SABER E SABOR/ FERVER E FERVOR

 07.05.2024
Por Ronilson de Souza Luiz

A cada filme escolhido, somos brindados com a possibilidade de expandir e ampliar ângulos de interpretação. Em regra, somos convidados à escrita. Há casos, como o filme O sabor da vida, em que somos compelidos a ela por um motivo: temos desejos e paixão à flor dos olhos. Cada singela refeição é o processo de materialização do amor em voz alta. Em Cannes, na temporada do festival de 2023, o filme foi "safra única". O nome do cinema “reserva cultural” tem a ver com este espírito.

Previamente, conhecemos o corpo-êxtase. Somos apresentados ao alimento-arte-êxtases – onde o vinho é alimento intelectual. Há um desvelo interminável em cada acompanhamento, um tipo de mel especial toma/aguça nosso paladar. Preliminares, tal qual conhecemos em outras esferas. No filme, com igual cota de beleza e desvario. Ali, lentamente, a preocupação e a tristeza se infiltram no desconhecido estado de saúde de Eugénie. Uma verdadeira aliteração em c: casal cozinhando com carinhos, condimentos, caráter, carisma, carnes, cadência, carícias, cenoura, cremes, cortejo, coentro, cultura, candelabro, camaradagem, colete, culote, coloridos, corpos, canção, chaminé, claras, cachimbo, castanhas, castelo, conhaque, cozidos, canja, caldos, cortina, concha, capricho, Cannes, culinária, coração.

Ilustrar o prazer sensorial em diálogos com o prazer quase sexual não é tarefa simples. Nas palavras do filme, Mozarts podem despontar a partir dos cinco anos de idade. Gastrônomos requerem, no mínimo, 40 outonos:

“O que fizemos ficou bom, mas parece um esboço ou um rascunho”;
“é arriscado e audacioso”;
“é com cultura e memória que se molda o paladar” - A França sendo França.

A cena conversa com outra em que Dodin não estranha o fato de a menina Pauline não apreciar o prato de tutano.

Junto com os personagens vamos colhendo, fritando, fervendo, triturando, assando e flam bando o que será prazerosamente degustado. Há saberes e culturas nas receitas. Na telona, a troca intelectual intensa na definição dos menus nos remetem à passagem do texto da prosa para a poesia. Ou seja, os cinco sentidos já não dão conta de retratar o que estamos presenciando.

Juliette Binoche e Benoît Magimel foram casados entre 1998 e 2003, o que nos dá licença poética e permite aventar diversas perspectivas para a personagem da filha aprendiz. 1) A real – ligada a filha do casal, portanto, autobiográfica. 2) A sociológica – aquela que será a dona do castelo. 3) A filosófica – que não trilha os caminhos, quase obrigatórios, naquele período, ou seja, a maternidade.

Apressados podem associar o clichê que compara o casamento - a um “jantar que começa pela sobremesa”. Contudo, a sobremesa aqui não passa pela pélvis, não tem pelos. Antes, a sobremesa é a metáfora da boca, do beijo, do gosto, do paladar, da química. Química como ciência – citada no filme ao esclarecer as propriedades das “claras em neves”.


Apressados podem associar o clichê que compara o casamento - a um “jantar que começa pela sobremesa”. Contudo, a sobremesa aqui não passa pela pélvis, não tem pelos. Antes, a sobremesa é a metáfora da boca, do beijo, do gosto, do paladar, da química. Química como ciência – citada no filme ao esclarecer as propriedades das “claras em neves”.

O nome do longa no original traz uma dubiedade que faz todo sentido à história de romance: "The Taste of Things", o sabor das coisas. Algo semelhante acontece com o título original de Freud O mal-estar na cultura (em alemão) posto que de suas traduções ganhamos o clássico O mal-estar na civilização, que expressa com maior exatidão o que registrou o médico.

A pera e o corpo da mulher. A razão auxilia a sensação em intertextualidades silenciosas. Algo parecido ocorre na cena em que ele explica à menina que a comida terá outro sabor se apreciada com talheres. Mas há exceções como a degustação do prato em que o pássaro ortolan é servido, dispensando talheres e suspendendo a etiqueta momentaneamente.

“Eu quase chorei”, diz Pauline ao experimentar um prato de Dodin. Nesta cena, em que a menina parece demonstrar amadurecimento gustativo, nos damos conta do nível de introspecção e alcance da alma diante de um novo sabor. Daí, despontam as indagações: há sabor em todo saber? ou há saber em todo sabor? Ao final, reconhecemos que o tempo traz - do saber e do sabor – sabedoria, da mesma forma que ferver com fervor em algumas circunstâncias da vida transcende a própria vida e já não sabemos mais como tudo começou. O respiro inicial se encontra com o sopro final. Nesse sentido, a gastronomia, na narrativa, equivale a um amor sacro. “Ele é o chef dentro daquela cozinha, mesmo assim fica óbvio que vê a cozinheira como uma igual”.

O Sabor da Vida é um filme para ser sentido. Semelhante ao sexo, é com os movimentos das mãos que as sensações e sentimentos são expressos. “Há uma diferença enorme entre ser uma cozinheira e uma esposa; e entendemos o ponto de vista de Eugénie tanto quanto entendemos o ponto de vista de Dodin.” Nele, a passagem do tempo é demarcada pelas estações do ano. O cuidado com o alimento e com a vida são portas abertas ao coração. E “a felicidade consiste em continuar a desejar aquilo que já possui”, acrescento, com olhos marejados.

Testemunhamos um doce sabor escorrendo pela tela, brindamos a amizade, aquela do amigo que traz a parte, representando o todo. O amigo se realiza ao presenciar o enlutado decifrando os ingredientes e combinações de um prato, digno de quem conhece o nosso âmago, às vezes, como não conhecemos. Eis o verdadeiro amigo.

Por isso e por tudo o mais, muito obrigado, Claudinha, por fazer renascer em nós o desejo de continuar vindo às reuniões, verdadeiros banquetes – como O sabor da vida. Seguimos duplamente condenados – aos prazeres e deleites – trazidos pelos saberes e pelos sabores. Um sabor, experimentado destacadamente, aproximado de outro, que talvez já lhe correspondesse em silêncio, dá ao homem o poder de criar, de surpreender e encantar; é assim que acolhemos cada novo integrante. Particularmente, obrigado, Claudinha, por me lançar em direção ao melhor de mim. Quiçá, possamos escrever a frase no plural.

Para concluir, uma curiosidade aos que chegaram neste século, ao grupo: ...corria à boca pequena, nos anos finais do século passado, a feliz comparação – por semelhança física (especialmente o tom de pele, corte de cabelo e o olhar) – entre a atriz francesa e a descendente de ibéricos que lidera o nosso grupo.

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