21.06.2024
Por Rianete Lopes Botelho
O filme Dias Perfeitos, de Win Wenders, me trouxe uma sensação de plenitude como acontece quando nossa alma é alimentada pela magia do prazer estético. Mas, estranhamente, também fiquei intrigada sem saber por que e me perguntando como um filme tão belo e comovente pode, ao mesmo tempo, provocar mal-estar. Afinal, ele trata do cotidiano de um homem simples, que se mostra feliz com sua vida rotineira, parecendo não ter indagações metafísicas ou as angústias tão próprias à condição humana. É um filme aparentemente leve e bonito.
Em geral, os filmes sem densidade tendem a subestimar a capacidade imaginativa do espectador, entregando tudo pronto, conduzindo-o pela mão como se o considerasse incapaz de, por si só, compreender, deduzir, questionar, completar aspectos obscuros do roteiro, perceber as ambiguidades e contradições dos personagens (nada contra um bom musical ou uma boa comédia!). Porém, esse tipo de filme, mesmo quando agradável, não nos faz sair do cinema com inquietações como é o caso de Dias Perfeitos: ele me fazia sentir que por baixo daquela suposta leveza nada me havia sido entregue de bandeja. Aliás, não poderia ser de outra forma, considerando a importância de tão ilustre diretor, cujos filmes sempre estimulam nossa reflexão.
Comecei a rememorar o filme. O protagonista Hirayama, vivido pelo ator Kōji Yakusho, é um homem que mora sozinho, vivendo uma rotina quase entediante e trabalha como limpador de banheiros públicos na cidade de Tóquio. É uma atividade, pensei, à qual não se pode atribuir a mínima parcela de glamour. O pouco que ficamos sabendo sobre o passado de Hirayama: provém de uma família abastada, tem uma irmã e uma sobrinha com as quais não mantinha contato há muito tempo. Sobre seus progenitores, há a sugestão de que seu pai fora uma pessoa severa, com quem não tinha uma boa relação e que atualmente está numa casa de repouso. O filme tem poucos diálogos, mas imagens significativas e um ator muito expressivo - no caso, Kōji Yakusho,. A paz e a serenidade apresentadas pelo protagonista sugerem que seu modesto estilo de vida é escolha sua. Ele é um homem cordato, cordial que consegue conviver bem numa sociedade plural.
Cultiva o hábito da leitura, gosta de música, de fotografar e de cuidar de mudas de plantas. Tem sempre um sorriso nos lábios e um olhar atento para as coisas simples e anônimas do seu entorno: ao sair de casa, olha para o céu com um sorriso prazeroso; observa com encantamento as árvores: troca olhares de reconhecimento com um velho morador de rua e com a moça que sempre lancha sozinha num banco do parque que ele frequenta. Em seu percurso, descobre uma pequena muda ao pé de uma grande árvore, e encontra tempo para retirá-la dali e cuidar dela. Parece incoerente que um homem tão sensível possa exercer com tanto esmero um trabalho como o dele.
Nesse ponto da minha rememoração, lembrei que repetidas vezes aparece no filme uma cena de elevados, serpenteando a cidade de Tóquio, por onde passam carros velozes. Fico com a ideia de que o contraste entre a placidez de vida do protagonista e a agitação e a pressa tão características do nosso tempo não é gratuita. Nesse nosso tempo acelerado, as pessoas convivem pouco, quase sempre porque estão à mercê de tantos apelos efêmeros ou inalcançáveis. A pouca convivência presencial favorece que as relações sociais ocorram cada vez mais virtualmente. Por se trata de território inadministrável, sobretudo as posições sobre valores de origem ideológicas e religiosas tornam as pessoas inimigas. Vivemos um tempo de cultivo do individualismo em prejuízo de solidariedade. Nunca as mudanças foram tão rápidas e tão frequentes a ponto de não haver tempo adequado para qualquer assimilação. Estamos sempre querendo alcançar o novo que logo se torna obsoleto. Destruímos o meio ambiente. Alteramos o clima da Terra. Consequentemente, pomos em risco nossa própria sobrevivência. O progresso que conquistamos não nos trouxe mais paz nem mais tempo de lazer. Pelo contrário, tornou o mundo um lugar mais perigoso para seus habitantes humanos e não-humanos, até porque a natureza está cobrando caro pelos danos causados a ela. Desaprendemos a olhar em volta e para o nosso próximo, haja visto o aumento das relações virtuais, sem o olho no olho. O consumo é usado até como remédio contra o estresse e como compensação por nossas frustações, mesmo aquelas necessárias ao nosso crescimento anímico e desenvolvimento psíquico.
Nesse ponto de minhas reflexões percebi que meu pensamento estava imerso nas agruras da vida em contraste com a tranquilidade retratada pelo personagem. Então, eu me dei conta da origem do meu desconforto após ver Dias Perfeitos. Como um filme sobre um homem que parece feliz com a vida simples que escolheu me levou a refletir sobre um mundo desconectado da natureza e ameaçado de colapso? O que me levou a pensar no grau de desumanização a que chegamos por conta de nossa ambição desmedida? Entendi, então, que o diretor usou do artifício de, através do caminho inverso do apresentado, fazer o espectador, por sua própria conta, enxergar não apenas o que é mostrado mas também o seu avesso. Para mim, esse exercício a que fui levada é o maior mérito de Dias Perfeitos. Percebi também que o diretor deixa entrever no filme alguns sinais que nos ajudam nesse processo. Primeiro, ele deu realce a determinadas características de um personagem quase caricato, sem conflitos existenciais aparentes, o que nos induz a questioná-lo. Outro ponto é a cena dos elevados com carros velozes, que aparece várias vezes sem relação direta com o contexto de tranquilidade que a história pretende passar. Para mim, clara referência à pressa de tudo e para tudo num mundo que afasta as pessoas. Outro sinal é o quanto o personagem observa as árvores e o cuidado que tem com as pequenas mudas de plantas – entendi essa parte do filme como um alerta sobre a necessidade de preservação das florestas tão ameaçadas.
Pensar sobre as mazelas do homem contemporâneo não significa dizer que hoje somos piores do que fomos. Na verdade cada um de nós carrega dentro de si duas forças antagônicas (Eros e Tânatos) em conflito. Por isso, somos capazes do melhor e do pior sem que sejamos anjos ou demônios. Historicamente, essa dualidade é conhecida desde os mais remotos registros, atravessando os períodos de guerra, de paz, de massacres e soerguimentos. Construímos e descontruímos, produzimos avanços e retrocessos. Cada época vem com suas contingência próprias. Hoje, pelo alto desenvolvimento científico e tecnológico, pela globalização, as possibilidades tanto de construção quanto de desconstrução disponíveis cresceram de tal forma que estamos ameaçados de autodestruição. Como em todo embate há dois lados, esperamos que as forças de preservação prevaleçam e que a gente reaprenda a olhar em volta de nós.
O filme muda de tom quase no final, quando o personagem conversa com um homem que tem uma doença terminal. Depois de nos fazer refletir sobre a loucura de nosso tempo - que nos faz almejar ser deuses com tantos acenos de poder disponíveis a ponto de esquecermos nossa própria humanidade - é como se o diretor nos chamasse para a nossa limitante realidade: a certeza da morte é o que mais representa a nossa impotência. Quando o homem com doença terminal diz que não teme a morte mas lamenta ir embora sem ter respostas para tantas indagações, o filme está nos lembrando de que há uma diferença entre nossos propósitos (desejos) e a vida real.
É muito bonita a cena em que o protagonista se propõe a ajudar aquele homem a encontrar uma das respostas que ele gostaria de conhecer: trata-se de saber se a cor da sombra fica igual ou mais escura quando duas sombras se sobrepõem. Juntos desenvolvem uma dança lúdica, tentando unir as sombras de seus corpos. Ao não chegarem a uma conclusão, fica claro que a pergunta e a busca de respostas são mais importantes do que a própria resposta.
E o filme caminha para o final com o Hirayama, protagonizando o início de mais um dia igual a todos os outros dias, guiando seu carro enquanto ouve a linda canção Feeling good entoada pela espetacular Nina Simone e, como sempre, sorrindo. Só que em seguida ele chora. E o riso e o choro se intercalam até a última cena. Mas não é só o choro que surge diante de nossos olhos. É também outro personagem, um outro Hirayama que também sofre. Penso que a presença do choro pode significar o luto pela perda da ilusão de poder viver num mundo tão complexo sem dificuldade, sem ser atingido por suas incoerências, como se não fizesse parte dele. Viver é trágico porque não basta desejar. É preciso considerar as contingências da realidade e o desemparo que nos aflige. Somos sonho e desilusão, riso e choro.
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