25.11.2024
Por Marcelo Ikeda***
A grande repercussão e comoção em torno de Ainda estou aqui nos mostra que voltamos ao Cinema da Retomada*. O Cinema da Retomada desenvolveu estratégias adequadas e funcionais para como o cinema pode responder a uma crise, e como estabelecer instrumentos discursivos para defender a posição social da arte em nossa sociedade.
O novo filme de Walter Salles possui muito em comum com seu clássico Central do Brasil. Ainda estou aqui é um filme que já nasceu clássico, nasceu com esse compromisso e essa responsabilidade de se tornar uma instituição, uma obra de referência dentro do cinema brasileiro. Num mundo hoje cada vez mais fragmentado, é cada vez mais raro surgirem cineastas com esse sentido de missão. Ou seja, no meio do caos político do Brasil dividido e das guerras culturais, é preciso ressurgir o “velho Salles”** para, com toda a sua serenidade, defender a institucionalidade do nosso tecido social e do nosso cinema. Diante da crise, o “velho Salles” reorganiza a instituição-cinema – como talvez Barretão o tenha feito nos anos 1990. E é preciso reconhecer que Salles o faz com grande competência e que Ainda estou aqui é um filme necessário. Salles não busca o holofote para si, quase não aparece, nem precisa mais disso, deixa o próprio filme e o elenco falarem, e atua nos bastidores para que o filme forme musculatura e ganhe asas a partir de uma mídia mundial – o filme é habilíssimo como estratégia de distribuição. (O filme foi realizado sem nenhum centavo de recurso público e ainda dará retorno financeiro a seus investidores. Não há como a extrema-direita atacar o filme, nem “por fora” nem “por dentro”, até porque o pilar da dramaturgia é a defesa da família. Ainda estou aqui poderia ser defendido tanto por uma jovem hippie de esquerda quanto por um liberal teocrático de meia-idade.)
A minha geração (a geração dos “novíssimos”) não teria a competência e a serenidade para fazer um filme como esse. (O mais perto que chegamos disso é o institucionalizado Marte um – por mais incrível que possa parecer, há muito em comum entre Marte um e Ainda estou aqui). Para que as crianças possam brincar à vontade no playground sem serem incomodadas, os adultos precisam continuar a fazer o “trabalho sério”, ou seja, é preciso que nossos patriarcas defendam os nossos pilares de base. Ainda estou aqui revela esse trabalho sólido das nossas mais esclarecidas elites oligárquicas para recuperar o prestígio social do cinema brasileiro, algo que estava em frangalhos nos anos 1980. Essa é no fundo a contribuição do Cinema da Retomada, mesmo com suas contraindicações – um cinema de aderência do local no global de forma domesticada. Mas no mundo anestesiado em que vivemos, defender Ainda estou aqui não é muito diferente de defender o STF diante do caos institucional (Data venia, é preciso fazer a ressalva que Salles é muito mais coerente e consistente que muitos dos nossos ministros). O sucesso de Ainda estou aqui e o fato de se tornar uma referência incontornável é um sintoma do fracasso dos nossos tempos, mas é “o que temos para hoje”. Dizem as boas/más línguas que há motivos para celebrar, antes que seja tarde demais. Pois, apesar de tudo, ainda existimos, não é? “Vamos sorrir para as fotos para a eternidade!”.
Muito se fala da sobriedade da personagem de Fernanda Torres diante da presença da tortura e do mal, e como o filme nunca cai no melodrama estrito ou na espetacularização da barbárie, mas, se observarmos de forma atenta, Ainda estou aqui não é Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos. As diferenças entre os dois filmes mereceriam uma análise à parte, e falam muito não apenas sobre as possibilidades da narrativa clássica para realizar filmes políticos, mas sobretudo sobre as mudanças do Brasil e especialmente do público de cinema entre as décadas de 1980 e 2020 – o cinema hoje se elitizou e se tornou parte de um mercado global.
Ainda estou aqui é muito competente, e comprova à perfeição o projeto do cinema humanista de Salles. É um filme humano, honesto, e extremamente competente. Só acho que o Brasil e o cinema brasileiro poderiam sonhar com mais. Com mais imaginação, mais risco e menos pragmatismo. Nos tempos de hoje, parece que querem nos fazer acreditar que esse “a mais” é algo tolo e ingênuo, que precisamos ser mais “profissionais”. O sucesso de Ainda estou aqui nos revela como o Brasil é um país conservador.
* ver meu livro "Revisão crítica do cinema da retomada".
** uso a expressão com uma referência à expressão usada pelo professor Dênis de Moares em sua maravilhosa biografia de Graciliano Ramos, o “velho Graça”. “Velho” aqui é utilizado como símbolo de clássico, como algo que perdura como perene e atravessa os tempos, e que se afasta dos meros modismos de ocasião, o que é portanto oposto a qualquer resquício de etarismo. Precisar fazer essa nota de rodapé revela o fracasso da comunicação nos dias de hoje.
*** Marcelo Ikeda nos cedeu gentilmente seu texto para publicação no site do Grupo Cinema Paradiso.
Marcelo Ikeda é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com bolsa-sanduíche na Universidade de Reading (Inglaterra), e professor de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Atua também como cineasta, crítico e curador. Mantém os sites www.cinecasulofilia.com e www.marceloikeda.com. Também pode ser seguido no Instagram: @marcelo.ikeda
Autor de diversos livros sobre o cinema contemporâneo brasileiro, entre os quais:
- Das Garagens Para o Mundo: Como uma Jovem Geração de Artistas Independentes Transformou o Cinema Brasileiro dos Anos 2000 (Editora Sulina, 2024)
- Revisão crítica do cinema da retomada (2022)
- Utopia da autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas da Ancine (2021)
- O cinema independente brasileiro contemporâneo em 50 filmes (2020)
- Fissuras e fronteiras: o Coletivo Alumbramento e o cinema contemporâneo brasileiro (2019)
- Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos políticos e econômicos (2015)
- Cinema de garagem (com Dellani Lima, em 2011).
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