Napoleão ou o homem burguês em ascensão e queda

 06.12.2023
Por Maurício Orestes Parisi

"This is the end,
My only friend, the end."
Jim Morrison

Ridley Scott estreou no cinema com o ótimo "Os Duelistas". O filme retratava os duelos contínuos de dois oficiais do exército napoleônico. De certa forma, duas concepções de homem e honra se enfrentavam, como se disputassem qual seria o sêmen que fecundada o óvulo revolucionário para gerar o homem burguês (ou não) no útero da sociedade capitalista.

Scott volta ao período histórico da Era das Revoluções para narrar a história não de um ou dois homens burgueses, mas sim do Homem Burguês por excelência, Napoleão Bonaparte. Um oficial de artilharia - que se não fosse a Revolução- teria morrido major ou tenente-coronel, no máximo.

O filme tem sua abertura com a execução - ao som de Ça Ira na versão de Edith Piaf - de uma Maria Antonieta precocemente grisalha (e não era moda), tentando a manter uma soberba aristocrática decepada assim como sua cabeça. E o povo se regozija com o sangue aspergido sobre a multidão. Conservadores de ontem e hoje acham aí o argumento para seu ódio às massas.

Napoleão observa e articula os passos de sua carreira. A meritocracia burguesa aqui se delineia - que não deve ser confundida com a ideologia do selo made man como faz o senso comum da intelectualmente esquálida brasileira. A nova era é um reino de audácia e violência. A boa fortuna acompanha os que se arriscam. Os homens burgueses jogam dados (viciados) e buscam alterar as correlações de força dos tabuleiros de poder. E as batalhas são os tabuleiros de Bonaparte. Lá exerce sua virtú. Toulon é sua ascensão e Waterloo sua queda. O burguês é sempre um player, apostando no futuro e se empoderando na manipulação do espaço e tempo.

O que talvez tenha irritado a muitos, tenha sido a crueza (e rudeza) de como a sociedade burguesa é mostrada. Só que esta é determinante, permanente e contínua do Capital. Ontem e hoje.

O que assistimos no século XXI é a nova explicitação da essência do capitalismo na sua nudez pornográfica. Guerras, epidemias, genocídios, ditaduras, barbárie generalizada etc., esvaindo a volátil fantasia da Paz Perpétua kantiana.

Scott e Phoenix nos trazem um Napoleão arrojado e babaca, visionário e arrogante. Genial e medíocre como a sociedade burguesa da qual foi criador e criatura. Mesquinho como todos que se sentem empoderados pelo empreendedorismo e vulgar como todos que se moldam pelas aparências e consumo. Seria um ótimo influencer...

O filme alterna o Napoleão das batalhas (público) com o da vida afetiva e conjugal (privado). Sua relação passional com Josephine tem mais amor e ódio que sertanejo goiano - Lord e Lady Macbeth do alpinismo social. Um típico casal burguês (cobrança de papéis sociais) ao estilo de "Quem tem medo de Virgínia Wolf". Nada mais atormentantemente burguês que um casal universitário..

Público e privado é a fisiologia da cisão do burguês e cidadão, como assinalou o Mouro em um tempo rebento (e arrebentado) da Era Napoleônica. É o sujeito que até quer ser bom como o milionário de "Luzes da Cidade" de Chaplin. Mas a cotidiana acumulação capitalista o transforma em pulha.

A guerra é a acumulação capitalista a galope ou em esteiras ou drones e todos seremos ceifadas nesta sempiterna acumulação primitiva (originária é melhor) onde o governo ou Estado é apenas o organizador da barbárie em um sentido hobbesiano.

Napoleão foi o primeiro político burguês moderno. Construtor de Estado. Administrador da Reprodução Ampliada do Capital. Um verdadeiro estadista e babaca e carniceiro como todo político burguês (a lista é imensa). Napoleão incomoda porque é o espelho de nossa época de catástrofe, que "jorra sangue por todos os poros". Violência urbe et orbi. E a pior das constatações, citando o Professor Paulo Arantes: para acabar com o canibalismo, precisamos aprender a comer os canibais.

Observação: Josephine de Beauharnais era avó de Maria Amélia de Leuchtenberg, segunda imperatriz do Brasil. Maria Luísa de Habsburgo, segunda esposa de Bonaparte, era irmã de Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil.

Nota sobre o título do artigo: Evoque a ancestralidade dialética de Karl Marx n'A Questão Judaica e de Leandro Konder em As Singularidades do Homem Burguês. Usei capuccino e coxa-creme no ritual.

1 comentários:

Anônimo disse...

Como você bem sabe, Maurício, temos visões ideologicamente diferentes sobre a História. O que não quer dizer que não possamos dialogar e, da minha parte, tento sempre aprender com quem pensa diferente, pois seria muito chato se todos pensassem igual, não é mesmo?
Em minha modesta opinião, a ascensão de Napoleão é um fenômeno complexo demais para ser simplificado apenas como o fortalecimento da burguesia. Desse modo, vejo a questão mais como um capítulo à parte na secular competição entre Estados Nacionais europeus.
Como mais poderia ser explicado que um monarca francês como Luis XVI assinaria o Tratado da Aliança em 1778 com os EUA recém independentes, republicanos e anti-monarquistas?
Na verdade, o que estava em jogo era a preservação do status quo das colônias francesas na América, que geravam um enorme retorno financeiro para a metrópole.
Também deve ser levada em conta que, após a Revolução Francesa de 1789, os demais Estados Nacionais europeus monárquicos atacaram a França, apavorados com a perspectiva de também perderem seus nobres privilégios, e até suas cabeças...
A questão da acumulação do capital só seria realmente relevante quando os frutos da Revolução Industrial consolidaram o poder da Grã Bretanha e, pela primeira vez, houve condições de aceleração do produto interno bruto além de qualquer coisa já vista anteriormente pela humanidade, o que levou estudiosos como Marx a investigar esse fenômeno e sugerir que, no futuro, a revolução do proletariado se daria em uma sociedade industrial como a inglesa ou alemã.
Em resumo, o que se viu no filme, portanto, foi a ascensão de um gênio militar e déspota político possibilitada pela confusão trazida quando o chamado Terror voltou-se contra seus próprios líderes, no âmbito da consolidação do Estado Nacional francês.
A França em 1804 chegou até a ter um Imperador chamado Napoleão, que não era nobre de origem. mas pretendia que sua linhagem continuasse a governar aquele país de forma absolutista.
Infelizmente, nos séculos XX e XXI continuamos a ver líderes que, como Napoleão, apropriaram-se do poder sob falsos pretextos e o exerceram apenas para seu próprio benefício, trazendo enorme sofrimento tanto para seus adversários quanto para seus próprios compatriotas.
Abraço,
Fernando Machado