A Mostra de Cinema de Tiradentes acontece todos os anos em janeiro na bela cidade mineira. É um dos grandes festivais do país, cuja marca registrada são filmes brasileiros independentes, disruptivos, de baixo orçamento, com uma pegada mais radical ou experimental. Este ano o festival comemorou sua 28ª edição, com uma programação de filmes sempre eclética e instigante. Para aqueles que se mostram abertos a novas experiências cinematográficas, com diferentes narrativas, linguagens e estéticas, a Mostra de Tiradentes é um prato cheio.
Há 13 anos, o festival passou a exibir seus principais filmes em São Paulo, em parceria com o CineSesc, a chamada Mostra Tiradentes SP. A edição paulistana deste ano contou com 14 longas e 13 curtas em 17 sessões durante uma semana. A exibição dos longas metragens foi seguida de debates com os diretores e elenco, estimulando ainda mais a reflexão e a fruição dos filmes.
O grande mérito da Mostra Tiradentes é oferecer um cardápio de filmes fora da caixa e diferente de tudo que você já viu em termos de cinema brasileiro. O festival é um dos poucos no Brasil que realmente é uma vitrine da diversidade de filmes sendo realizados nos quatro cantos do país. Convida os espectadores a lançar um outro olhar sobre a experiência de ver filmes e, para isso, há de se ajustar ou trocar as lentes, e se dispor a desafiar os pressupostos para vencer as resistências.
Muitas pessoas e críticos torcem o nariz para o festival de Tiradentes, pois, sim, ali há muitos filmes considerados “chatos”, “herméticos”, “apelativos” ou “difíceis”, outros mais comerciais e de narrativa mais tradicional, mas pode-se dizer que quase ninguém sai indiferente da aventura de ver um filme exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes.
Abaixo, as resenhas de alguns longas metragens que vi na 13ª Mostra Tiradentes SP entre 13 e 19 de março.
Kickflip (Direção: Lucca Filippin)
Esqueça Ainda Estou Aqui ou Marte Um, este filme, dirigido por um jovem paulista da geração z de 23 anos, desafia conceitos estéticos, a própria linguagem do cinema e nossa percepção sobre gêneros de filme. O enredo (se é que podemos chamar assim) trata de dois jovens amigos skatistas que passam o dia em frente a uma câmera de celular, ora filmando manobras desajeitadas de skate em um grande estacionamento vazio, ora apostando quem põe mais bolinha de marshmallow na boca de uma só vez, ora ouvindo música, ora jogando, ora batendo papo, ora “filosofando”, ora falando para a câmera, ora não fazendo nada... mas, há algo por trás da fragmentação das imagens mostrando o dia a dia e as despretensiosas traquinagens desses adolescentes, que é difícil de enquadrar e que pode escapar aos olhos do espectador mais desatento. Para mim, o filme traz toda a poética de uma geração que nos foge à compreensão, num mundo hipermoderno, virtual e mediado cada vez mais pelas redes sociais, expondo uma certa precariedade das relações, uma certa melancolia, um certo fracasso, mas também a busca – sempre humana e urgente – por encontro, conexão e convívio.
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=uGw9OoF1-AI
Um Minuto é uma Eternidade para Quem Está Sofrendo (Direção: Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro)
Outro filme geracional com uma proposta um tanto inusitada. O espevitado e hiperativo ator/diretor Wesley Pereira de Castro, de 40 e poucos anos, filmou a si próprio confinado em sua casa durante a pandemia e, em pouco mais de 60 minutos, escancara sua precária rotina diária num sobrado inacabado onde sobrevive com a mãe no interior de Sergipe. E, diante do sufoco financeiro e do tédio do dia a dia na pandemia, e das necessidades materiais e emocionais que dela afloram, Wesley expõe de maneira tragicômica seus medos, angústias, desencantos e faz continuamente um tour pelo seu próprio corpo de forma despudorada. Como em Kickflip, aqui também há uma profusão de imagens fragmentadas e, por trás da aparente superficialidade e narcisismo do personagem, emerge algo mais profundo que torna o espectador seu cúmplice – um ator/pessoa em busca de si e a vontade de continuar existindo, a despeito de tudo.
Este é mais um filme sobre a geração abaixo dos 40, mas ao contrário dos dois filmes acima, o narcisismo fetichista do personagem principal contamina todo o filme. Marcos é um rapaz classe média, que mora sozinho, e sofre de depressão aparentemente causada pela morte do ex-namorado. Ele tem uma melancolia e apatia, que não convence. O problemático é a construção frouxa desse personagem, que faz com que ele pareça um mimadinho sem perspectiva, cheio de autocomiseração e autopiedade. Nem mesmo a cachorrinha que a irmã deixa para ele cuidar, o namorado atual e a rede de apoio composta de psicólogas parecem animá-lo. O que resta é um personagem desinteressante, que não me causou nenhuma empatia. O que salva no filme, além do humor causado por uma atmosfera proposital de estranhamento e non-sense entre os personagens, são as presenças hilárias das veteranas atrizes Gilda Nomacce (como uma psicóloga excêntrica que atende o jovem na cozinha da casa dela e depois desiste do atendimento), Helena Ignez (como a psicóloga substituta, que é pra lá de desvairada e atende com os peitos de fora na varanda da sua casa) e Mariana Ximenes (que faz a exuberante dançarina Babyhumana). Talvez a intenção do jovem diretor paulista, Sérgio Silva, fosse acentuar o desencanto e desilusão de seu personagem com a vida e fazer um retrato irônico dessa geração. Mas, errou a mão.
Deuses da Peste (Direção: Gabriela Luiza/Tiago Mata Machado)
Esta produção mineira é uma contundente alegoria do Brasil recente e da ascensão da extrema direita no país. Aqui, os diretores usam o teatro para ilustrar os desvarios da era Bolsonaro antes e durante a pandemia. Os personagens montam uma peça farsesca, cheia de delírios e cenários kitsch, onde tudo é excessivo e grotesco. A peça se divide em três atos, todos alusivos ao Brasil dos últimos anos, capitaneados por um rei decrépito e galhofento (interpretado pelo excelente ator Paulo Goya). O filme por vezes sofre de ritmo irregular, mas as imagens captam de maneira perspicaz a insanidade que se instalou no Brasil com o avanço da extrema direita e a polarização. A última cena do filme é antológica: a mercurial atriz Helena Ignez aparece em meio a labaredas, como se fosse uma bruxa com uma varinha na mão, recepcionando às portas do inferno as figuras decadentes desse espetáculo de horrores.
Prédio Vazio (Direção: Rodrigo Aragão)
O diretor capixaba Rodrigo Aragão coleciona uma vasta filmografia no chamado gênero fantástico, que engloba filmes com elementos sobrenaturais, sustos, terror, suspense, ficção científica e, quase sempre, sangue, muito sangue. Prédio Vazio não é exceção e, nesse sentido, não acrescenta nada de muito novo ou diferente ao gênero, embora tenha seus momentos, alguns muito engraçados. Muito do valor do filme vem da presença da excelente atriz Gilda Nomacce, que interpreta a sinistra zeladora de um prédio caindo aos pedaços no munícipio costeiro de Guarapari, no Espírito Santo. Apesar de vazio, o edifício é habitado por criaturas do outro mundo. Mas, será mesmo que todos esses “habitantes” vêm do além? É isso que um casal de jovens intrometidos e curiosos irá descobrir, digamos, a duras penas. Feito com pouquíssimos recursos, o filme tem uma direção de arte suntuosa e efeitos especiais, que apesar de precários, nada ficam a dever aos similares do gênero vindos dos Estados Unidos. Este filme parece destoar do universo de filmes “alternativos” exibidos no festival de Tiradentes. Será que sua entrada na grade do festival seria uma provocação dos curadores ou a escolha do filme foi motivada pelo prestígio do diretor Rodrigo Aragão?
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=RmH4cU1BioU
A Primavera (Direção: Daniel Aragão/Sérgio Bivar)
Este filme chegou a São Paulo envolto em polêmica diante do bate-boca que houve em Tiradentes entre a plateia e o diretor Daniel Aragão no debate que seguiu a exibição do filme. Motivo: Aragão foi o diretor de fotografia do filme O Jardim das Aflições (2017), a cinebiografia de Olavo Carvalho, mentor do abominável governo Bolsonaro. O incensado e politizado público de Tiradentes não perdoou a história pregressa do diretor e caiu matando. Controvérsias à parte, A Primavera usa de poesia e fábula para contar a história de um poeta pernambucano que se apaixona por uma prostituta. As imagens vertiginosas do decadente centro do Recife e suas cores e sonoridades realçam o clima um tanto delirante do filme, tudo permeado por poemas, ora declamados, ora escritos, que nem sempre se harmonizam com as imagens. A Primavera tem muitos problemas como filme, mas me senti envolvido pela história e sua narrativa. E, também, o filme tem um toque bem local ao retratar artistas e grupos marginalizados sobrevivendo no Recife, que, como quase todas as capitais brasileiras, transborda em desigualdade e iniquidade.
Os filmes abaixo foram exibidos na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro, mas já estrearam no circuito comercial de São Paulo:
Baby (Direção: Marcelo Caetano)
Baby é um filmaço e fez uma boa campanha em festivais no Brasil e no exterior antes de estrear nos cinemas do circuito comercial em 9 de janeiro. Com uma abordagem mais convencional do que a média dos filmes exibidos em Tiradentes, esta é uma obra muito competente tanto nos seus aspectos estéticos quanto nos temáticos. Conta a história de um egresso da Fundação Casa de 18 anos e sua relação com um michê mais velho (de 43 anos), que acolhe o jovem. Ambos personagens marginalizados vivendo no submundo do centro de São Paulo, deslumbrantemente filmado. Com vários subtemas (a busca por afeto, o abandono familiar, a necessidade de convívio, desigualdade social, diversidade de gênero etc), Baby transpira humanismo pelos poros, sem apelar para clichês LGBT, resvalar para o pieguismo, nem vitimizar ou moralizar personagens considerados proscritos pela sociedade.
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=mfxuOP62w_U
Kasa Branca (Direção: Luciano Vidigal)
Este filme faz parte da recente onda de valorização do cinema negro no Brasil e é muito bem-sucedido ao se esquivar das armadilhas dos estereótipos relacionados à população negra do país. Conta a história do jovem adolescente e simpático Dé, que mora num subúrbio carioca, e quando sua amada avó, Almerinda, desenvolve Alzheimer e fica presa a uma cadeira de rodas, o rapaz passa a viver com a idosa doente para cuidar dela. Acompanhado de seus dois melhores amigos, eles se viram nos trinques para arrumar dinheiro para pagar o aluguel e as contas da casa, comprar remédios para a idosa e entretê-la, levando-a passeios e carregando-a no colo, quando necessário, e até levá-la morro acima para apreciar a vista. Essa prosaica história não teria o apelo, a graça e o charme que tem, se não fosse pelas ótimas interpretações do trio central e da avó (excelente trabalho gestual e facial da atriz Teca Pereira), além do roteiro preciso e da mão firme do diretor Luciano Vidigal, que tem um olhar generoso e humano sobre seus personagens, sem cair na condescendência ou apelação a panfletos identitários. Kasa Branca é uma celebração da amizade, do carinho, do cuidado e do convívio que regem as relações humanas em todos os recônditos do planeta, até nos menos prováveis.
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=jKZshDw6HUY
Parque de Diversões (Direção: Ricardo Alves Jr)
O diretor mineiro Ricardo Alves Jr faz um filme-mosaico para retratar os vários mundos do universo LGBTQIAPN+, talvez numa tentativa de abarcar sua complexidade. São vários indivíduos anônimos em uma variada gama de gêneros, que se encontram num parque central de Belo Horizonte, que à noite vira um local de “pegação”, onde a satisfação do desejo sexual e a realização de fantasias parecem ser a única coisa que move essas pessoas. Todos os tipos emergem de vários pontos da cidade na calada da noite e convergem ali para realizar um ritual libertário, silencioso, repleto de tesão e êxtase. Mas, será que a única coisa que move essas pessoas é mesmo o gozo do sexo? Ou há ali outras formas de gozo? Esse parque de diversões despudorado surge como um lugar emblemático onde pessoas, ao mesmo tempo, buscam refúgio e se regozijam, longe de limitações (auto)impostas.
Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=3CmnnE_7j4U
Para saber mais sobre a Mostra de Cinema de Tiradentes: https://mostratiradentes.com.br
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