Era uma vez um Recife encantado

 15.09.2023
Por Rianete Lopes Botelho

Ir para Recife significava desfrutar da vida cultural proporcionada por uma cidade grande: frequentar o tradicional restaurante Leite (acho que ele ainda existe, na Praça Joaquim Nabuco), ir ao Mercado São José, ao Páteo de São Pedro, comer caranguejo no Pina, tomar banho de mar em Boa Viagem, andar pelas ladeiras de Olinda, comer tapioca no Alto da Sé, explorar a Livro 7 – livraria na Rua Sete de Setembro – que por várias décadas foi palco da ebulição cultural recifense.


Livro 7 (Foto: divulgação)

No carnaval, de lá saia o bloco “Nóis sofre mas nóis goza” e era para lá que a gente corria para alcançá-lo depois de deixar o “Galo da Madrugada”, na altura da Ponte de Boa Vista. E por falar em ponte (são tantas as do Recife!) é inevitável não lembrar dos rios Capibaribe e Beberibe que, segundo os pernambucanos, “se unem para formar o Oceano Atlântico”. São rios que fazem parte da paisagem, definindo-a, dando-lhe forma. Eles não têm o sentido que os rios alagoanos tinham para mim, ou seja, águas nas quais eu podia mergulhar, como o rio Catolé, o rio Branquinha, o rio Paraíba.


Choça de carnaval (Foto: divulgação)

Mas os rios de Recife tinham imponência - como se soubessem que existiam para dar a estrutura indissociável da paisagem.

Quando terminei o colegial, minha família se mudou para o Recife. Foi lá que eu fiz o curso de Filosofia (UFP). Foi lá que eu me casei e onde tive meus dois primeiros filhos. Foi lá que eu comecei a me interessar pelos problemas sociais e políticos do país e a pretender transformar o mundo tão desigual em um lugar com justiça e dignidade para todos. Já morando em São Paulo (onde nasceram meus dois outros filhos), muitas de nossas férias foram passadas em Recife e Maceió. Falar do carnaval de Recife e Olinda é falar dos tradicionais blocos de rua – democraticamente sem cordões de isolamento – animados aos som dos frevos-de-rua e dos frevos-canção tocados por orquestras anônimas, onde a estrela é o povo. Lembro-me agora de outra tradição democrática pernambucana: a Ciranda. Nessa dança praiana as pessoas se dão as mãos, formando um grande círculo, enquanto cantam e dançam numa cadência que lembra o movimento das ondas do mar. Qualquer pessoa pode entrar ou sair da roda, bastando dar ou soltar a mão de quem está ao seu lado. Dançar Ciranda na praia em noite de lua cheia é algo inesquecível!

Estas e outras lembranças me ocorreram depois que assisti ao belo e nostálgico documentário Retratos fantasmas de Kléber Mendonça Filho (diretor de O som ao redor, Aquários e Bacurau). O filme é uma ode ao Recife de sua juventude que, como toda grande cidade, sofreu mudanças, transferindo a importância dos espaços em pontos centrais para outras áreas com consequente desvalorização e degradação urbana dos primitivos locais. O filme é recheado de fotos e gravações antigas, verdadeiras relíquias que o enriquecem, como a figura do projecionista do cine Trianon, o camelô que vendia o que recolhia do lixo das distribuidoras estrangeiras além das cenas sobre a repressão e a censura durante a ditadura militar.

O documentário começa com recordações da mãe do cineasta, da casa em que morava no bairro de Setúbal e respectivas transformações ao longo de quarenta anos. Foi nessa casa que ele começou suas experiências cinematográficas, inclusive como locação de alguns de seus filmes. Depois, as lembranças foram direcionadas aos antigos cinemas de rua, sobretudo aos do centro da cidade, às margens do Capibaribe: cines Trianon, Art Palácio e Moderno (que já não existem mais) e o cine São Luiz, na margem oposta. Como aconteceu em tantas outras cidades do Brasil, os cinemas de rua se tornaram igrejas neopentecostais ou supermercados ou farmácias. Essa perspectiva me traz à lembrança o ótimo documentário de Renato Brandão, Quando as luzes das marquises se apagam – a história da Cinelândia Paulistana, enfocando os antigos cinemas da capital paulista - imperdível!

Gostei de Retratos fantasmas não apenas pelo que Recife representa para mim, mas também pela sensibilidade do diretor em tratar da memória de sua cidade com tanta delicadeza e competência. O filme é narrado e comentado pelo próprio diretor, informando-nos que muitas das imagens mostradas são gravações antigas, feitas por ele. A propósito, tive a impressão de que Ariano Suassuna aparece entrando e saindo do cine São Luiz. Fiquei em dúvida se era ele de fato (em gravação antiga), se era um sósia ou um fantasma que resolveu aparecer como aquele que está numa fotografia mostrada pelo diretor. Não sei por que me lembrei de que numa das minhas idas ao Recife vi Dom Hélder Câmara numa livraria. Emocionada, fiquei ensaiando o que lhe dizer e ele foi embora antes que eu pudesse abordá-lo. Inspirada pelo filme, talvez eu possa dizer: naquela ocasião, Dom Hélder ficou para mim como um fantasma, posto que perdi a chance de iniciar uma prosa com ele, em carne e osso.

Há três pontos no filme que me chamaram a atenção. O primeiro é que Retratos fantasmas é um trabalho de elaboração do luto das inevitáveis perdas experimentadas pelo cineasta. Acho, ainda, que o filme extrapola a subjetividade do diretor, abrindo espaço para o expectador também se permitir encarar seus próprios lutos. Tratar da casa materna e do fechamento de antigos cinemas vai muito além daqueles espaços físicos, pois envolve o entorno, pessoas, uma época. Acho que a arte – para quem a produz e para quem a desfruta – pode ser uma via de elaboração de nossos lutos. Ela nos ajuda a nos separar da dor das perdas e a encarar a continuidade da vida.

Outro ponto que considero um dos melhores do documentário é o trecho no qual as imagens permanecem no ritmo normal da projeção mas surge um fundo musical em câmera lenta, como se a melodia estivesse chorando, se arrastando em dança... Trata-se de uma versão instrumental de um frevo, cuja letra não pude precisar de imediato. Ainda agora, enquanto escrevo esse texto, minha mente não decidiu se a canção é uma das composições de Antônio Maria ou Evocação - um dos clássicos de Nelson Ferreira - ou ainda outra referência arraigada em minha memória. De qualquer modo, a homenagem aos velhos carnavais recifenses está ali registrada em tom marcadamente nostálgico. É nostalgia dentro da nostalgia do filme. Belíssimo!

O terceiro ponto relevante para mim é o fecho de ouro do filme. Na cena, o diretor está num Uber e o motorista, ao saber que ele trabalha com cinema, lhe conta, com uma expressão marota, que tem o dom de ficar invisível. O silêncio do passageiro é interpretado como permissão e o motorista some, mas o carro começa a andar enquanto o volante faz os movimentos necessários sozinho. Após o susto inicial, o passageiro afivela o cinto de segurança e o carro segue sem o motorista. Tive vontade de bater palmas! Foi a melhor imagem que já vi sobre a magia do cinema. Dar asas à imaginação pode até ser arriscado, mas é preciso estar aberto para embarcar nessa viagem e se deixar levar pela fantasia. Lembrando a frase de Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida não basta”.

Não, não basta. Talvez por isso, o Recife era muito mais que encantado. No meu caso, memória e familiaridade. Percebi que os retratos revelados pelo diretor sobre a cidade contém pedaços da minha história. É uma história dentro da minha – ou o inverso, fico cismando. São retratos dele sobre meus retratos bem à moda de poesia. Refiro-me ao poema Reciprocidade ¹, de Wislawa Szymborska, que, parece-me, conversa intimamente com o filme.

Há catálogos de catálogos.
Há poemas sobre poemas.
Há peças sobre atores representadas por atores.
Cartas em razão de cartas.
Palavras que servem para esclarecer palavras.
Cérebros ocupados em estudar cérebros.
Há tristezas que contagiam como o riso.
Papéis que provêm da coleta de papéis.
Olhares vistos.
Declínios declinados.
Grandes rios com importante contribuição dos pequenos.
Bosques completamente recobertos de bosque.
Máquinas destinadas à produção de máquinas.
Sonhos que de súbito nos despertam do sonho.
Saúde necessária para recobrar a saúde.
Escadas tanto para baixo como para cima.
Óculos para encontrar os óculos.
O inspirar e o expirar da respiração.
E, mesmo que só de vez em quando,
há ódio do ódio.
Porque, em última instância,
há ignorância da ignorância
e mãos empregadas em lavar as mãos.

¹ poema do livro Para o meu coração num domingo. São Paulo: Companhia das Letras. 2020. P. 336.

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