24.08.2022
Por Rianete Lopes Botelho
Como sempre, a projeção e a discussão de um filme no CineSesc fizeram parte das festividades do aniversariante. Desta feita, o filme escolhido foi A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga. A história narra o dia a dia de pessoas comuns, de uma família comum, com frustrações, pequenas alegrias, pequenas descobertas, sonhos, como acontece com todo mundo. Por exemplo, o empenho da mãe em instalar uma piscina na casa de veraneio, tendo mar e rio tão próximos e sem disponibilidade financeira, parece expressar um sonho de ascensão social que, para ela, é sinônimo de felicidade. A diretora conseguiu fazer um bom filme, tratando de um tema tão prosaico, o que, indiscutivelmente, é um grande mérito. Não sei se por esse motivo me fez lembrar da cineasta Lucrecia Martel.
Apesar da simplicidade da história, A Felicidade das Coisas nos leva à reflexão sobre a condição feminina de hoje, questões de adolescência, das crises conjugais, dos desencantos, da convivência entre gerações (avó, mãe grávida, filho adolescente e uma filha, ainda criança). Isso nos mostra que, subjacentemente ao aparente transcorrer normal da vida, existem percalços, situações não resolvidas, mágoas, que a gente até pode fingir que não vê. Revestido de significados, o mar aparece várias vezes, ora nas ondas se espraiando na areia (superfície das coisas), ora na sua profundidade, parecendo lembrar ao espectador que a vida vai além do aparente.
Cena do filme A Felicidade das Coisas (Foto: divulgação)
Desempenhamos tarefas habituais, quase automaticamente, para que haja uma maior reserva de tempo e de energia para a administração do novo, do que precisa de solução, das dificuldades que estão sempre surgindo. É necessário que seja assim. Mas, de tanto concentrar nossos esforços na apreensão e domínio do novo - que, aliás, é bastante sedutor, por ser desafiante - terminamos perdendo o interesse pelo conquistado. Quando chegamos ao mundo, vamos descobrindo, com deslumbramento, cada coisa que se nos apresenta, aprendendo a nomeá-la e a nos relacionar com ela. O conhecido vai perdendo o encantamento da descoberta e novos deslumbramentos se sucedem. Assim vamos construindo rotinas (necessárias) para termos disponibilidade de investir no novo. Aquilo que se tornou trivial fica tão desimportante a ponto de só computarmos como tempo vivido os picos (bons ou maus) que ressaltam da linha do nosso dia a dia. Só fica valendo o tempo das grandes emoções, da competição, da procura de reconhecimento, matando um leão por dia para conseguir uma vida exitosa. Certamente isso tem a ver com a consciência que temos da nossa incompletude (castração). Essa insatisfação humana é que nos move para aprender, para criar. Só quem se acha pleno não precisa de mais nada. Ele se basta. Nessa busca inglória de preencher a falta vão se sucedendo algumas realizações, fracassos, muitas dificuldades. Hoje, mais do que nunca, somos solicitados pelo excesso de informação e de estimulação externa, sobretudo através da virtualidade que passou a fazer parte de nossas vidas como realidade paralela. Todos querem mostrar ao mundo o quanto são especiais, felizes, bem-sucedidos, perfeitos. Como esse nível de exigência é inalcançável, temos um bando de frustrados, infelizes, fracassados. Essas negação de nossas humanas limitações têm contribuído para o aumento significativo de preocupantes quadros depressivos. Além disso, esse processo nos afasta do contato conosco e com as coisas simples do cotidiano. Não se trata de opção entre o que somos e o que desejamos ser ou ter, pois ambos fazem parte do nosso estar no mundo.
O resultado da rapidez e da intensidade desse estilo de vida, pautado pelo ritmo alucinante de tanto apelo, é a sensação de que conseguimos muito pouco e que a vida passou depressa demais. Na verdade, muitas vezes, não vimos o que estava a nosso lado ou que estava acontecendo perto de nós, não usufruindo de grande parte do que nos foi dado.
Faz parte de nossa humanidade o fascínio pela fantasia, pela transcendência, o que nos torna capazes de criar arte, que é uma forma de nos levar além de nossa condição finita e imperfeita. Todavia, é fundamental que a gente aceite nossa humanidade como ela é, renunciando à pretensão de sermos semideuses. Quem sabe, isso nos permita usufruir de pequenos momentos de felicidade, que muitas vezes estão nas coisas simples, como o final do filme mostra: mãe e filho estão na roda gigante (que simboliza o tempo que passa, o mundo que gira) e ela para no alto. Ali, em posições diametralmente opostas, mãe e filho se olham e o filme acaba. É preciso parar de vez em quando para reencontrar um gesto, um sorriso, uma lágrima, um olhar… Como no poema, que acabei de lembrar.
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(Carlos Drummond de Andrade, in Claro Enigma, 1951)
Saiba mais sobre o filme A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga e a
comemoração dos 27 anos do Grupo Cinema Paradiso [+]
Saiba mais sobre o filme A FELICIDADE DAS COISAS, de Thaís Fujinaga e a
comemoração dos 27 anos do Grupo Cinema Paradiso [+]
2 comentários:
esse artigo me fez rever o filme mentalmente e pensar em tantas coisas....
gostei de poder robobinar o filme em minha mente e pensar na situação familiar... pai ausente empenhando o dinheiro dos sonhos da familia em outros projetos, a falta de preocupação com a situação dos seus entes, tanto material como a carencia afetiva do menino, a chuva como uma metafora lavando a alma e a piscina como sonho de consumo inatigivel... um certo mal estar intrinseco...
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