21.09.2024
Fernando Machado
ATENÇÃO: o artigo contém spoilers
O ator Mads Mikkelsen em esplêndida atuação. Foto: Divulgação.
Alguns filmes nos fazem rir, enquanto outros nos fazem chorar. Muitos nos causam indiferença. Mas poucos nos trazem à mente a frase “cuidado com o que desejas, pois você pode conseguir...” Este é o caso da coprodução dinamarquesa, sueca e alemã de 2023 denominada “O Bastardo”, onde os espectadores e espectadoras assistem, hipnotizados e, algumas vezes horrorizados, a busca incansável de um indivíduo mal nascido por realização e um lugar de destaque na Dinamarca ainda feudal do século XVIII.
A princípio, nada indicaria que o Capitão Ludvig Kahlen (interpretado com maestria por Mads Mikkelsen) aposentado após 25 anos de serviços ao exército alemão e com mais de cinquenta anos de idade, seria um desbravador capaz de estabelecer com sucesso uma colônia em uma terra inóspita e perigosa. Isso é o que os funcionários do rei tentam lhe dizer em 1755 quando, relutantemente, lhe garantem a autorização oficial para o que parece ser uma verdadeira tentativa de suicídio.
E só autorizam após saber que não haverá qualquer custo à Coroa, e que esse “ninguém” poderia lhes ser útil caso o rei viesse a perguntar sobre os esforços de colonização que planejou para aquela parte quase esquecida do país. Em troca, aceitam a solicitação do capitão referente a um título de nobreza e o envio de colonos, no improvável caso desse duvidoso empreendimento ser bem sucedido no futuro.
E assim começa a aventura de se fazer uma colônia agrícola no “Urzal”, uma gigantesca charneca na parte continental da Dinamarca, um lugar infestado de bandidos e tão desolado que, com seus ventos gelados, aridez e solo ruim, seria um terrível pesadelo até mesmo para um grupo de agricultores jovens e experientes.
Mas não para o capitão Kahlen, que diligentemente procura e encontra um local propício para a instalação da sua futura colônia, sem se abater pela paisagem lúgubre, por lobos ferozes e pelas constantes investidas dos salteadores. Nessa incrível empreitada, ele toma a seu serviço um casal de servos foragidos do senhor feudal e magistrado local, o terrível Frederik Schinkel, além de Anmai Mus, uma menina cigana que já o havia furtado algumas vezes e que é considerada por muitos “um mau agouro” devido a sua pele escura e modos exóticos.
Curiosamente, o maior desafio para o capitão Kahlen não será a natureza inclemente ou a geografia precária, mas sim o elemento humano: o senhor feudal e magistrado Schinkel (que, ridiculamente, sempre faz questão de ser chamado “de Schinkel” para parecer mais nobre), ciente da ameaça da nova colônia a “suas” terras e ao seu poder quase ilimitado sobre a população local, fará de tudo para tentar destrui-la.
Primeiro ele oferece ao capitão uma “parceria” que o obrigaria ao reconhecimento formal das terras como sendo do senhor feudal, juntamente a uma participação de 50% na colheita. Após a recusa, (de) Schinkel tenta “compensar” o capitão com uma quantia em dinheiro, desde que “suas” terras sejam reconhecidas como tal. A seguir, tenta de todas as formas privar o seu rival da mão de obra necessária para a colônia. Como essa sempre parece insistir em continuar a existir, o malvado magistrado recorrerá até a impiedosos criminosos para atacá-la.
A cada insucesso, e a cada argumentação do capitão Kahlen de que as terras pertencem ao rei, e não ao senhor feudal, a aposta de (de) Schinkel aumenta. E com ela a violência, que se torna cada vez mais presente, com requintes de crueldade capazes de fazer alguns espectadores do filme cobrirem o rosto com expressão de pavor, e até mesmo saírem da sala de exibição. Tudo aponta para um clímax, e aí nos perguntamos: como num faroeste, haverá o momento do embate final entre os dois personagens?
Uma curiosidade: historicamente, houve um capitão Ludvig Kahlen, que viveu entre 1700 e 1774 na Dinamarca, mas pouco se sabe sobre ele. A película “O Bastardo” (título em português e dinamarquês, sendo o título em inglês denominado “A Terra Prometida”) foi baseada no livro publicado em 2020 chamado “O Capitão e Ann Barbara”, de autoria da dinamarquesa Ida Jessen. O diretor do filme “O Bastardo”, Nikolaj Arcel, também já havia dirigido Mads Mikkelsen no filme “O Amante da Rainha”, de 2012.
O site “Kunst.dk” disponibilizou uma amostra em inglês, de 33 páginas, do livro de Ida Jensen que inspirou o filme, a qual li com atenção. A figura de Ann Barbara foi retratada de modo diferente no filme em relação ao livro, pois na película ela é apresentada como sendo casada e tendo seu marido capturado, torturado e cruelmente assassinado pelo cruel (de) Schinkel, enquanto no livro ela é mostrada como uma mulher supersticiosa que vai trabalhar sozinha na colônia apenas após a chegada da menina cigana, com a qual é obrigada contra a sua vontade a dividir a cama.
Devemos ter em mente a época retratada no filme e no livro, ou seja, um período anterior à Revolução Francesa, em que a origem de uma pessoa representava quase tudo num contexto de pouquíssima mobilidade social. Quem nascia na nobreza ali ficava, enquanto que quem nascia fora da nobreza provavelmente também viveria e morreria assim. E mudanças nessa ordem tradicional não eram nada bem vistas...
Esse aparente início de mudança na ordem das coisas significava uma oportunidade de ouro para o capitão Kahlen mostrar seu valor e mérito ao rei dinamarquês, inovando ao cultivar batatas naquela terra árida e até então infértil. Para (de) Schinkel, em suas próprias palavras, o mundo era governado pelo “caos”.
Olhando por esse ângulo podemos entender (mas não relevar) o assombro, o desprezo e muitas das atitudes de (de) Schinkel, ele mesmo de nobreza recente, que vê como uma verdadeira afronta a sua autoridade que um “ninguém” venha até o seu quintal erigir uma colônia, e ainda por cima com a promessa real de se tornar também um nobre se tiver sucesso.
Outro ponto de interesse é o papel da burocracia governamental, que chega a interpretar os planos do rei de colonização do “Urzal” de acordo com seus próprios interesses, num complexo e intrincado jogo de poder em que as próprias notícias que o rei recebe sobre a administração do seu reino são cuidadosamente filtradas pelas próprias instâncias burocráticas que lhe são subordinadas.
Isso me lembrou as discussões do teórico Max Weber sobre os perigos do excesso de burocracia, em que processos relativamente simples podem, por qualquer motivo, se arrastar por tempo indeterminado, prejudicando severamente a ação governamental pretendida. Se pensarmos no Brasil de hoje, muitas vezes também temos a elaboração de planos e projetos que, na prática, são muitas vezes “sabotados” pelas instâncias burocráticas, o que prejudica sua efetivação, e até suas chances de sucesso...
Também podemos tentar fazer um paralelo entre a tentativa de ocupação daquela terra árida no norte da Europa e o processo de colonização do Brasil naquela mesma época no século XVIII, onde o poder real estava ainda mais distante que na Dinamarca e dependia de (não tão nobres) prepostos, com poder quase absoluto para realizar a expansão pretendida, muitas vezes à custa de muito sangue, ferro e fogo. Seria um exemplo disso a ocupação gradativa das áreas mais distantes do litoral pelas famílias que acabariam originando os famosos “coronéis” do interior do Nordeste?
Voltando ao filme, no fim ao invés de um faroeste, assistimos a elaboradas intrigas para prender o capitão Kahlen e confiscar sua relativamente bem sucedida colônia. Mas não se preocupem, contra todas as expectativas ele será salvo justamente pelas duas mulheres que competem pelo seu amor. E o magistrado e senhor feudal (de) Schinkel receberá seu merecido (ou deveras cruel?) castigo.
Um final feliz? Nem tanto, e isso nos remete à frase que mencionei no início deste artigo: ao ser finalmente agraciado com seu título de nobreza e a promessa de um generoso estipêndio real, o agora Barão Ludvig (agora com o “Von” de nobre) Kahlen percebe que, por motivos diversos, perdeu ao longo dos anos as pessoas que lhe eram mais importantes nessa épica e quase mortal jornada.
Muitas vezes agimos de maneira obcecada em direção a um determinado objetivo, mas quando finalmente o atingimos, será que tomamos o tempo necessário para refletir se este valeu a pena tudo o que perdemos no caminho? O Barão Von Kahlen finalmente descobre que não tem como estar satisfatoriamente ao mesmo tempo nesses dois mundos tão diferentes, o dos plebeus e o dos nobres. E, no final, ele fará uma escolha dramática. Cabe a cada um interpretar se foi a escolha correta...
Fernando T.H.F. Machado é Economista e apreciador da Sétima Arte.
(Agradeço as contribuições e revisões do texto por minha esposa Ana Lúcia e minhas filhas Gabriela e Patrícia)
1 comentários:
Parabéns, texto bem claro e esclarecedor
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