Algumas notas sobre o filme CONCLAVE

 06.02.2025
Fernando Machado

Ralph Fiennes e Stanley Tucci em CONCLAVE, de Edward Berger (Foto: Divulgação)

Observação: este artigo contém spoilers.

Confesso que tive dúvidas quando me falaram que seria interessante ver um filme sobre um grupo de idosos católicos elegendo um deles para um cargo de extremo destaque. Resolvi conferir e, para minha surpresa, tive uma experiência cinematográfica memorável.

A palavra “conclave” pode ser traduzida como um lugar que pode ser fechado por chave (vem do Latim “cum clavis” – “fechado à chave”) e tem sido associada ao processo de sucessão papal desde 1274.

Para entender o quão importante é esse elaborado processo, feito de forma extremamente ritualística e secreta, deve-se lembrar que o Papa, além de ser o interlocutor entre o catolicismo e outras crenças, é responsável por orientar a ação de mais de 400 mil padres e influenciar a fé de mais de 1,3 bilhões de católicos no mundo (cerca de uma em cada 6 pessoas que habitam nosso planeta).

Já vimos no Cinema e na TV outros Papas, a exemplo de Antony Quinn (“As Sandálias do Pescador” - 1968), Christopher Reeve (“Monsenhor” – 1982), John Voight (na minissérie “Papa João Paulo II” – 2005), até Scott Mechlowicz (na impagável comédia Eurotrip – Passaporte para a Confusão – 2004) e Jude Law (nas minisséries “O Jovem Papa” – 2016; e “O Novo Papa” – 2020). Também devem ser destacados os atores Jonathan Pryce e Antony Hopkins no filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (“Os Dois Papas” – 2019).

Também já vimos a discussão de temas problemáticos como a pedofilia no seio da Igreja Católica no filme “Spotlight - Segredos Revelados” (2015). Mas ainda não havíamos visto nada como “Conclave”.

Nosso filme é uma coprodução anglo-americana dirigida pelo alemão Edward Berger e baseado no livro homônimo de 2016 escrito por Robert Harris. Passa-se nos dias atuais, logo após a morte súbita de um papa (cujo nome não é revelado) considerado progressista.

O decano cardeal inglês Thomas Lawrence (Ralph Fiennes) assume a nada invejável posição de conduzir o Conclave que elegerá o novo Papa. Lawrence é considerado competente e é respeitado pelos demais cardeais, mas, no íntimo, está passando por uma enorme crise de fé na religião (e na própria Igreja), tendo inclusive solicitado ao falecido papa, sem sucesso, a sua saída do cargo de decano e da cidade de Roma.

Não é à toa, portanto, que o primeiro nome deste cardeal (Thomas) esteja associado ao apóstolo São Tomé, aquele que teve dúvidas sobre a ressureição de Cristo, querendo “ver para crer” o que os outros apóstolos lhe haviam afirmado. Em um sermão aos demais cardeais durante o isolamento obrigatório que envolve o processo eleitoral do novo papa, o cardeal Lawrence inclusive prega a necessidade de também haver dúvidas ao invés de apenas certezas, pois se houvesse a certeza absoluta não haveria mistério e, sem mistério, não haveria necessidade de se ter fé.

A película é magistral no registro das pequenas formalidades associadas ao processo de sucessão papal: a retirada e destruição do anel do pontífice morto, o embalamento e a saída do seu corpo dos seus aposentos (que logo em seguida são selados), a forma de como cada voto é lançado na urna (e a oração que acompanha esse ato), a fumaça preta indicando que a votação não atingiu os 2/3 dos votos exigidos para a eleição do novo papa e, finalmente, a fumaça branca indicando que este foi finalmente eleito.

Também é digno de aplauso o cuidado em mostrar as elaboradas e suntuosas vestes dos cardeais (há uma cena belíssima em que os cardeais estão passando com guarda-chuvas, como se estivessem em uma dança coreografada), bem como a reconstrução fidedigna, nos estúdios da Cinecittà italiana, do apartamento papal e dos dois locais onde os cardeais isolados do resto do mundo são obrigados a permanecer durante o Conclave: a Capela Sistina (onde ocorrem as votações) e a Casa Santa Marta (onde os cardeais fazem suas refeições e dormem).

A "coreografia" dos guarda-chuvas no filme CONCLAVE (Foto Divulgação)

O que dizer, então, da profusão de línguas faladas pelos cardeais, e da facilidade com que se passava do inglês para o italiano (ou latim), e vice-versa?

Um grande mérito do filme é nos revelar, através dos olhos do Cardeal Lawrence, os bastidores desse processo tão arcaico e secreto, com cenas que beiram o humor, como os cardeais usando seus celulares antes de entrarem no isolamento e as suas bitucas de cigarro espalhadas pelo chão após terem entrado na Casa Santa Marta. Uma cena que me chamou a atenção foi a pose, semelhante à de Jesus Cristo crucificado, que um cardeal fez durante a revista com detetor de metais antes de entrar no isolamento.

Quem está de fora dos Conclaves do Vaticano pode até imaginar que os participantes de tão importante eleição sejam modestos, puros de coração e focados em reconhecer e apoiar quem será o mais capaz de representar a fé católica para promover o bem comum.

Ledo engano: o que nos é mostrado no filme é a vaidade humana extrema e a luta pelo poder sem concessões à moralidade, coisas que estamos cansados de ver na política e nas diretorias das grandes organizações – será coincidência que “Conclave” tenha estreado nos EUA justamente na etapa final da última campanha presidencial?

No filme, a chegada inesperada do até então desconhecido cardeal mexicano Benítez (Carlos Diehz) agita o ambiente, e é revelado que ele foi nomeado secretamente Cardeal de Cabul (no Afeganistão, um local onde praticamente não há cristãos) pelo finado Papa após ter servido em diversos locais em guerra.

Lawrence, que deveria apenas conduzir o ritual do Conclave como um administrador eficiente, logo se vê forçado a quebrar as regras (e até invadir o apartamento papal) em razão de suspeitas que lhe são comunicadas sobre o último compromisso oficial do finado Papa com o Cardeal Tremblay (teria sido este de alguma forma responsável pela súbita morte do pontífice, que supostamente havia lhe destituído do poder naquele encontro fatídico e morrido de ataque cardíaco horas depois?).

A partir da primeira votação vários candidatos se destacam: o americano liberal Bellini (Stanley Tucci), o italiano ultraconservador Tedesco (Sergio Castellitto), o canadense pouco confiável Tremblay (John Lithgow) e o nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati). Lawrence inicialmente apoia Bellini (e até se surpreende ao receber alguns votos).

O suposto isolamento dos cardeais não é completo, tendo em vista que há ataques terroristas que chegam até a Capela Sistina durante uma das votações. “É uma guerra”, diz o Cardeal Bellini. O Cardeal Tedesco defende a volta ao passado, às missas em Latim, e até encoraja uma ação mais drástica contra os muçulmanos. Nisso, o cardeal Benítez interrompe a discussão e, com sua fala enfática e diplomática, alerta os cardeais para a realidade terrível das guerras, da destruição e do sofrimento que elas provocam, e que estes desconhecem.

Como em um filme de suspense policial, no melhor estilo de Agatha Christie, vemos cada um dos candidatos mais fortes terem revelados segredos inconfessáveis que lhes impedirão de conseguir vencer a eleição, num verdadeiro jogo de detetive em que os espectadores e espectadoras são levados por diversos caminhos e, quando imaginam terem adivinhado o que virá depois, são surpreendidos por uma reviravolta. A diferença em relação aos suspenses policiais é que, no filme são as reputações, e não as pessoas, que são mortalmente feridas...

Cabe uma menção especial à personagem da Irmã Agnes (Isabella Rossellini), a administradora severa da Casa Santa Marta, que sabe muito mais do que aparenta, e que tem uma chance de ouro de conseguir se expressar nesse mundo eminentemente masculino, saindo de sua relativa invisibilidade para apresentar a prova definitiva contra um dos fortes candidatos ao papado.

E, no final, temos a derradeira reviravolta que ninguém poderia prever? Ou esse espetacular desfecho teria tido a influência indireta do finado Papa, que não confiava em ninguém e, nas palavras do Cardeal Bellini, “estava sempre 8 movimentos à frente no jogo de xadrez?”. De qualquer forma, o Cardeal Thomas Lawrence vai ter uma nova chance para avaliar suas próprias convicções, suas dúvidas (e sua própria fé), antes de finalmente decidir seu curso de ação, o qual poderá ter drásticas consequências sobre a vida de todos os católicos e católicas ao redor do mundo.

Além das questões óbvias sobre os jogos de poder, a vaidade e a ambição humanas, o filme nos traz possibilidades de discussões muito interessantes sobre o papel da Igreja Católica no mundo contemporâneo: haverá uma tentativa de volta ao passado ou a transição para um futuro mais inclusivo, sobretudo para as mulheres? É reveladora a prece do Cardeal Benítez agradecendo as mulheres que estão servindo à Igreja no Conclave, preparando as refeições, limpando os dormitórios, e que são praticamente ignoradas pelos demais cardeais presentes.

Também há possibilidades interessantes na discussão das influências das diferentes estruturas de poder presentes na administração da Igreja Católica, e até sobre qual é a real representatividade geográfica dos cardeais eleitores em relação à população católica sob sua tutela.

Tive interesse em saber mais sobre os Cardeais que estão aptos a votar em um Conclave em 2025 e descobri que os que têm mais de 80 anos de idade não podem ser eleitores. De acordo com o site do Vaticano, atualmente existem 252 cardeais no mundo, dos quais apenas 138 (54,8%) são eleitores papais em potencial.

Como estão distribuídos os fiéis católicos pelo mundo? As proporções de cardeais que podem eleger um futuro papa são parecidas com a dos católicos em cada continente? A resposta exata a esta pergunta está num documento oficial do Vaticano chamado “Pontifical Yearbook” (Anuário Pontíficio, em tradução livre), que traz estatísticas detalhadas sobre a distribuição espacial de todo o mundo católico. Infelizmente, o documento só está disponível em papel e custa caro: 74,10 euros (cerca de 444 reais em 06/02/2025) mais taxa de entrega transatlântica...

Deste modo, para tentar aplacar minha insaciável curiosidade procurei na internet e, finalmente, encontrei uma representação da porcentagem de católicos por continente a partir de comentários do “Pontifical Yearbook” de 2019 no site do Vaticano, que considero uma boa aproximação da realidade.

Descobri, por exemplo, que a Europa tem 21,8% dos católicos do mundo, mas conta com 39,1% dos eleitores papais potenciais. As Américas (Norte, Central e do Sul) combinadas têm 48,5% dos católicos do planeta, mas apenas 27,5% dos eleitores papais potenciais (o Brasil tem 7 cardeais com direito a voto). Na África, temos 17.8% dos católicos do mundo e apenas 13% dos eleitores. A Ásia está mais equilibrada (11,1% e 11,4%, respectivamente), enquanto na Oceania temos apenas 0,8% da população católica mundial, em contraste com 2,9% dos cardeais eleitores papais potenciais.

A proporcionalidade dos votos dos cardeais em relação à população católica que representam é apenas mais uma questão, dentre tantas outras, que não vejo ser discutida a fundo, mas aparenta ser crucial para que se possa entender os possíveis rumos da Igreja Católica no século XXI. Alguma dúvida?

Cúpula do Vaticano vista de dentro. Foto de Fernando Machado.

Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.

Agradeço também às observações atentas, dicas e correções da minha esposa Ana Lúcia e das minhas filhas Gabriela e Patrícia, sem as quais elaborar o presente texto não teria sido possível.

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bem contextualizado , explica todos os detalhes das eleições e seus meandros, que acabam se imiscuindo com os sentimentos ambiguos quais sejam, , inveja, ciume, vaidade, ambição...Trata a corrupção da igreja de forma generica , sem acusações pessoais , carrega a mensagem de renovação, contra o conservadorismo obsoleto do clero