31.08.2023
Por Cláudia Mogadouro
Imagem do filme A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Alberto Caieiro
É curioso pensar sobre a universalidade das culturas locais. Temos uma tendência a achar que questões gerais são discutidas em grandes cidades e que cidades interioranas ou pequenas expressarão apenas os costumes e interesses locais. Uma obra de arte - fílmica, literária, musical - pode abordar temas de uma pequena aldeia e sensibilizar pessoas do mundo todo. Um filme como Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), por exemplo, é uma adaptação do conto de um escritor albanês para o cenário do nordeste brasileiro. E ainda assim tornou-se uma obra universal. Pode-se dizer o mesmo sobre o recente filme brasileiro A História da Eternidade, primeiro longa metragem do cineasta pernambucano Camilo Cavalcante. O filme trata de três histórias femininas que se entrecruzam no sertão nordestino, em um vilarejo com meia dúzia de casas. A forma poética de contar as histórias e a abordagem das relações humanas em uma sociedade patriarcal tira todo caráter "regional" do filme, tornando-o universal. Somado a isso, a excelência do elenco, a trilha sonora e a fotografia bem cuidadas conferiram a essa obra uma série de prêmios nos festivais de cinema, dentro e fora do Brasil. Infelizmente, por conta das dificuldades de distribuição do cinema brasileiro, esse filme ficou pouquíssimo tempo em cartaz nas salas de cinema.
A qualidade do filme A História da Eternidade vem confirmar a excelente produção pernambucana que vem surpreendendo o Brasil nos últimos anos. A indústria cinematográfica brasileira concentrou-se por muito tempo no eixo Rio-São Paulo, onde estão as mais importantes e ricas produtoras. Nas outras regiões também se fazia filmes, mas com precariedade de recursos e, principalmente, com poucas chances de seres vistos além do público local. Atualmente, o cinema pernambucano tem se destacado como um dos polos de maior qualidade artística do país.
Desde os anos 1920, época dos chamados ciclos "regionais" de cinema, a produção de Recife (PE) se revelou, com destaque para os cineastas Edson Chagas e Gentil Roiz. Eles realizaram ao todo 12 longas e 25 curtas, sendo o mais famoso deles Aitaré da Praia (1925), que circulou pelo país. Nessa fase, o domínio cultural estrangeiro concentrava-se mais nas grandes cidades, permitindo o desenvolvimento da arte local, dando, inclusive, mais liberdade de criação, já que seus artistas não sofriam tanto as pressões do mercado. Mas esses ciclos duraram pouco, pois não demorou para o cinema norte-americano chegar também nessas regiões.
Seguindo o exemplo de várias capitais brasileiras, entre os anos 1950 e 1980, Recife tornou-se uma cidade com cultura cineclubista, permitindo o surgimento de uma geração de jovens cineastas que criou o Grupo de Cinema Super-8 de Pernambuco (com destaque para o documentarista Fernando Spencer). Com o declínio do Super-8, na década de 1980, inicia-se uma fase fértil de produção de curtas metragens, com temas da cultura local, documentários e filmes experimentais. Paulo Caldas é um cineasta que já nessa época produzia curtas metragens. Segundo ele, como não havia escolas de cinema em Recife, o jeito de se aprender a fazer cinema era produzindo curtas.
Em 1990, o já sofrido cinema brasileiro é interrompido com o fim da Embrafilme, decretado pelo então presidente Fernando Collor de Mello. As produções brasileiras simplesmente vão a zero, pois não tínhamos uma indústria de cinema que pudesse sobreviver sem ajuda estatal (até hoje não temos). Dois anos depois, foram promulgadas novas leis de incentivo à cultura, que receberam o nome do então secretário da Cultura Sérgio Paulo Rouanet. A produção de cinema foi sendo retomada aos poucos e o primeiro grande sucesso de público dessa nova fase (chamada de "retomada do cinema brasileiro") foi Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995).
Em Pernambuco, a Lei Rouanet somou-se a outras leis de incentivo locais e aquela geração de cineclubistas e realizadores de curtas metragens encontrou recursos para transformar seus sonhos criativos em grandes filmes, trabalhando como um coletivo que escrevia os roteiros, produzia, dirigia e atuava. O primeiro sucesso dessa época foi Baile Perfumado, de Paulo Caldas codirigido por Lírio Ferreira (1996) e coescrito por Hilton Lacerda. O filme conta a história de um mascate libanês - Benjamin Abrahão, que era amigo íntimo de Padre Cícero. Ele resolve filmar Lampião, acreditando que ficaria muito rico com o filme. Consegue contato e uma conversa com o famoso cangaceiro, porém, a ditadura do Estado Novo estraga seus planos. Baile Perfumado exibe as únicas imagens de Lampião ainda vivo, coletadas por esse cinegrafista amador, que realmente existiu. Além disso, ao contrário dos tradicionais filmes sobre o tema, apresenta um sertão muito verde e Lampião tomando whisky e se banhando com perfume francês (daí o nome do filme). A música é composta pelos jovens músicos do movimento manguebeat, como Chico Science & Nação Zumbi e Mestre Ambrósio.
Luiz Carlos Vasconcelos, como lampião, em Baile Perfumado (1996)
Paulo Caldas, que nasceu em João Pessoa/PB, em 1964, consegue repercussão internacional com seu documentário O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), feito em parceria com Marcelo Luna, que relata a história de dois jovens da periferia de Recife, um se torna músico de rap e o outro, justiceiro. Depois ele dirige Deserto Feliz (2007) - coescrito por Marcelo Gomes, Xico Sá e Manoela Dias, País do Desejo (2011) e um belo documentário (que foi para a TV como série) chamado Saudade (2017), que investiga as várias percepções desse sentimento. Filmes mais recentes de Paulo Caldas, codirigidos por Bárbara Cunha: Abismo Tropical, Flores do Cárcere, ambos de 2019, com roteiro de Caldas. Em 2021, Paulo Caldas finalizou (mas só lançou em 2023) o documentário O Circo Voltou, desta vez, Bárbara Cunha assina o roteiro.
Com roteiro de Hilton Lacerda e direção de Cláudio Assis (nascido em Caruaru/PE, em 1959), outro filme significativo da chamada retomada pernambucana foi Amarelo Manga (2002). Premiado nacional e internacionalmente, a trama traz várias histórias fortes interpretadas por elenco conhecido do público, como Leona Cavali, Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes e Chico Diaz. Sua ousadia estética e temática aparece em toda a sua obra, com filmes fortes, como Baixio das Bestas (2006) e A Febre do Rato (2011), também escrito por Hilton Lacerda. Mais suave é o longa Big Jato (2016) que traz um adolescente que gosta de poesia e se sente dividido entre a repressão do pai e o incentivo do tio para sua veia poética. Ambos os personagens (tio e pai) são vividos por Matheus Nachtergaele. Seu mais recente longa é Piedade (2019). Os filmes de Cláudio Assis têm a marca da reflexão sobre o comportamento humano, apresentando uma linguagem cinematográfica autoral e produção de baixo custo (embora isso não apareça na tela).
Outro diretor de destaque dessa geração é Marcelo Gomes, recifense de 1963, que também começou realizando curtas como Maracatu, Maracatu (1995) e Clandestina Felicidade (1998), este sobre a infância e a obra de Clarice Lispector. O primeiro longa-metragem de Gomes para o cinema foi uma surpresa que fez o Brasil olhar para o Cinema Pernambucano: Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), que foi premiado no Brasil e no exterior. Na França, o filme recebeu o "Prêmio da Educação Nacional", do Ministério da Educação Nacional, que prevê a distribuição do filme, através de um DVD pedagógico, para aproximadamente um milhão de estudantes franceses. O ator João Miguel que interpreta Ranulpho ganhou também muitos prêmios com o filme. A realização deste filme exprime bem a camaradagem dos cineastas pernambucanos (chamada de “brodagem”), pois os roteiristas são seus amigos Karin Aïnouz, Paulo Caldas e o próprio Gomes. Uns participavam dos filmes dos outros.
Outros ótimos filmes de Marcelo Gomes: Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, codireção com Karim Aïnouz) e Era Uma Vez Eu, Verônica (2012). Em 2013, codirigiu com Cao Guimarães O Homem das Multidões. Em 2017, um de seus longas foi selecionado para o Festival de Berlim: Joaquim, um belo filme sobre a vida de Tiradentes antes de se engajar na Inconfidência Mineira. E, em 2019, Marcelo Gomes lança o documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, filmando os trabalhadores da cidade de Toritama/PE, responsável por boa parte da produção e jeans brasileiro. Como sempre, a partir de uma questão local, ele reflete e problematiza as péssimas condições de trabalho no Brasil e a ilusão do empreendedorismo. Em 2022, finalizou o longa Paloma, uma agricultora que é uma mulher transgênero que deseja se casar na Igreja.
Karim Aïnouz, já citado anteriormente, nasceu em Fortaleza/CE, em 1966. Também teve sua carreira com curtas metragens, assinou a coautoria de roteiros de seus amigos cineastas pernambucanos e de outros importantes filmes, como Abril Despedaçado (dirigido por Walter Salles, 2001) e Cidade Baixa (dirigido por Sérgio Machado, 2005). Seu primeiro longa-metragem na direção foi Madame Satã (2002), que teve muito impacto e foi indicado a inúmeros prêmios, como o de melhor ator para Lázaro Ramos e melhor atriz para Marcélia Cartaxo. Outros destaques de sua atuação como diretor são os delicados filmes O Céu de Suely (2006), O Abismo Prateado (2011) e Praia do Futuro (2013), este com atuação brilhante de Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, com produção Brasil/Alemanha. Em 2019, Karim realiza A Vida Invisível, livremente inspirado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. Karin toma a liberdade de mudar bastante a história do livro, embora mantenha a mesma moldura: a condição feminina no Rio de Janeiro dos anos 1950. Muito merecidamente este filme ganhou o prêmio Un Certain Regard no Festival de Cannes 2019. Dirigiu em 2021 um documentário sobre sua história pessoal, intitulado O Marinheiro das Montanhas, mas ainda não tem data de lançamento no mercado exibir. Também em 2021, dirigiu um drama histórico britânico Firebrand, sobre o casamento dos monarcas Katherine Parr e Henrique WIII. Embora Karim já tivesse realizado coproduções com a Alemanha, este é seu primeiro filme totalmente realizado fora do Brasil e com elenco estrangeiro. O filme foi apresentado no Festival de Cannes, em maio de 2023.
Voltando a Lírio Ferreira, nascido em Recife, em 1965, que já fora citado na direção de Baile Perfumado. Ele fez também Árido Movie (2005) e depois se dedicou a dois documentários musicais muito interessantes: Cartola, Música para os Olhos (codireção de Hilton Lacerda, 2007), O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), sobre a vida e obra de Humberto Teixeira, letrista dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga e Sangue Azul (2014). Em 2020, lançou na Mostra Ecofalante, o ótimo Acqua Movie (2019), que é uma espécie de continuação e atualização de Árido Movie. Tem se dedicado atualmente a séries televisivas.
Hilton Lacerda, também recifense de 1965, aparecia antes apenas como roteirista de vários dos filmes citados. Escreveu ainda A Festa da Menina Morta (2008, primeiro trabalho de direção de Matheus Nachtergaele) e Capitães da Areia (2011). Seu primeiro trabalho na direção foi o documentário Cartola, Música para os Olhos (codirigido por Lírio Ferreira) e, em 2013, o filme bastante premiado Tatuagem. Em 2016, dirigiu 5 episódios de Fim do Mundo (minissérie televisiva). Em 2019, dirigiu o filme Fim de Festa, mais uma vez tendo o ótimo ator Irandhir Santos como protagonista.
Outro jovem cineasta pernambucano que despontou recentemente foi Kleber Mendonça Filho, nascido em Recife, em 1968. Formado em jornalismo, tornou-se experiente crítico de cinema, o que o fez ter uma visão bastante controvertida sobre a crítica especializada, refletida em seu primeiro longa metragem, o documentário Crítico (2008). Ele fez alguns curta metragens, como o excelente Recife Frio (2009). As ideias de alguns curtas reaparecem no seu primeiro longa de ficção O Som ao Redor (2013). Retomando a ideia da aldeia que fala de questões universais, o filme faz quase um tratado sociológico do Brasil, a partir de um quarteirão da cidade de Recife. Há um redimensionamento do som do cinema, para ressaltar a insegurança permanente entre dominadores e dominados. O jornal New York Times colocou O Som ao Redor na lista dos 10 melhores filmes de 2013. Em festivais nacionais e internacionais, o filme ganhou mais de 120 prêmios.
Em 2016, o único filme de toda a América Latina selecionado para o exigente Festival de Cannes foi Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, que traz a atriz Sônia Braga como uma crítica musical que se recusa a sair do seu apartamento, enfrentando toda a ganância da especulação imobiliária. Durante a exibição do filme em Cannes, toda a equipe do filme aproveitou a notoriedade internacional para denunciar o golpe de estado que estava acontecendo naquele momento no Brasil, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Por conta desta atitude, Kleber passou a ser perseguido pelo governo brasileiro. Sem se intimidar, realizou outro filme contundente: Bacurau (2019), assinado por Kleber e Juliano Dornelles, uma espécie de faroeste brasileiro que denuncia as desigualdades sociais e mostra a resistência possível. Nas imagens a seguir, Sônia Braga nos dois mais recentes filmes de Kleber: Aquarius e Bacurau.
Kleber Mendonça Filho lança em 2023 novo documentário poético intitulado Retratos Fantasmas, sobre suas memórias do Recife, em especial sobre as salas de cinema da cidade.
Gabriel Mascaro é um pouco mais jovem (também recifense, nascido em 1983) e é considerado um expoente da segunda geração dos diretores pernambucanos. Seu primeiro longa foi o documentário Um Lugar ao Sol (2009). Em 2012, produziu um interessante documentário sobre o trabalho doméstico – Doméstica (2012). Nos seus dois filmes seguintes traz uma tensão muito interessante e delicada sobre as identidades de gênero. Tanto em Ventos de Agosto (2014) como em Boi Neon (2015), coloca homens e mulheres em ocupações incomuns, deixando o espectador intrigado, problematizando sem discurso, o que torna os filmes muito desafiadores. Em seu mais recente filme Divino Amor (2019) mistura religião, política e sexo, em uma ótima ficção futurista.
Renata Pinheiro, nascida em 1970, é a cineasta mulher que mais tem se destacado no primeiro time do cinema pernambucano contemporâneo. Diretora de Arte em muitas produções, assinou a direção de curtas, documentários até lançar seu primeiro longa de ficção: Amor, Plástico e Barulho (2013). Em 2017, conclui seu segundo longa de ficção, codirigido por Sérgio Oliveira, Açúcar. Em 2019, seu mais recente filme Carro Rei, arrebatou muitos prêmios no Festival de Gramado.
A safra de realizadores - diretores, roteiristas, músicos, fotógrafos, atores e atrizes - que surgiu em Pernambuco nas duas últimas décadas merece ser conhecida e estudada. Fica evidente que se trata de uma ambiência cultural que favoreceu essa produção tão criativa. Infelizmente, em função dos problemas da nossa indústria de cinema, especialmente a distribuição e exibição, somado ao preconceito que ainda existe contra o cinema brasileiro, parte desses filmes ainda não é tão conhecida do grande público, especialmente das regiões sul e sudeste.
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