AS COISAS FINDAS

 24.08.2022
Por Rianete Lopes Botelho

Na comemoração dos 27 anos do Grupo Cinema Paradiso, reencontrei meus amigos, depois do longo afastamento imposto pela pandemia. Como foi gratificante rever aquelas pessoas tão queridas, celebrando a existência desse Grupo cheio de história e de significados. Sua dinâmica sempre se pautou pelo exercício da tolerância, respeito às divergências e entendimentos de que pontos de vista diferentes não são ameaças, mas sim oportunidade de ampliação de nossa visão de mundo. “Gracias a ese grupo, que me ha dado tanto!”.

Como sempre, a projeção e a discussão de um filme no CineSesc fizeram parte das festividades do aniversariante. Desta feita, o filme escolhido foi A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga. A história narra o dia a dia de pessoas comuns, de uma família comum, com frustrações, pequenas alegrias, pequenas descobertas, sonhos, como acontece com todo mundo. Por exemplo, o empenho da mãe em instalar uma piscina na casa de veraneio, tendo mar e rio tão próximos e sem disponibilidade financeira, parece expressar um sonho de ascensão social que, para ela, é sinônimo de felicidade. A diretora conseguiu fazer um bom filme, tratando de um tema tão prosaico, o que, indiscutivelmente, é um grande mérito. Não sei se por esse motivo me fez lembrar da cineasta Lucrecia Martel.

Apesar da simplicidade da história, A Felicidade das Coisas nos leva à reflexão sobre a condição feminina de hoje, questões de adolescência, das crises conjugais, dos desencantos, da convivência entre gerações (avó, mãe grávida, filho adolescente e uma filha, ainda criança). Isso nos mostra que, subjacentemente ao aparente transcorrer normal da vida, existem percalços, situações não resolvidas, mágoas, que a gente até pode fingir que não vê. Revestido de significados, o mar aparece várias vezes, ora nas ondas se espraiando na areia (superfície das coisas), ora na sua profundidade, parecendo lembrar ao espectador que a vida vai além do aparente.


Cena do filme A Felicidade das Coisas (Foto: divulgação)

O filme é acompanhado de uma discreta e constante tensão, como se a qualquer momento algo inesperado pudesse irromper, quebrando aquele cotidiano tranquilo. Também aqui o filme nos lembra que nossa estabilidade é permanentemente ameaçada por um futuro desconhecido sobre o qual não temos controle algum. Aliás, esta é a fonte de uma das grandes angústias humanas: estamos à mercê do imponderável.

Cena do filme A Felicidade das Coisas (Foto: divulgação)

Para mim, o que a cineasta nos mostra de mais importante é o resgate do papel desse cotidiano desinteressante e sem charme. Para isso, ela o colocou como protagonista do filme. Na vida real, só damos à rotina o papel de coadjuvante, figurante ou papel algum. Os melhores papéis cabem apenas às situações que fazem nosso coração bater acelerado, que nos tira o ar ou a razão.

Desempenhamos tarefas habituais, quase automaticamente, para que haja uma maior reserva de tempo e de energia para a administração do novo, do que precisa de solução, das dificuldades que estão sempre surgindo. É necessário que seja assim. Mas, de tanto concentrar nossos esforços na apreensão e domínio do novo - que, aliás, é bastante sedutor, por ser desafiante - terminamos perdendo o interesse pelo conquistado. Quando chegamos ao mundo, vamos descobrindo, com deslumbramento, cada coisa que se nos apresenta, aprendendo a nomeá-la e a nos relacionar com ela. O conhecido vai perdendo o encantamento da descoberta e novos deslumbramentos se sucedem. Assim vamos construindo rotinas (necessárias) para termos disponibilidade de investir no novo. Aquilo que se tornou trivial fica tão desimportante a ponto de só computarmos como tempo vivido os picos (bons ou maus) que ressaltam da linha do nosso dia a dia. Só fica valendo o tempo das grandes emoções, da competição, da procura de reconhecimento, matando um leão por dia para conseguir uma vida exitosa. Certamente isso tem a ver com a consciência que temos da nossa incompletude (castração). Essa insatisfação humana é que nos move para aprender, para criar. Só quem se acha pleno não precisa de mais nada. Ele se basta. Nessa busca inglória de preencher a falta vão se sucedendo algumas realizações, fracassos, muitas dificuldades. Hoje, mais do que nunca, somos solicitados pelo excesso de informação e de estimulação externa, sobretudo através da virtualidade que passou a fazer parte de nossas vidas como realidade paralela. Todos querem mostrar ao mundo o quanto são especiais, felizes, bem-sucedidos, perfeitos. Como esse nível de exigência é inalcançável, temos um bando de frustrados, infelizes, fracassados. Essas negação de nossas humanas limitações têm contribuído para o aumento significativo de preocupantes quadros depressivos. Além disso, esse processo nos afasta do contato conosco e com as coisas simples do cotidiano. Não se trata de opção entre o que somos e o que desejamos ser ou ter, pois ambos fazem parte do nosso estar no mundo.

O resultado da rapidez e da intensidade desse estilo de vida, pautado pelo ritmo alucinante de tanto apelo, é a sensação de que conseguimos muito pouco e que a vida passou depressa demais. Na verdade, muitas vezes, não vimos o que estava a nosso lado ou que estava acontecendo perto de nós, não usufruindo de grande parte do que nos foi dado.

Faz parte de nossa humanidade o fascínio pela fantasia, pela transcendência, o que nos torna capazes de criar arte, que é uma forma de nos levar além de nossa condição finita e imperfeita. Todavia, é fundamental que a gente aceite nossa humanidade como ela é, renunciando à pretensão de sermos semideuses. Quem sabe, isso nos permita usufruir de pequenos momentos de felicidade, que muitas vezes estão nas coisas simples, como o final do filme mostra: mãe e filho estão na roda gigante (que simboliza o tempo que passa, o mundo que gira) e ela para no alto. Ali, em posições diametralmente opostas, mãe e filho se olham e o filme acaba. É preciso parar de vez em quando para reencontrar um gesto, um sorriso, uma lágrima, um olhar… Como no poema, que acabei de lembrar.

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

2 comentários:

flavia m s disse...

esse artigo me fez rever o filme mentalmente e pensar em tantas coisas....

flavia m s disse...

gostei de poder robobinar o filme em minha mente e pensar na situação familiar... pai ausente empenhando o dinheiro dos sonhos da familia em outros projetos, a falta de preocupação com a situação dos seus entes, tanto material como a carencia afetiva do menino, a chuva como uma metafora lavando a alma e a piscina como sonho de consumo inatigivel... um certo mal estar intrinseco...