Algumas notas sobre o filme Babygirl

22.01.2025
Por Fernando Machado *

Nicole Kidman em cena de Babygirl. Foto: Divulgação

ATENÇÃO: Este artigo contém spoiler. É possível que alguém consiga esconder desejos inconfessáveis por anos e anos a fio, mesmo de quem convive intimamente? E o que acontece quando esses desejos proibidos vêm à tona e ameaçam romper o aparentemente sólido equilíbrio alcançado pelo casal? É o que vemos no filme Babygirl, dirigido pela holandesa Halina Reijn.

Outras produções também trataram da questão do adultério feminino, a exemplo dos filmes “A mulher infiel” (de 1969, dirigido por Claude Chabrol), e “Infidelidade” (de 2002, dirigido por Adrian Lyne).

No universo BDSM a palavra “babygirl” pode indicar um termo carinhoso para se referir a uma mulher submissa. E, apesar das aparências, nossa personagem principal Romy (Nicole Kidman), uma rica e poderosa CEO de uma empresa do ramo de automação de armazéns, tem fortes desejos ocultos de submissão, que tem conseguido esconder de seu próprio marido Jacob (interpretado por Antonio Banderas) durante os dezenove anos de um casamento aparentemente sólido e feliz, que gerou duas filhas.

Babygirl segue a linha de produções como “Cinquenta tons de cinza” (de 2015, dirigido por Sam Taylor-Johnson). A temática BDSM envolvendo personagens femininas submissas também esteve presente no cinema nas películas “A professora de piano” (de 2001, dirigido por Michael Haneke) e “A Secretária” (de 2002, dirigido por Steven Shainberg).

Há um terceiro filme belga sobre essa temática chamado “Juiz S & M” (de 2009, dirigido por Erik Lamens), que é bastante controverso por suas cenas fortes e que foi baseado em um caso real ocorrido em 1997 na Bélgica, em que a esposa de um conceituado juiz lhe pediu, de livre e espontânea vontade, que a dominasse de forma cada vez mais brutal.

Também há uma série sueca com 16 episódios chamada “Amor e Anarquia” (de 2020, dirigida por Lisa Langseth e Emma Bucht), que pode ter influenciado fortemente a diretora Halina Reijn: a protagonista Sofia (a belíssima Ida Engvoll) também se torna CEO da companhia em que trabalha e tem dois filhos (a menina se chama Isabel, como a filha de Romy em Babygirl). Como Romy, Sofia é infeliz sexualmente e acaba por trair seu marido (que na série é um bem sucedido diretor de comerciais, enquanto o marido de Romy é um famoso diretor de teatro) com um subordinado bem mais jovem. Há até uma festa de aniversário de sua filha. A diferença é que, na série sueca, Sofia tem com seu jovem subordinado uma complexa (e muitas vezes divertida) relação de dominação e submissão mútua, dentro e fora do ambiente de trabalho.

Em Babygirl, a insatisfatória vida sexual de Romy muda para sempre quando, próximo à entrada do prédio de sua empresa em Manhatan, ela vê o ataque de um cão feroz ser contido sem violência por um jovem desconhecido (Harris Dickinson, no papel de Samuel), que facilmente domina o animal e, gentilmente. o devolve a sua dona. E, como você já viu isso antes, eles logo vão se reencontrar na empresa, agora nos papéis de trainee e CEO, subordinado e chefe suprema. Mas, na prática, essa relação será muito mais complicada do que parecia à primeira vista...

O que começa como um singelo programa de mentoria profissional logo se torna um jogo de dominação e submissão, que inverte os papéis corporativos e lança o novo casal em um verdadeiro redemoinho de luxúria e prazer através da prática de rituais de dominação e submissão (e até de humilhação, como a cena em que Romy tem que lamber um pires de leite no chão), que se for descoberto poderá resultar em graves consequências, principalmente para a vida pessoal e profissional da até então toda poderosa e inacessível CEO.

Não há grande discussão sobre o que leva Romy a submeter-se ao seu jovem subalterno – ela apenas comenta rapidamente que cresceu em meio a “cultos”. Eu acho que, quando ela viu a dominação do cão feroz na rua, instintivamente isso despertou nela a vontade de ser dominada, tal qual aquele animal.

Uma curiosidade: no filme, Jacob (o marido de Romy) está dirigindo a peça “Hedda Gabler”, do norueguês Henrik Ibsen, publicada em 1890, e que trata justamente de uma mulher infeliz no casamento que recorre ao suicídio para escapar de sua trágica realidade. A diretora de Babygirl, Halina Reijn, também é atriz e foi a personagem principal nas montagens de teatro europeias de Hedda Gabbler entre 2006 e 2012.

Outro ponto a favor do filme é a atuação de Nicole Kidman, que se entrega ao papel e não tem medo de se submeter ao crivo dos espectadores e espectadoras. Que dizer, então, das músicas icônicas dos anos 80 que são tocadas no filme, como “Never tear us apart”, do INXS, e “Father figure”, de George Michael?

O filme Babygirl nos traz questionamentos sobre quais são os limites saudáveis entre a vida privada e a profissional (Romy está com seu celular por toda a parte - até na cama; e seu amante dominador acaba tendo acesso a sua própria casa e a sua família...).

Também podem ser discutidas as dificuldades de comunicação entre casais - Jacob se sente “um vilão” em relação à proposta de sua esposa Romy ter a cabeça dela coberta durante o sexo, e se recusa veementemente a conversar ou a tentar entender minimamente as fantasias e necessidades sexuais de sua parceira. Romy, por outro lado, finge ter orgasmos quando faz sexo com seu marido, e depois escapa para ter prazer real assistindo a cenas de dominação e submissão em seu celular...

A propósito, como um diretor de teatro como Jacob não percebeu que sua esposa estava “atuando” quando faziam sexo? E como ele, tão acostumado a cenas teatrais, não concordava em “atuar” para satisfazer sua esposa? Nesse ponto, acho pouco crível o personagem.

Por fim, pode ser levantada a questão dos perigos e oportunidades que rondam o relacionamento entre superiores e subordinados nas organizações – nesse quesito, entendo que a diretora preferiu uma aposta segura em ter uma mulher mais velha no comando tendo um caso com um subordinado mais novo, pois se fosse um homem mais velho no comando tendo um relacionamento sexual com uma mulher mais nova (e ainda por cima sua subalterna na empresa), com certeza as críticas relativas ao filme não teriam sido tão complacentes nesses tempos de “Me Too”...

Infelizmente, temos mais um típico final hollywoodiano, em que tudo se arruma quase magicamente para uma conveniente “solução feliz”: o amante dominador de Romy sai da empresa e do país, ela volta a ser a poderosa e influente CEO de sempre e, pasmem, até tem seu caso extraconjugal perdoado e seu devotado marido de volta (mesmo após ele ter ouvido dela que ele nunca havia conseguido lhe dar um único orgasmo).

E esse marido agora se apresenta com muito maior interesse em atender as suas necessidades sexuais diferenciadas. No fim, temos um filme com uma temática que poderia ter tido uma discussão bem mais interessante e abrangente sobre as ligações entre o universo peculiar que é o BDSM e as relações de poder profissionais e privadas, porém foi bastante superficial, o que decerto não o tornará uma película memorável.

Fernando Machado fotografado por Ana Lúcia, na Galeria do Rock

* Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.

Agradeço também às observações atentas, dicas e correções da minha esposa Ana Lúcia, sem as quais o presente texto não teria sido possível.

3 comentários:

Oziris disse...

Muito bom o artigo. Gostei das referências . Vou pesquisar.

Anônimo disse...

Também gostei muito do artigo, Fernando. Parabéns!!!

Anônimo disse...

Parabéns Fernando pelas citações de filmes anteriores sobre o tema