinha no conforto de sua casa, ou ter aquele produto tão desejado entregue de forma rápida e eficiente logo após a compra? Que mundo maravilhoso para os consumidores! É só escolher, pagar e receber sem demora!
O que poucas pessoas procuram observar é como funciona o outro lado dessa moeda, ou seja, como é complexa e muitas vezes cruel a engrenagem que permite essa rapidez e o atrativo custo de entrega...
Muito se fala da chamada “Gig Economy” (em tradução livre, “Economia dos Bicos”), em que as pessoas estão livres dos grilhões da velha Economia, podendo ofertar livremente seus serviços para diversas empresas, sem vínculo empregatício.
No Brasil, há muita discussão sobre até que ponto os motoristas de aplicativos estariam tomando o lugar dos táxis. A visibilidade desta nova Economia também está nas numerosas motocicletas, bicicletas e até patinetes utilizadas para os serviços de entrega nas nossas cidades.
Por isso, achei muito interessante essa película de 2019 dirigida pelo octogenário Ken Loach, que traz as mazelas do novo mercado de trabalho nessa Economia moderna, em que os empregados de ontem agora são os prestadores de serviço de hoje, sem qualquer vínculo empregatício.
O título do filme é “Sorry we missed you” (“desculpe, nós sentimos sua falta”, em tradução livre), justamente a frase utilizada no folheto que acompanha os produtos no caso dos destinatários estarem ausentes no momento da entrega. Ironicamente, a família dos prestadores de serviço também sente a sua falta...
A estória se passa em Newcastle upon Tyne (Newcastle sobre o rio Tyne), uma cidade no Nordeste da Inglaterra a aproximadamente 450 km de distância de Londres, que conta com cerca de 270 mil habitantes (390 mil, se for adicionada a população da vizinha Gateshead, do outro lado do rio).
Essa cidade localizada perto da fronteira da Escócia foi um assentamento romano importante, próximo de onde passava a chamada “Muralha de Adriano”, que marcava o limite entre a “civilização romana” e as “terras bárbaras”.
Com suas minas de carvão e estaleiros, teve uma grande importância na Revolução Industrial inglesa, quando experimentou grande crescimento econômico; há poucas décadas, enfrentou certo declínio com o fechamento de diversas minas de carvão após a famosa greve dos mineiros de 1984-85.
Atualmente é um centro universitário, com destaque também para o comércio e turismo. Nesta aprazível localidade histórica o desempregado sem nível universitário Ricky Turner (Kris Hitchen) e sua família vão passar por diversas agruras que vão mudar para sempre suas vidas. Estaria o mundo saindo da “civilização” para a “barbárie”, como nos tempos da “Muralha de Adriano”?
Uma curiosidade: Ken Loach, que também dirigiu Eu, Daniel Blake (2016), gosta de colocar em cena cães com três patas, a exemplo do filme de 2006 The wind that shakes the barley (Ventos da Liberdade - título que recebeu em português). Neste último filme, a honra coube a “Puppy, the three legged dog” (Puppy, o cão de três patas, em tradução livre), que aparece no início da película e é citado nos créditos ao final da exibição.
Tudo começa quando Ricky é seduzido pela ideia da liberdade que teria ao “trabalhar por conta própria”, sem ter que se reportar a chefes chatos, aturar penosas condições de trabalho e ficar exposto aos elementos. É interessante lembrar que ele também teria ainda a opção de recorrer ao auxílio-desemprego oferecido pelo governo, mas resolve não utilizá-la.
Tudo começa quando Ricky é seduzido pela ideia da liberdade que teria ao “trabalhar por conta própria”, sem ter que se reportar a chefes chatos, aturar penosas condições de trabalho e ficar exposto aos elementos. É interessante lembrar que ele também teria ainda a opção de recorrer ao auxílio-desemprego oferecido pelo governo, mas resolve não utilizá-la.
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Ele contata a empresa “PDF - parcels delivered fast”, (“pacotes entregues rapidamente” em tradução livre) e recebe as informações gerais sobre a prestação de serviços de transporte que poderá realizar com o gerente Maloney (Ross Brewster). Este lhe explica detalhadamente que Ricky não será um empregado da empresa, mas sim um prestador de serviços de transporte (“você trabalha conosco, não para nós”). Para o serviço, será necessária uma van, que pode ser própria ou também oferecida pela empresa a um custo diário de 65 libras (cerca de R$ 396,50 pelo câmbio atual, ou o equivalente a cerca de 7,5 horas de trabalho considerando o salário mínimo vigente para o Reino Unido em 2020, de 8,72 libras/hora). Também é explicado a Ricky por Maloney que, caso ele não possa prestar o serviço num determinado dia, deverá indicar um motorista substituto ou ficará sujeito a uma multa de 100 libras.
Um animado Ricky explica para sua esposa Abbie (Debbie Honeywood) que poderá receber em torno de 200 libras por dia com esse novo serviço, como seu amigo Henry (Charlie Richmond), que também trabalha “com a PDF”, e isso poderia impulsioná-los, a médio prazo, para uma situação financeira mais confortável do que ficar a vida toda endividados e pagando aluguel. Entretanto, para isso ele precisa de uma van própria para trabalhar, já que pagar as 65 libras diárias por uma van da empresa seria, em sua opinião, “jogar dinheiro fora”. Abbie argumenta que eles já estão muito endividados, e que para dar o dinheiro da entrada da van seria necessário vender o único carro da família, o mesmo que ela utiliza para o atendimento, como cuidadora, de seus pacientes/clientes. Também haveria um grande ônus para a família em decorrência das longas jornadas dos dois, pois Ricky teria que trabalhar 14 h por dia, seis dias por semana, em média, e ela teria que usar o transporte público, mais demorado. Ele leva a melhor na discussão, vende o carro e dá entrada na tão sonhada van.
Assina o contrato e, auxiliado por seu amigo Henry, inicia seu trabalho como motorista autônomo. No primeiro dia, Maloney lhe explica que ele receberá um “scanner inteligente”, que indicará para a PDF e para os clientes onde estão os pacotes a serem entregues, em tempo real. Quando Ricky escanear determinado pacote, a entrega será de sua responsabilidade, e tanto a eventual perda de um ou mais pacotes quanto qualquer dano ao scanner acarretará ônus para ele, na forma de multas e taxas. Também lhe é explicado que há os produtos normais e os “precises” (“precisos”, que tem prazo de uma hora para a entrega ao cliente). Os “precises” pagam mais. Também há rotas de entrega mais e menos complicadas.
Logo ele vê que a nova tarefa não é moleza, pois está sujeito a multas de trânsito, atrasos por motivos diversos e tem que enfrentar uma jornada estafante, que lhe deixa pouco tempo para a família. Abbie também está com problemas, pois agora depende do transporte público e tem que se virar para dar conta de todos os seus pacientes/clientes. Numa atitude impensada, o novato Ricky assume uma rota particularmente difícil da PDF, que ninguém mais quer, mas que é mais lucrativa. Essa escolha impulsiva lhe custará muito caro...
O filme coloca o impacto que essa rápida mudança tecnológica pela qual estamos passando afeta nossas relações humanas, nossa saúde e nosso tempo livre. Ricky percebe que na prática, além da perda dos benefícios empregatícios, apenas trocou um chefe humano por uma máquina implacável, que apita a cada dois minutos quando ele está parado entre uma entrega e outra...
Seus filhos “Seb” (Rhys Stone), de 17 anos e Liza (Katie Proctor), de 11, também se sentem abandonados nesta nova situação, e experimentam um crescente processo de alienação em relação à família, em que “Seb” terá graves problemas na escola e chegará a ser detido pela polícia por praticar um pequeno furto de latas de spray de tinta para suas atividades de pichação. É comovente notar a humanidade de Abbie, que procura tratar seus pacientes/clientes “como se fossem sua mãe”, e também a preocupação da pequena Liza com o bem estar da família. A discussão de pai e filho sobre “o futuro” é uma das gratas surpresas da película: “Seb” se recusa a fazer parte desse sistema de endividamento eterno, em que entraria para custear seus estudos superiores, e também não quer ficar como o pai. Este não tem argumentos para contrabalançar a visão pessimista do filho.
Outra observação interessante, desta vez de parte da pequena Liza e seu bonito sotaque do interior inglês: “quem são as pessoas que fazem os programas utilizados no scanner inteligente? Eles tem tempo para ir ao banheiro?” Simplesmente maravilhoso!
A película também nos faz pensar em quais são os reais impactos sociais desse novo arranjo de transferência de custos e riscos, notadamente seus efeitos sobre o tempo livre das pessoas, as relações familiares, a ocorrência de violência doméstica, o aumento dos índices de criminalidade e do número de acidentes, bem como o incremento dos custos de saúde, tanto física quanto mental. E seu peso sobre as finanças dos governos, os quais serão obrigados a arcar com as consequências...
Mas o diretor, ao apresentar apenas a visão extremamente negativa da chamada “Gig Economy”, em que Ricky e sua família pagam um preço bem alto, propositalmente esquece que são exatamente as más decisões que Ricky tomou que levaram a família à triste situação em que se encontram no final do filme...
Ele poderia ter escolhido não trabalhar “com a PDF” e ter um “emprego normal” (a taxa de desemprego no Reino Unido está muito mais baixa do que a do Brasil, e ele tinha qualificações e experiência em diversas áreas). Ou poderia não ter optado pela rota mais lucrativa e problemática, ficando assim numa situação mais parecida com a de seu amigo Henry e demais prestadores de serviços de transporte que, aparentemente, continuaram a trabalhar “com a PDF” normalmente. Também havia a possibilidade de ter alugado a van da empresa, não tendo assim que submeter sua esposa (e sua família) a tanto desconforto. Num caso extremo, ele poderia ter escolhido permanecer desempregado, com direito ao auxílio-desemprego...
No fim, Ricky escolheu olhar apenas para os “bônus” do novo serviço, sem levar em conta os possíveis “ônus”. Apostou que tudo daria certo e que ele ganharia o máximo de dinheiro possível, o que lhe permitiria dar entrada numa nova casa própria e recuperar a situação financeira que tinham antes de serem atingidos pela crise de 2008.
Mas, ao fazê-lo, colocou essas metas ambiciosas que ele traçou acima das necessidades dos demais, trazendo como consequência dor e sofrimento para si e para seus familiares...
O filme não mostra quanto dinheiro ele realmente está ganhando, mas dá alguns relances: quando o casal perde um dia de trabalho após o assalto a Ricky, ele desabafa para Abbie: “este dia nos custou 500 libras!”.
Tirando as 100 libras de multa por ausência e não indicação de outro motorista, sobraram 400 libras. Se pensarmos hipoteticamente que Ricky ganharia 300 libras dessas 400 por estar na rota mais lucrativa, e Abbie ganharia as 100 libras restantes por suas visitas, vemos que não é pouco.
Para se ter uma ideia, em poucos dias esse valor cobriria as multas que o “malvado” Maloney cobrou dele pelos custos do scanner destruído (1.000 libras) e dos dois passaportes roubados (250 libras cada) no assalto.
Esses importantes detalhes foram colocados em segundo plano pelo diretor. Outros pontos relevantes como o Brexit (assunto obrigatório no Reino Unido em 2019, pelos possíveis impactos sobre a Economia e a vida das pessoas comuns) e a imigração (fonte de diversos problemas tendo em vista a competição pelo trabalho que os imigrantes trazem), nem sequer foram levantados.
É uma pena, pois perdeu-se uma grande oportunidade para uma discussão mais ampla dessas questões, do ponto de vista de uma família comum vivendo numa cidade grande do Reino Unido.
O que fazer em relação a essa situação de desalento trazida pela nova Economia? É importante lembrar que, no passado, a Revolução Industrial apresentou oportunidades únicas para os consumidores, que tinham acesso a bens a preços mais baixos. Entretanto, as pessoas que produziam esses bens viviam em condições abjetas e trabalhavam literalmente até morrer, sem um “cobertor social”.
O autor próximo ao "escritório" dos prestadores de serviço na Av. Paulista
Com o decorrer do tempo, a ação de movimentos sindicais, políticos, religiosos, estudiosos, enfim, dos próprios membros da sociedade, gerou uma normatização maior, melhorando substancialmente a vida dos produtores e mantendo a maioria das vantagens para os consumidores. Acredito que será o caso novamente, e a aparente “barbárie” atual seria, então, fruto desses primeiros estágios do processo de transformação da Economia, que está ocorrendo num ritmo muito mais rápido do que na época da Revolução Industrial.
Como podemos comparar o que vimos no filme com a situação da nova Economia no Brasil? Em primeiro lugar, infelizmente vemos que nossos diretores e diretoras cinematográficos ainda não consideraram a “Gig Economy” um tema tão relevante assim para ser tema de um grande filme brasileiro...
Por outro lado, temos por aqui uma situação de alto desemprego e sem um “cobertor social” tão abrangente como o disponível para o cidadão britânico médio. Comparativamente, temos uma estrutura mais precária, menor renda, custos mais elevados (juros, impostos, taxas, etc), menor nível de educação e menor produtividade por hora trabalhada, fatores que constituem entraves adicionais para o eventual sucesso dos prestadores de serviços.
Tanto lá quanto cá, a aposta que se pode fazer é a de que haverá, com o devido tempo, uma maior regulamentação do setor público sobre essa nova Economia, proibindo essa excessiva transferência de custos e de riscos vista no filme, bem como a aplicação de tantas sanções. Vai dar certo ou não? A conferir!
*Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.
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