QUEM É O MONSTRO?

07.05.2024
Por Ana Lúcia Gondim Bastos* 


Hinata Hiiragi e Soya Kurokawa em Monster, de Kore-Eda. (Foto: Divulgação)

Minha volta às salas de cinema em 2024 foi marcada pela pergunta, instaurada pelo primeiro filme assistido, na nova temporada: Quem é o monstro? O primeiro filme a que me refiro é Monster (Kaibutsu, Japão, 2023) do delicado diretor Hirokazu Kore-eda, que inova trazendo um thriler que deixa o espectador, até o último minuto, tentando desvendar enigmas e mudando de ideia acerca de quem suspeitar, ou atribuir responsabilidade pelas mudanças de comportamento que revelam um intenso sofrimento psíquico infligido ao adolescente Minato (Soya Kurokawa), suspostamente vítima de importantes agressões no contexto escolar. Uma mãe solo, Saori (Ando Sakura), busca, desesperadamente, respostas e atitudes num sistema institucional que parece só poder operar, repetida e estereotipadamente, de forma a tornar todas as relações humanas frias e burocráticas, aumentando o desespero e solidão da mãe preocupada e perdida nas possibilidades de cuidados em relação ao sofrimento do filho. Nesse quebra-cabeça enigmático, muitos são os envolvidos e várias são as perspectivas apresentadas no roteiro, assinado por Yuji Sakamoto. Causa confusão e desconforto, no espectador, essa mudança de ângulos (da câmera e da narrativa) e, a certa altura, não se livra mais da pergunta subjacente à trama: Quem é o monstro? Um jovem professor, interpretado por Eita Nagayama? um coleguinha, Yori (Hinata Hiiragi), vítima de bulling criado por um pai alcoolista com quem Minato tem uma relação bastante ambivalente na escola? a misteriosa diretora da escola primária, Hirona (Mitsuki Takahata)? À medida que vamos conhecendo como se conectam à história, e reconhecendo a humanidade de cada um dos envolvidos, a pergunta que não cala vai ganhando complexidade e o nível de dificuldade do caminho para respostas só cresce. Contar mais do que isso seria spoiler desnecessário para a discussão que pretendo aqui. Então, vamos ao próximo filme que de cara já me remeteu à charada proposta por Kore-eda.

Willem Dafoe e Emma Stone atuam em Pobres Criaturas (Foto: Divulgação)

Pobres Criaturas (2024), novo filme do sempre desconcertante diretor Yorgos Lanthimos traz como protagonista Bella Baxter (Emma Stone), cuja vida é fruto de um experimento científico do Dr. Godwin Baxter (interpretado por ninguém menos que Willem Dafoe, o He de Anticristo do Lars Von trier), através do qual implanta o cérebro de um bebê prestes a nascer no corpo de sua mãe que acabara de morrer. Numa referência clara ao Frankstein de Mary Shelley (1818), Lanthimos me lançou novamente nas águas turbulentas das tentativas de responder quem é o monstro, desta vez, sob a forma da pergunta de quem são as pobres criaturas e de quais criadores, nos referimos? Mais uma vez, caminhos de respostas facilitadas e rápidas, não nos são oferecidos. Bella Baxter desafia o mundo na busca de suas descobertas e desafia os homens que apresentam o mundo para ela de forma limitada e circundada por seus preceitos. O filme todo convoca o espectador a um mergulho numa atmosfera cuja ética e a estética vai reposicionando a questão. Bella experimenta seu corpo, seu prazer, fala e se movimenta como se os atravessamentos da cultura não modulassem a escolha das palavras ou gestos. O advogado, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), que a leva para realidade extra muros “protegidos” da mansão do Dr. Baxter, tenta contê-la, dominá-la, usá-la, mas, em meio a essas tentativas, só resta a ele tentar acompanhá-la , buscando passos de dança que deem sentidos considerados apropriados aos salões de baile frequentados pela nata da sociedade europeia ocidental. Contudo, o que vai acontecendo nessa busca que o desnorteia, é exatamente o contrário: as expressões de Bella apenas escancaram toda bizarrice e pateticidade da sociedade organizada sob a égide do patriarcado. Aqui, mais uma vez, se me alongar será para dar spoilers desnecessários. Então, vamos ao último filme desse primeiro bimestre de 2024, que me atirou numa reflexão sobre monstros, criaturas de instituições adoecidas que nos coloca em assustadores labirintos sociais.

O julgamento de Sandra (Sandra Huller) em Anatomia de uma Queda (Foto: Divulgação)

Agora, me refiro ao Anatomia de uma Queda (2024), filme da diretora francesa Justine Triet. Na trama, a escritora alemã de sucesso Sandra (Sandra Huller), seu marido francês, Samuel (Samuel Theis) também escritor, contudo sem o mesmo sucesso, e o filho Daniel (Milo Machado-Granier) adolescente com uma deficiência visual adquirida na infância, moram num chalé isolado, nos Alpes Franceses. Num dia de rara visita de alguém de fora desse contexto familiar, logo após a saída da jornalista que fora entrevistar Sandra em sua casa, Daniel encontra o pai morto, caído na neve. Poderia ter escorregado pela janela do andar superior do chalé, na qual fazia reparos momentos antes da queda, mas, indícios de que a queda poderia não ter sido acidental faz com que Sandra seja investigada como suspeita pela morte do marido. E é então que o show de horror começa: Sandra é estrangeira e mulher, condições suficientes para que passe por todo tipo de constrangimento no tribunal. Uma mulher que ousa ter uma escrita própria e uma vida que não se resume à vida conjugal ou à maternidade. Um filme de tribunal que nos faz pensar a todo momento por qual crime ela está sendo acusada e deve, então, se defender. Nas brigas de casal gravadas e ouvidas publicamente para o julgamento de Sandra, restos e cacos de pobres criaturas ali com suas fraturas expostas. O filho de 11 anos decide querer ouvir tudo, saber o que aconteceu, conhecer a verdade. E a verdade nunca será única e inquestionável. As narrativas, como são entendidas e tratadas, acontecem em contextos de complexidade infinita. Mas, de novo, estamos cara a cara com as instituições que alicerçam nossa organização social se colocando como ordem naturalizada, ditando de quem é a legitimidade da fala, em todas as situações. Semi deuses criadores de monstros que nos assombram e nos quais nos transformamos, num registro inquietante de estranho familiar, como discute Freud em “O Infamiliar”, de 1919 (mais ou menos 100 anos depois do Frankstein de Mary Shelley).

Em múltiplas camadas, de formas e locais distintos, cada um desses filmes nos leva ao encontro de nossas porções monstruosas e de nossas porções de pobres criaturas, num mundo no qual, como no Poema em Linha Reta de Álvaro de Campos: “Todos os meus conhecidos são campeões em tudo” e onde “quem me dera ouvir de alguém uma voz humana”.

*Ana Lúcia Gondim Bastos é psicóloga, com mestrado e doutorado pelo USP, professora de Fundamentos da Psicanálise e sua prática Clínica no Instituto Sedes Sapientiae. O presente texto foi gentilmente cedido por ela para o site do Grupo Cinema Paradiso, extraído de seu blog Tecendo a Trama: https://tecendoatrama.com/author/analuciabastos/

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