OS FILMES QUE VI NA MOSTRA

 24.10.2024
Por João Moris


No dia 17/10, foi dada a arrancada para a 48ª Mostra de São Paulo. Arrancada é uma palavra que descreve bem o maior festival de cinema do país, pois são mais de 400 filmes em exibição durante 2 semanas. Uma verdadeira maratona para aqueles que se propõem a assistir um grande número de filmes nesse prazo. E há alguns cinéfilos fanáticos que dão conta de assistir a 80, 90, 100 filmes em 15 dias!

Embora não tenha mais a mesma verve e irreverência que a caracterizou nos seus primórdios, a Mostra continua a atrair um público diverso e, diga-se, cada vez mais jovem. Talvez a velha história das filas intermináveis e de sessões lotadas continue a afugentar um certo público, principalmente da geração mais antiga, que parece não estar disposta a sair de casa para dar com a “cara na porta”. Esse é um mito que ainda ronda a Mostra. Consegui, sem problema, encontrar ingressos na bilheteria minutos antes do início da sessão em todos os filmes que assisti.

Apesar de a Mostra ter entrado de vez na era digital, com reservas online e aplicativo eficiente, é um enigma porque não vendem ingressos pela internet para as sessões do dia. No dia das sessões, só é possível adquiri-los nas bilheterias do cinema. São os entraves da Mostra, que imagino acabam espantando parte do público.

Bem, mas vamos aos filmes. Diante do cardápio imenso que a Mostra oferece, selecionei alguns filmes que vi e que acho tem a ver com o perfil do Grupo Cinema Paradiso. Daí, minhas recomendações abaixo. Para verificar se os filmes continuam em cartaz até o término do festival no dia 31/10, basta acessar https://48.mostra.org/filmes e colocar o nome do filme na lupa de busca.

As Crianças Vermelhas (Les Enfants Rouges - Tunísia/França/ Bélgica/Polônia/Arábia Saudita/Catar - diretor: Lotfir Achour)
Este impactante filme, baseado num evento real, conta a história de dois primos (Achraf, 13 anos e Nizar, alguns anos mais velho) vivendo num povoado miserável e pedregoso nos confins da Tunísia. Certo dia, os primos decidem aventurar-se nas montanhas que circundam a planície onde moram e são atacados por terroristas islâmicos que dominam a região. Nizar é morto de forma violenta e inicia-se a longa e traumática jornada de Achraf para informar os seus parentes sobre a tragédia. Os homens da família decidem, então, arriscar-se para recuperar o corpo do jovem e trazê-lo de volta ao lar. Apesar de ser uma produção internacional, o filme é rico em detalhes não estereotipados sobre os costumes, a cultura e os modos de vida daqueles tunisianos, bem como as suas dores e mazelas diante da vida precária que levam, à mercê da violência e esquecidos pelo poder público. Os filmes árabes que vêm principalmente da região do Magreb no norte da África (Argélia, Marrocos, Tunísia, Mauritânia e Líbia) são muitas vezes problemáticos ao retratar a realidade desses países, visto que geralmente são patrocinados pela França ou Bélgica e vários cineastas oriundos desses países se formam em escolas francesas e adquirem um olhar e estilo, digamos, ocidental para agradar plateias ocidentais. Não sinto que seja o caso deste filme, embora tenha uma estética europeia...

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=a9aMwMtF23M

Dormir de Olhos Abertos (Brasil/Taiwan/Argentina/Alemanha - diretora: Nele Wohlatz)
Uma curiosa produção internacional filmada no Recife tendo como personagens turistas e imigrantes chineses. A diretora Nele Wohlatz, que dirigiu o filme O Futuro Perfeito (2016), é alemã e morou 12 anos em Buenos Aires. Trabalhando em conjunto com o roteirista argentino Pio Longo, criou esta divertida e melancólica história de estranhamento e invisibilidade numa cultura alheia a dos personagens, que perambulam pelo centro caótico do Recife ou pelas suas praias tentando buscar sentindo naquilo que veem ou vivenciam. O filme é muito bem sacado ao mostrar a percepção que os chineses têm do Brasil, numa inversão aos estereótipos que os brasileiros têm dos chineses. Assim, acham a comida brasileira insossa, a língua portuguesa é esquisita, o carnaval não tem graça, os brasileiros têm um cheiro estranho, não entendem porque a vendedora brasileira de bugigangas dança sem parar em frente à sua barraca. A umas tantas, uma melancia despenca de um prédio de luxo e se espatifa no chão sob olhar atônito dos chineses e centenas de notas de dinheiro caem do céu, vindas do prédio onde um empresário tenta se livrar do fruto da corrupção. Sem apelação e cheio de humor e nuances, Dormir de Olhos Abertos capta muito bem a atmosfera delirante que permeia o cotidiano das grandes cidades brasileiras e que geralmente é naturalizada por nós, brasileiros. Me diverti muito. O filme estreou no Festival de Berlim deste ano e tem Kleber Mendonça Filho como um dos produtores.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=QbIzeZ9Plhk

Filhos (Vogter - Dinamarca/Suécia/França – diretor: Gustav Möller)
Um típico “filme de festival”, com roteiro e interpretações muito eficientes, e que cai nas graças de um certo tipo de público. Neste caso, é um filme nórdico, passado no inverno e quase inteiramente rodado entre as paredes de uma penitenciária de segurança máxima, o que aumenta a sensação de confinamento e distanciamento dos personagens. Nesse ambiente gélido, há uma mulher, Eva, que trabalha como agente penitenciária. Durona, rígida e controladora, como manda o protocolo das prisões, Eva fica desnorteada com a entrada de um jovem detento, que ela passa a observar voyeuristicamente e seguir persistentemente, não medindo esforços para estar próximo a ele. Mas, quem seria esse jovem que tanto desestabiliza Eva? O filme vai revelando aos poucos a relação entre eles, na medida em que as emoções explodem e um lado de Eva, oculto, amoroso e dolorido, emerge. Com um final surpreendente e uma atuação impecável da atriz dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, Filhos é um filme que entrega o que promete.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=_SHZD_t4foQ

Grand Tour (Portugal/Itália/França/Alemanha/Japão/China – diretor: Miguel Gomes)
Mais um filme visualmente deslumbrante do diretor Miguel Gomes, um dos expoentes do cinema português da atualidade. Como na sua trilogia de filmes As Mil e Uma Noites (2015), que tem como pano de fundo as guerras coloniais portuguesas e os deslocamentos de estrangeiros em terras locais, aqui ele situa a cena na Birmânia de 1917 ocupada pelos britânicos e coloca dois protagonistas em uma curiosa jornada sentimental e geográfica. Um funcionário público inglês (Edward) aguarda a chegada de sua noiva de longa data (Molly) à capital Rangoon para se casarem. Mas, ao chegar, Edward entra em pânico e passa a fugir dela como que não suportando o peso emocional de sua decisão. Eis que Molly decide segui-lo por vários países da Ásia para onde Edward é destacado (Cingapura, Tailândia, Vietnã, Filipinas, Japão e China). O filme, surpreendentemente quase todo falado em português, funciona como um diário de viagem amoroso e contemplativo, sem ser enfadonho, em que ambos os personagens refletem sobre suas escolhas de vida. Com uma apurada fotografia colorida e preto e branco, cada fotograma parece ter sido meticulosamente construído pelo diretor. Não é à toa que Miguel Gomes levou a Palma de Ouro de melhor direção no Festival de Cannes deste ano. Uma curiosidade: o filme tem uma cena espetacular em que a valsa Danúbio Azul toca inteira (10 minutos!) com o movimento das ruas de Saigon ao fundo. Uma homenagem ao Kubrick, talvez?

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=yrw791o5qDE

No Other Land (Palestina/Noruega – diretores: Basel Adra, Yuval Abraham, Hamdan Ballal e Rachel Szor)
Entre os vários filmes palestinos da Mostra deste ano, este pungente documentário é obrigatório. Realizado por um coletivo palestino-israelense, conta a história da destruição pelo exército israelense da aldeia palestina de Masafer Yatta. Situada na fronteira entre Israel e Cisjordânia, essa aldeia ancestral passou a ser ilegalmente tomada pelo exército sob o pretexto que ali seria construído um campo de treinamento militar, quando na verdade a intenção era construir um assentamento de colonos judeus nacionalistas. O filme mostra a resistência e a determinação dos habitantes locais ao impedir a destruição de suas casas sob as câmeras atentas de dois ativistas, o palestino Basel Adra e o israelense pró-Palestina Yuval Abraham, que num período de 4 anos filmaram o aniquilamento paulatino da aldeia com retroescavadeiras e tratores. Além das cenas chocantes das casas sendo derrubadas com os moradores praticamente vivendo nelas e, quando expulsos, se abrigando em cavernas, o filme conta a história dos dois ativistas que, de lado diferentes da fronteira, se unem para denunciar a política expansionista e ocupacionista do governo de Benjamin Netanyahu. Esse foi apenas mais um dos vários estopins que culminaram com a invasão do Hamas e o genocídio que se instalou na Faixa de Gaza desde outubro de 2023. No Other Land ganhou o prêmio de melhor documentário do Festival de Berlim deste ano e o prêmio do público nos festivais de Copenhague, Visions du Réel e IndieLisboa.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=7AS6v3hC86Q

O Caso dos Estrangeiros (The Strangers’ Case – Jordânia – diretor: Brandt Andersen)
Um dos meus filmes favoritos da Mostra deste ano, O Caso dos Estrangeiros conta a saga de refugiados de guerra nos tempos atuais, tema pelo qual sou muito sensível, ainda que filmes sobre esse tema corram o risco de resvalar para o pieguismo, quando não para o maniqueísmo. Aqui, cinco famílias são impactadas pelas guerras no Oriente Médio, começando por Aleppo, Síria, onde uma cirurgiã de um hospital local se vê obrigada a fugir do país com sua filha diante das bombas que caem à sua volta e matam seus pais. A partir daí, o filme mostra a reação em cadeia que uma ação desse tipo produz. O diretor norte-americano Brandt Andersen, um ativista que já trabalhou em campos de refugiados, conduz o filme de forma mostrar o impacto dessa tragédia na vida das pessoas e sabiamente escolhe os agentes dessa cadeia, que dão título a cada parte do filme: a Médica, o Soldado, o Contrabandista, o Poeta e o Capitão. O filme alinhava um mosaico intricado dessas partes, onde ninguém sai incólume diante da devastação e dos danos materiais, psicológicos e sociais. Não há alternativas ou respostas fáceis para as vítimas de uma guerra. O Caso dos Estranhos se junta a dois filmes recentes sobre refugiados que me marcaram: o italiano Eu, Capitão, de Matteo Garrone, e Zona de Exclusão, da polonesa Agnieska Holland.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=UoXz7kt50x8

O Ouro e o Mundo (Portugal/França – diretor: Ico Costa)
O diretor português Ico Costa é conhecido por seus filmes feitos nas ex-colônias portuguesas africanas, principalmente Moçambique, onde o longa O Ouro e o Mundo foi inteiramente rodado. Oscilando entre o documentário e a ficção, o filme retrata o dia a dia do jovem casal Neusia e Domingos (casados na vida real), que moram numa pequena aldeia moçambicana. Vivendo de bicos e ansiando por uma vida melhor, Domingos decide ir trabalhar nas minas de ouro no norte do país, onde encontra uma situação de trabalho tão precária quanto a que deixou para trás. Começa, então, a jornada de retorno do jovem migrante à sua aldeia onde Neusia, agora grávida, o aguarda ansiosamente. O filme se sai bem ao retratar a complexa relação dos jovens com o trabalho e sua perspectiva de vida e futuro num país economicamente frágil, como é o caso da empobrecida Moçambique. O diretor Ico Costa também é sensível à cultura e aos costumes locais, costurando cuidadosamente as relações familiares e sociais. O Ouro e o Mundo ganhou o prêmio de melhor longa-metragem português no IndieLisboa deste ano.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=-epL3Su1gcA

Os Enforcados (Brasil/Portugal – diretor: Fernando Coimbra)
Dirigido e roteirizado pelo talentoso Fernando Coimbra, o mesmo diretor de O Lobo Atrás da Porta (2013), este thriller noir dialoga com Macbeth, de Shakespeare, para retratar o submundo do jogo do bicho e da contravenção entre as classes mais abastadas do Rio de Janeiro. Com um roteiro inteligente e vertiginoso, uma edição ágil com muitos vais e vens, Os Enforcados prende a atenção da plateia do começo ao fim, embalado pela atuação brilhante de Leandra Leal e Irandhir Santos (com uma participação hilária de Irene Ravache). Mas, diante da carnificina e da sujeira moral e ética que emerge do filme, fica a sensação de um vazio, de mais um filme maniqueísta e hollywoodiano que retrata a violência estrutural, social e econômica do Brasil, e em particular do Rio de Janeiro, em que personagens gananciosos e inescrupulosos se veem presos a um looping sem saída, cuja única motivação é matar ou morrer por dinheiro e ascensão social. Assim, o filme sobra em ação e sangue e é pobre em reflexão e pausas. Não é esse o padrão da maioria dos filmes da Netflix e dos canais de streaming?

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=0FAUiuDM6m8

Os Maus Patriotas (The Bad Patriots – Grã-Bretanha – diretor: Victor Fraga)
Um instigante documentário escrito e dirigido por um cineasta/jornalista baiano radicado em Londres, Victor Fraga, que entrevista em inglês impecável dois ícones da esquerda britânica (e mundial!), o veterano cineasta Ken Loach e o ex-líder do Partido Trabalhista britânico Jeremy Corbyn. O ponto de partida do filme é a constatação de como a mídia tradicional britânica (e veículos ditos alternativos...) sempre vilipendiou, sabotou ou boicotou a esquerda e as ideias progressistas em geral, principalmente no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores. Os entrevistados usam vários exemplos de como os meios de comunicação simplesmente ignoram ou censuram filmes, discursos e outras formas de comunicação pública usando narrativas distorcidas. Por exemplo, Jeremy Corbyn foi tachado de antissemita pela mídia por seu apoio incondicional ao povo palestino, sem nunca ter proferido algo contra os judeus. Assim, sua candidatura a primeiro-ministro da Grã-Bretanha foi boicotada pela direita mundial em 2017. Já Ken Loach, pela postura claramente antineoliberal de sua obra, além de ser sempre desqualificado como “comunista”, teve vários filmes ignorados ou menosprezados no país durante a era Margaret Thatcher, o que constituiu uma forma de censura. O diretor Victor Fraga fez o documentário A Fantástica Fábrica de Golpes (2021), sobre a tática manipulativa da mídia brasileira, e um curta metragem com o curioso título O Teste da Farinha (2022).

Assista ao trailer:
www.imdb.com/video/vi3601910041/?playlistId=tt33968248&ref_=tt_pr_ov_vi

Sister Midnight (Índia, Reino Unido, Suécia – diretor: Karan Kandhari)
Um filme que comprova a tendência da Índia de multiplicar os olhares sobre o país através de diferentes linguagens do cinema, afastando-se do estereótipo de Bolywood. Aqui, o diretor indiano radicado na Inglaterra, Karan Kandhari, entrega uma comédia estilosa, mordaz e cheia de referências pop (a começar pelo título do filme, que é o título de uma música do roqueiro Iggy Pop de 1977). O filme conta a história da sagaz e inquieta Uma, oriunda de uma casta inferior, que se vê presa a um casamento arranjado com um amigo de infância que não dá a mínima para ela. Entediada e vivendo num barraco em Mumbai, Uma faz uma hilariante e, de certa forma, macabra jornada de libertação das amarras impostas a ela por uma sociedade excludente, machista e preconceituosa. O humor que permeia o filme vai do pastelão ao humor seco, estilo Aki Kaurismaki, ao humor mais sutil, revelando as mazelas da desigualdade social e de gênero indiana que afloram aos montões. Não é um filme para todos, mas é certamente divertido.

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Qio44H0uE-c

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