18.09.2023
Por João Moris, de Toronto
Não é à toa que o Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF) é considerado um dos festivais mais badalados do mundo. Há 48 anos, a cidade canadense de Toronto investe de forma maciça e estratégica no festival, que se tornou seu principal evento cultural e uma vitrine importante de lançamento de filmes no mundo, em pé de igualdade com grandes festivais como Cannes, Berlim, Veneza e Sundance, e que atrai milhares de realizadores, produtores, atores e profissionais da indústria de todos os cantos do planeta.
Além da grande estrutura de marketing por trás do evento e de ser muito bem organizado, o TIFF tem um público local e estrangeiro cativo, que durante 11 dias comparece em massa às sessões e ao tapete vermelho das celebridades, para o deleite dos cineastas e do elenco dos filmes selecionados para o festival. As plateias realmente são um capítulo à parte no TIFF. Com as 20 salas reservadas para o evento lotadas (em média 400 a 500 lugares cada sala), raramente vi um público tão ávido e entusiasmado para assistir a um filme como no Festival de Toronto. As pessoas aplaudem durante as vinhetas do festival, no início do filme e no final, mesmo quando o filme é ruim, e grande parte da plateia fica para a discussão com os diretores. Filas intermináveis durante o dia e a noite e as sessões começam rigorosamente no horário.
É certo que muitos jornalistas e críticos de cinema torcem o nariz para o aspecto marcadamente comercial da programação do TIFF. Realmente, muitos filmes têm um forte apelo midiático ou têm cara de “filme de festival”, mas as mais de 700 mil pessoas que passam anualmente por Toronto para participar do TIFF adoram e não parecem estar preocupadas com esse aspecto. E assim, o TIFF continua sendo uma chancela de prestígio que dá visibilidade e longevidade aos filmes em escala global.
Abaixo, alguns filmes marcantes que vi no TIFF 2023:
Pedágio (Brasil/Portugal – diretora: Carolina Markowicz)
A diretora paulista Carolina Markowicz (do excelente e subestimado Carvão, lançado em 2022) nos brinda com um novo filme todo passado em Cubatão, na Baixada Santista. A atriz Maeve Jinkins é Suellen, mãe solteira que trabalha como atendente de pedágio e que, ao desconfiar que seu filho Antonio é gay, inscreve-o num programa evangélico de conversão caríssimo, e não medirá esforços para arranjar dinheiro para pagar o curso. Mesclando temas atuais brasileiros como homofobia, fanatismo religioso, ausência paterna e marginalidade, o filme é um retrato um tanto cru da realidade de pessoas precarizadas buscando ascensão social e dignidade numa sociedade que não as acolhe. Pedágio, juntamente com Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, foram os representantes do Brasil no TIFF deste ano.
O ator Kauan Alvarenga é Antonio em Pedágio (Foto: Divulgação)
Les Indésirables (França – diretor: Ladj Ly)
Uma espécie de continuação do aclamado Os Miseráveis, filme de 2019 do diretor malinês radicado na França, Ladj Ly, um dos jovens realizadores mais promissores da atualidade. Mais uma vez, Ladj Ly lança um olhar contundente e redentor sobre as periferias das grandes cidades francesas, desta vez Estrasburgo, onde imigrantes e refugiados, na sua maioria de pele escura, vivem em favelas verticais à mercê da especulação imobiliária e da polícia racista. Diante da iminência de ter seu precário edifício demolido para dar espaço a um empreendimento, os moradores enfurecidos se unem para impedir que o imóvel seja tomado pelas autoridades. A violência explode, as injustiças abundam, as emoções afloram, o sangue ferve e nada será como antes neste incendiário filme.
Cena do filme Les Indésirables (Foto: Divulgação)
Green Border (Polônia, Chéquia, França, Bélgica – diretora: Agnieszka Holland)
A veterana diretora polonesa Agnieszka Holland mergulha na explosiva fronteira entre a Polônia e a Bielorrússia, uma zona de exclusão e ponto de passagem importante de imigrantes e refugiados vindos do Oriente Médio (sírios, afegãos, curdos, iraquianos etc) rumo à Europa. De forma tensa, o filme escancara o flagelo dessas pessoas que são literalmente jogadas de um país para o outro, sobre as cercas de arame farpado, por soldados do exército polonês e bielorrusso para se livrarem dos imigrantes. A diretora acerta ao retratar essa tragédia de forma não-maniqueísta e humana, colocando a perspectiva de vários atores nesse jogo: dos políticos aos defensores de direitos humanos, da polícia e do exército às equipes médicas e de resgate. E, no centro de tudo, os imigrantes.
Cena do filme Green Border (Foto: Divulgação)
Your Mother’s Son (Filipinas – diretor: Jun Robles Lana)
Um curioso e incisivo filme filipino sobre a relação edipiana entre uma mulher de meia idade e um jovem de 17 anos. A mulher trabalha muito para trazer o sustento a ambos, enquanto o jovem leva uma vida de ócio e prazeres, com a sexualidade à flor da pele. Até que o frágil equilíbrio na relação entre os dois se quebra quando a mulher convida um jovem estudante para morar com eles e um turbilhão de emoções vem à tona. Um filme radical com uma intensa atmosfera sensual, enquadramentos primorosos, que surpreende a cada desdobramento e não deixa pedra sobre pedra.
Memory (México/EUA – diretor: Michel Franco)
Como o título sugere, um filme sobre memória e o quanto ela impacta a vida e a relação das pessoas. Partindo de um argumento simples – uma assistente social de meia idade com uma vida aparentemente estruturada e frequentadora dos Alcóolicos Anônimos conhece um homem da mesma idade que está sofrendo um processo de demência –, o filme mergulha nas profundezas da alma e da mente humana à medida que ambos os personagens passam a lidar com o seu passado. O diretor e roteirista mexicano Michel Franco mostra grande habilidade para penetrar no universo das relações humanas esgarçadas com o tempo. Um filme para lá de sensível, todo pontuado pela lendária música A Whiter Shade of Pale, e que rendeu ao americano Peter Sarsgaard o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza.
I Do Not Come to You by Chance (Nigéria – diretor: Ishaya Bako)
Uma grata surpresa esta comédia nigeriana, cheia de ironias e crítica social, que vai além dos estereótipos dos filmes de ação e violência produzidos por Nollywood (a indústria cinematográfica nigeriana) nos últimos anos. Conta a história de Kingsley, um rapaz esperto e inteligente que quando criança era muito próximo a um tio vigarista, mas ambos se afastam por influência da mãe do rapaz, irmã do tio, que reprovava a relação. Apesar de estar se formando como advogado, Kingsley não consegue arranjar emprego e ainda precisa de dinheiro para ajudar o pai doente. Só resta recorrer ao tio, que hoje é um homem influente e endinheirado e que se autointitula Cash Daddy. O filme é prova que os filmes africanos têm muito a contribuir para o enriquecimento da cinematografia mundial e podem ser uma grande alternativa à mesmice.
Rapito (Itália/França/Alemanha – diretor: Marco Bellocchio)
O lendário diretor italiano Marco Bellocchio está com 83 anos e continua em plena forma abordando temas espinhosos em seus filmes. Rapito conta a história verídica de um garoto judeu de 6 anos que é raptado pela Igreja em 1858 na Bolonha por ordens do papa, sob a alegação que o garoto teria sido batizado cristão secretamente por uma cuidadora. Para desespero dos pais, cria-se todo um protocolo oficial para a Igreja justificar o rapto e a conversão do garoto ao cristianismo. Com fotografia belíssima e austera e cenários e figurinos suntuosos, realçando o poder e hipocrisia das autoridades eclesiásticas, o filme é uma ótima reflexão sobre as atrocidades e aberrações cometidas em nome da fé.
National Anthem (EUA – dir. Luke Gilford)
Uma raridade no cinema é dar destaque a grupos minoritários em ambientes predominantemente masculinos ou machistas. Aqui, o renomado fotógrafo americano Luke Gilford, em sua primeira incursão no cinema, coloca um grupo queer de rodeios no centro da cena. Sem antagonizar com os cowboys héteros, esse grupo LGBTQIA+ rural se mostra coeso, equilibrado e perfeitamente integrado ao universo dos rodeios. E acaba acolhendo um jovem operário de construção, que se apaixona perdidamente por uma garota trans que namora um cowboy gay dono da fazenda onde o grupo vive. Delicado e cheio de nuances, sem a necessidade de levantar bandeiras nem defender causas, o filme celebra de maneira feliz a riqueza da diversidade e das relações humanas com todas as suas cores e dores.
Concrete Utopia (Coreia do Sul – diretor: Um Tae-hwa)
Talvez um dos trunfos do sucesso de filmes sul-coreanos de ficção científica, futuristas ou distópicos é fazer com que as cenas pareçam muito reais e presentes, por mais estapafúrdio que seja o roteiro. Aqui, um terremoto destrói completamente a capital sul-coreana Seul e sobra apenas um edifício em pé. Toda a ação do filme se passa dentro e ao redor do edifício, onde os sobreviventes do desastre passam a se digladiar por espaço, comida, abrigo e, claro, poder, formando um campo fértil para o diretor Um Tae-hwa tecer sua crítica às relações humanas na hipermodernidade. Apesar do tema batido, o filme se beneficia da fotografia e direção de arte impecável e da tensão através dos diálogos.
Inshallah, a Boy (Jordânia/França/Arábia Saudita/Catar/Egito – diretor: Amjad Al Rasheed)
Estreia promissora de um jovem diretor jordaniano no circuito internacional. O filme aborda questões pertinentes à cultura árabe, mais especificamente da Jordânia, e segue a trajetória da jovem Nawal, que juntamente com sua filhinha Nora, enfrentam um verdadeiro pesadelo após a morte súbita do marido de Nawal. Na sociedade jordaniana, a viúva que não tenha um contrato de herança formalizado perde direito aos bens do marido, a não ser que dê à luz a um menino. Com o cunhado ameaçando despejá-la da casa onde mora e tomar a guarda da filha, Nawal recorre a todos os expedientes possíveis para manter a dignidade e a sanidade. Acompanhamos com apreensão o sufoco de Nawal, mas o filme se perde na tentativa de resolver todos os seus problemas como num passe de mágica e fechar todas as pontas abertas.
Para saber mais sobre os filmes do TIFF 2023: https://www.tiff.net/films
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