18/08/2020
Por João Carlos Garcia (*)
Os quatro do Destacamento Blood e David, filho de Paul – foto divulgação
Apenas dois anos após seu genial Infiltrado na Klan (2018), ganhador do Oscar, se tornar um sucesso mundial, ele volta com essa nova obra prima e sua necessária versão sobre a guerra do Vietnã. Contada através de uma história que se parece insólita, ele recupera a importante e traumática participação dos afro-americanos na guerra que foi uma das mais cruéis e desiguais que ocorreram a partir da segunda metade do século passado. Morreram aproximadamente 58.000 soldados estadunidenses contra próximos 2 milhões de vietnamitas, entre civis e militares. Sem contar a devastação do país que recebeu toneladas de bombas, produtos químicos (por exemplo o agente laranja usado para destruir plantações agrícolas e desfolhar florestas) e NAPALM em todo o seu território.
O filme conta a história de quatro veteranos de guerra que voltam ao antigo campo de batalha para recuperar os restos mortais de seu líder e desenterrar um tesouro por eles escondido. Mas é muito mais que isso. Spike Lee explora as possibilidades infinitas que o cinema lhe proporciona e mais uma vez escancara a chaga do racismo que não cansa de assombrar seu país (o lançamento ocorre no momento das grandes manifestações contra mais um assassinato covarde e cruel de um negro) e também os dramas pessoais e sociais decorrentes do conflito e tão latentes ainda hoje.
Assim como Tarantino, Spike Lee sempre tem um cuidado especial com a trilha sonora. Além da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, o destaque fica com Marvin Gay e sua emocionante música “What´s Going On” do disco homônimo de 1971. A guerra termina somente em 1973, com a derrota dos Estados Unidos, portanto essa escolha tem muito significado. Aliás nesse filme nada é gratuito, nada é por acaso. Não há uma cena que não nos faz pensar, e muitas vezes nos remetendo a fatos históricos relevantes. Sem contar as várias imagens de época, reais, com personagens e movimentos que mudaram a cara do mundo. Tudo se interliga, se completa com muita maestria.
Afirmar, ainda, que os vietnamitas e o próprio Vietnã foram caricaturados (opinião de alguns críticos), é conhecer pouco o diretor, sua história e sua luta contra os racismos, preconceitos e todas as formas de injustiça e opressão. Spike Lee faz questão de dizer que faz filmes engajados politicamente, que tem lado e não perdoa quem defende causas e posturas abjetas, como é o caso de Donald Trump. O indefectível boné vermelho com o seu slogan de campanha “Make América Great Again” passando pela cabeça dos personagens mais desprezíveis, um negro que apoia um branco racista, um vietnamita miliciano e um francês bandido e assassino, é a clara demonstração do seu comprometimento político e ideológico.
Os veteranos de Guerra retornam ao Vietnã - foto divulgação
Uma mensagem que pode passar despercebida para muitos é sobre o drama das crianças nascidas de pais estadunidenses e mães vietnamitas. Mais uma consequência duradoura dessa guerra, assim como as minas com explosivos. Essas crianças em sua grande maioria foram geradas a partir da prática de estupro ou prostituição. Levaram décadas para serem respeitadas como cidadãs vietnamitas, principalmente as meninas, que eram chamadas de cachorras, e no caso das filhas dos soldados negros, de baratas, em razão da cor da pele. Foram, e ainda em grande medida, são discriminadas e humilhadas devido a sua origem. Por isso a cena do personagem Otis (Clarke Peters) conhecendo sua filha Michon (Sandy Huong Pham) é tão expressiva e comovente. A condição atual da família, mãe e filha, procura mostrar, apesar de todo sofrimento vivido, um exemplo de resiliência e superação.
Enfim, sobre esse filme poderia escrever um tratado, mas não é o caso aqui nesse espaço. Quando a Netflix anunciou em sua plataforma o seu lançamento a expectativa foi muito grande. E mais uma vez o diretor não decepcionou. Ao contrário, nos surpreendeu com uma belíssima obra que ao mesmo tempo é uma aula de cinema, história, política, mas acima de tudo nos remete a refletir sobre nossa complexa, frágil, emotiva, mesquinha, grandiosa, contraditória, heroica condição humana.
(*) João Carlos Garcia é economista, cinéfilo e membro do Grupo Cinema Paradiso.
1 comentários:
Estes dias ouvi a Fernanda Torres dizer no trailer do documentário "Crítico" que Oscar Wilde disse: "Toda crítica é uma autobiografia". Pois bem, seu texto nos faz ver outros lados do diretor que não conheciamos e nos dá uma firmeza sobre sua coerência artística. Obrigada pelo texto, caro!!
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