INDIELISBOA, DIVERSIDADE E INVENTIVIDADE

 03.06.2024
Por João Moris, de Lisboa



Terminou ontem o Festival IndieLisboa, que este ano comemorou sua 21ª edição trazendo obras em sua maioria fora do radar do cinema comercial. Apesar de não ser um festival de grande porte, com 250 filmes em média, o IndieLisboa é conhecido mundialmente por exibir filmes instigantes e inventivos. E além de ser muito bem organizado, tem uma ótima curadoria. Conta com 6 seções na Mostra Competitiva e 6 seções na Mostra Não Competitiva, incluindo a seção IndieJunior, com uma extensa mostra de filmes infanto-juvenis de todas as partes do mundo, e a curiosa seção Cinema na Piscina, com a exibição de filmes numa piscina pública de Lisboa (isso mesmo, os espectadores assistem ao filme dentro da piscina!). A seção Retrospectiva deste ano prestou homenagem ao cineasta e artista plástico palestino, Kamal Aljafari, exibindo 10 de seus filmes entre longas e curtas.

Abaixo, as resenhas de alguns filmes que vi no IndieLisboa 2024.

No Other Land (Palestina/Noruega – diretores: Basel Adra, Yuval Abraham, Hamdan Ballal e Rachel Szor) 
Este pungente documentário, realizado por um coletivo palestino-israelense, conta a história da destruição pelo exército israelense da aldeia palestina de Masafer Yatta. Situada na fronteira entre Israel e Cisjordânia, essa aldeia ancestral passou a ser ilegalmente tomada pelo exército sob o pretexto que ali seria construído um campo de treinamento militar, quando na verdade a intenção era construir um assentamento de colonos judeus nacionalistas. O filme mostra a resistência e a determinação dos habitantes locais ao impedir a destruição de suas casas sob as câmeras atentas de dois ativistas, o palestino Basel Adra e o israelense pró-Palestina Yuval Abraham, que num período de 4 anos filmaram o aniquilamento paulatino da aldeia com o uso de retroescavadeiras e tratores. Além das cenas chocantes das casas sendo derrubadas com os moradores praticamente vivendo nelas e, quando expulsos, se abrigando em cavernas, o filme conta a história dos dois ativistas que, de lado diferentes da fronteira, se unem para denunciar a política expansionista e de massacre do governo de Benjamin Netanyahu. Esse foi apenas mais um dos vários estopins que culminaram com a invasão do Hamas e o genocídio que se instalou na Faixa de Gaza desde outubro de 2023. No Other Land ganhou o prêmio de melhor documentário do Festival de Berlim deste ano e o prêmio do público nos festivais de Copenhague, Visions du Réel e IndieLisboa.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=7AS6v3hC86Q

O Ouro e o Mundo (Portugal/França – diretor: Ico Costa)
O diretor português Ico Costa é conhecido por seus filmes feitos nas ex-colônias portuguesas africanas, principalmente Moçambique, onde o longa O Ouro e o Mundo foi inteiramente rodado. Oscilando entre o documentário e a ficção, o filme retrata o dia a dia do jovem casal Neusia e Domingos (casados na vida real), que moram numa pequena aldeia moçambicana. Vivendo de bicos e ansiando por uma vida melhor, Domingos decide ir trabalhar nas minas de ouro no norte do país, onde encontra uma situação de trabalho tão precária quanto a que deixou para trás. Começa, então, a jornada de retorno do jovem migrante à sua aldeia onde Neusia, agora grávida, o aguarda ansiosamente. O filme se sai bem ao retratar a complexa relação dos jovens com o trabalho e sua perspectiva de vida e futuro num país economicamente frágil, como é o caso da empobrecida Moçambique. O diretor Ico Costa também é sensível à cultura e aos costumes locais, costurando cuidadosamente as relações familiares e sociais.  Mas, no debate após a exibição do filme durante o IndieLisboa, em que o diretor (branco) apresentou ao público o tímido casal moçambicano de não-atores, a inesgotável questão da representatividade no cinema me veio à cabeça. Há uma condescendência intrínseca por parte de diretores europeus filmando nas ex-colônias africanas? Como seria esse filme sob a ótica de um diretor moçambicano? Faria alguma diferença?  O Ouro e o Mundo ganhou o prêmio de melhor longa-metragem português no IndieLisboa.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=-epL3Su1gcA

Dormir de Olhos Abertos (Brasil/Taiwan/Argentina/Alemanha - diretora: Nele Wohlatz)
Uma curiosa produção internacional filmada no Recife tendo como personagens turistas e imigrantes chineses. A diretora Nele Wohlatz, que dirigiu o filme O Futuro Perfeito (2016), é alemã e morou 12 anos em Buenos Aires. Trabalhando em conjunto com o roteirista argentino Pio Longo, criou esta divertida e melancólica história de estranhamento e invisibilidade numa cultura alheia a dos personagens, que perambulam pelo centro caótico do Recife ou pelas suas praias tentando buscar sentindo naquilo que veem ou vivenciam. O filme é muito bem sacado ao mostrar a percepção que os chineses têm do Brasil, numa inversão aos estereótipos que os brasileiros têm dos chineses. Assim, acham a comida brasileira insossa, a língua portuguesa é esquisita, o carnaval não tem graça, os brasileiros têm um cheiro estranho, não entendem porque a vendedora brasileira de bugigangas dança sem parar em frente à sua barraca. A umas tantas, uma melancia despenca de um prédio de luxo e se espatifa no chão sob olhar atônito dos chineses e centenas de notas de dinheiro caem do céu, vindas do prédio onde um empresário tenta se livrar do fruto da corrupção. Sem apelação e cheio de humor e nuances, Dormir de Olhos Abertos capta muito bem a atmosfera delirante que permeia o cotidiano das grandes cidades brasileiras e que geralmente é naturalizada por nós, brasileiros. Me diverti muito. O filme estreou no Festival de Berlim deste ano e tem Kleber Mendonça Filho como um dos produtores. Não há previsão de estreia no Brasil.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=QbIzeZ9Plhk

In Restless Dreams: The Music of Paul Simon (EUA - diretor: Alex Gibney)
O quê?? Um documentário de 3,5 horas? É uma minissérie? É uma saga? É uma franquia? É nada mais, nada menos do que a épica história do lendário compositor e cantor americano Paul Simon. E que história! Dono de vários hits que embalaram gerações desde os anos 60, uma voz afinadíssima, mente arguta e letras inteligentes, e com um tino apurado para o showbusiness, este inquieto ícone da música pop mundial merecia um filme que fosse à altura de sua extensa e brilhante carreira. E assim, acompanhamos o vibrante documentário com certa nostalgia (para os sêniores!) e certo assombro diante de uma trajetória tão marcante que dura mais de 60 anos. Descobrimos, entre várias coisas, que Paul Simon e Art Garfunkel se conheceram aos 10 anos na escola primária e começaram a cantar juntos e harmonizar as vozes quando adolescentes, gravando seu primeiro álbum em 1957 sob o nome artístico de Tom&Jerry; que o maior hit da dupla, o hoje hino The Sound of Silence, foi inicialmente lançado em 1964 em versão acústica, e só veio a fazer sucesso em 1966, quando a versão que ficou famosa foi remixada sem o conhecimento da dupla; que o duo Simon&Garfunkel teve várias rompimentos e reconciliações entre 1953 e 2010 devido à personalidade intempestiva de ambos e cuja animosidade perdura até hoje; que além de ter gravado o seu álbum The Rhythm of the Saints (1990) com o grupo baiano Olodum,  Paul Simon gravou várias músicas com Milton Nascimento. Sem dúvida, a voz de Simon&Garfunkel juntas é imbatível, uma das mais belas e harmônicas do mundo pop. In Restless Dreams é para assistir com os ouvidos e o coração abertos. A gente nem sente o tempo passar!
   
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=y9QQJPzykuo

Manga d’Terra (Portugal/Suíça – diretor: Basil da Cunha)
A celebração da mulher e da cultura caboverdiana é o mote desta produção suíço-portuguesa. O diretor português Basil da Cunha cresceu no bairro periférico lisboeta da Reboleira, onde se concentra uma grande população imigrante dos países africanos que formam as ex-colônias portuguesas (Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe). Manga d’Terra busca mostrar o cotidiano precário da Reboleira pelos olhos da personagem Rosa (interpretada pela ótima cantora caboverdiana Eliana Rosa), que deixa dois filhos em Cabo Verde, sua terra natal, para tentar a sorte em Lisboa. Trabalha em uma lanchonete, mas seu grande sonho é ser cantora. Apesar do tema batido, a atmosfera musical e colorida do filme o eleva a um outro patamar. O cotidiano de violência da polícia e dos traficantes que assola o bairro é mostrado em pequenas e rápidas cenas. Não parece ter sido intenção do diretor, neste filme, denunciar as dificuldades e a exclusão pelas quais os imigrantes africanos passam na cidade de Lisboa. Assim como no filme O Ouro e o Mundo, creio que a questão da representatividade negra no cinema aqui também se põe. Apesar de o diretor Basil da Cunha ter grande trânsito no bairro de onde veio (hoje é radicado na Suíça) e ter uma extensa obra com filmes sobre as populações africanas vivendo em Lisboa, fico imaginando como seria este filme se fosse dirigido por um(a) imigrante africano(a) residente na Reboleira. Não parece haver um grande intercâmbio entre produtores e diretores portugueses com cineastas de países africanos lusófonos.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=RSop-VBqHuc

A Traveler’s Needs (Yeohaengjaui Pilyo – Coreia do Sul – diretor: Hong Sang-soo)  
Mais um filme de colaboração do prolífico diretor sul-coreano, Hong Sang-soo, com a diva do cinema francês, Isabelle Huppert. Aqui ela faz uma turista francesa (Iris) que, em viagem pela Coreia, decide ficar no país ensinando francês a coreanos de uma forma um tanto excêntrica. Ela faz perguntas em inglês sobre os sentimentos do aluno em relação a alguma coisa e anota os sentimentos à mão em francês numa pequena ficha, que o aluno deverá decorar para a próxima aula. As aulas simples e despojadas são pano de fundo para o diretor explorar as diferenças culturais do mundo ocidental e oriental. Do lado ocidental, há na experiente e enigmática Iris uma curiosidade, uma busca de sentido para a vida no aqui e agora, um anseio por liberdade que talvez ela não tenha encontrado em sua terra natal.  Do lado oriental, parece haver uma busca de futuro, de conexão, de se libertar do peso imposto pelas tradições de sua cultura.  O sutil e o prosaico, e um certo estranhamento, são a marca registrada deste pequeno grande filme, que vai flanando pela superfície epidérmica dos seres humanos até mergulhar fundo nas suas emoções. A Traveler’s Needs ganhou o prêmio de melhor filme do júri do Festival de Berlim deste ano.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=n5_VIHPrxpw

Architecton (Alemanha/França/EUA – diretor:  Victor Kossakovsky)
Um documentário inusitado sobre arquitetura e (des)construção. Com imagens impactantes de rochas gigantescas, montanhas de pedras, ruínas milenares, minas geológicas, condomínios urbanos verticais e edifícios destroçados na Ucrânia, o cultuado documentarista russo Victor Kossakovsky faz um pequeno tratado sobre a impermanência da civilização e como o concreto se tornou parte integrante da nossa vida cotidiana em detrimento de outros materiais. O filme nos traz o dado que o concreto é o produto mais consumido do mundo depois da água. O documentário também tece comentários ácidos do famoso arquiteto italiano Michele de Lucchi sobre a feiura e inutilidade dos edifícios modernos, que são feitos para durar apenas algumas décadas, enquanto as construções de pedras duram séculos. Um filme reflexivo de grande apelo visual e apuro estético que poderia se beneficiar de uma edição mais ágil.   

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=3lP9M-O9kKk

Cidade; Campo (Brasil/Alemanha/França – diretora: Juliana Rojas)
Mais um filme instigante da diretora paulista Juliana Rojas, que também dirigiu Trabalhar Cansa (2011), Sinfonia da Necrópole (2014) e Boas Maneiras (2017). Como sugere o título, Cidade; Campo contrapõe dois lugares, dois momentos, duas histórias sobre migração, memória e fantasmas, temas muito oportunos para um Brasil desmemoriado, de industrialização selvagem, cujas grandes cidades estão inchadas e os campos esvaziados, dominados pela monocultura e pelo agronegócio. No sentido do campo para a cidade, o filme conta a história de Joana, que se muda para São Paulo na casa da irmã na periferia devido ao rompimento da barragem de Mariana, quando perdeu o pai e a casa. E no sentido inverso, da cidade para o campo, o filme conta a história de Flavia, que se muda com a namorada para a casa abandonada do pai da qual se afastara durante a adolescência. A inquietude que caracteriza os filmes da diretora, com o sentimento de vazio e a busca de reconexão dos seus personagens está muito bem colocada no trecho da cidade, na volta ao local de origem, ao mesmo tempo estranho e familiar. Já o corte abrupto para o campo, na relação de Flavia com o seu passado, o filme perde o ritmo e a sutileza pelo excesso de associações metafóricas com a natureza que o engessam. Ainda assim, um filme ao qual não se fica indiferente. Cidade; Campo foi lançado no Festival de Berlim deste ano, onde ganhou o prêmio de melhor diretora da seção Encontros, e ainda não tem estreia prevista no Brasil.
 
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=6UgrCRuxl1w

Greice (Brasil/Portugal – diretor: Leonardo Mouramateus)
Um bem-vindo filme sobre brasileiros em Portugal, número que não para de crescer. Aqui, a história fictícia de Greice, uma cearense que veio a Lisboa cursar Artes na universidade. Além de estudar, Greice trabalha como atendente num quiosque e tem a renda complementada pela sua mãe, que mora em Fortaleza. Greice, interpretada pela excelente atriz Amandyra, tem espírito livre e aventureiro. Conhece um português, o misterioso Afonso, com quem se relaciona. Após um incidente não esclarecido numa festa da universidade na companhia do namorado, Greice viaja ao Brasil para renovar seu visto de residência português. Sem contar à mãe de seu retorno, ela se instala em um hotel de Fortaleza e ali se depara com várias situações e pessoas que irão deixá-la balançada sobre os rumos de sua vida. Apesar do ritmo ágil, o longa do jovem diretor cearense radicado em Lisboa, Leonardo Mouramateus, é problemático. Para dar liga a uma história com várias reviravoltas, o argumento não se sustenta com o roteiro desconjuntado e personagens pouco convincentes. Mesmo assim, o filme parece ter agradado ao público (jovem em sua maioria) que compareceu à estreia do filme no IndieLisboa. Leonardo Mouramateus tem no currículo vários curtas premiados em festivais internacionais e a Cinemateca Francesa recentemente exibiu uma mostra de seus filmes. Greice é seu terceiro longa-metragem e estreia no Brasil em 18 de julho.


Para saber mais sobre o Festival IndieLisboa: https://indielisboa.com/

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