ANÁLISE: JEAN-CLAUDE BERNADET - DESAPARECE UMA DAS FIGURAS CENTRAIS DO CINEMA BRASILEIRO

 12.07.2025
Por Luiz Zanin Oricchio*


A notícia era esperada e mesmo assim foi um choque. Jean-Claude Bernardet havia morrido. Acometido de várias doenças, faleceu de um AVC na madrugada de sábado, no Hospital Samaritano, em São Paulo. Tinha 88 anos. Desaparece uma das figuras centrais do cinema brasileiro.

Crítico, historiador, professor, roteirista, diretor, polemista e, mais recentemente, ator, Jean-Claude nasceu em Charleroi, Bélgica, e tinha nacionalidade francesa. Veio adolescente para o Brasil e por aqui ficou. Com sua verve e sua presença, acompanhou, como companheiro de estrada e crítico participante, alguns dos momentos cruciais do cinema nacional - a eclosão do cinema novo, a contestação do cinema marginal, as incertezas da retomada, a consolidação em novas bases, mais estáveis e industriais, mas que ele via com grande ceticismo.

Bernardet foi crítico de cinema em diversos jornais, entre eles o Estadão, nas páginas do Suplemento Literário. Quem tem curiosidade sobre essa fase jornalística deve ler o livro Trajetória Crítica, uma inusitada coletânea dessa fase inicial de sua carreira. Inusitada porque, ao recolher o que já havia escrito, Bernardet se recusa a alterar uma vírgula dos textos, mas acrescenta uma crítica impiedosa sobre aquilo que havia escrito no passado. O mesmo rigor com que avaliava a obra alheia, utilizava para a sua própria.

Dessa também inusual honestidade intelectual, vinha a credibilidade de sua palavra no meio cinematográfico. Mesmo não concordando sempre com ele, não podíamos deixar de levar em conta aquilo que escrevia ou dizia. Não era a palavra de um “mestre” - Bernardet disse e acabou-se a discussão. Pelo contrário, era Bernardet disse e a discussão tinha início.

Nesse sentido, Jean-Claude foi uma presença muito salutar no meio intelectual brasileiro. Estrangeiro abrasileirado, passou a enfrentar uma tradição secular de acomodação e tapinhas nas costas, destacando-se por dizer o que pensava. Curiosamente, o fazia sem ofender ninguém ou criar ressentimentos. Caso único num país em que qualquer crítica é vista como ofensa pessoal, em seus livros, escritos para jornal, debates e participações em mesas redondas, ajudou a movimentar uma cultura sempre imersa na autocomplacência. Se mais não fez, foi porque a estrutura de acomodação no Brasil tem a firmeza de uma rocha secular.

Essa intervenção dava-se em ensaios longos e muito pensados, mas também em tempo real, como deve ser o tempo do crítico de cinema atuante.

Afora os artigos para jornal, deixa três obras incontornáveis, que, por adesão ou oposição, influenciam toda pesquisa cinematográfica a partir delas. São Brasil em Tempo de Cinema, Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro e Cineastas e Imagens do Povo.

No primeiro, examina, a contrapelo, os filmes brasileiros de determinado período de extrema efervescência e procura demonstrar como sua temática remete a questões da classe média - da qual é oriunda a maior parte dos cineastas.

No segundo, contesta um dos dogmas da historiografia nacional, que divide o percurso do cinema brasileiro em ciclos que nascem, se desenvolvem e morrem para dar lugar a novos ciclos. Sua análise, contra-intuitiva, põe em xeque a divisão em ciclos proposta por outro totem da crítica e do ensaísmo cinematográfico, Paulo Emílio Salles Gomes, do qual Bernardet foi discípulo e colega.

No terceiro faz uma análise estrutural e rigorosa do documentário brasileiro, procurando situar a posição do diretor em relação ao seu “objeto”, o povo. Ataca o que chama de “modelo sociológico” e procura situar essas vozes autoritárias que definem a posição do povo em relação àquele que narra. São posições de classe, muitas vezes incontornáveis.

Em seu tempo esses livros provocaram debate e incômodo. Num tempo em que os cineastas se consideravam portadores de um mandato popular em favor dos oprimidos, o crítico procurava mostrar que tratavam, no fundo, de preocupações com sua própria classe, a classe média. Mas o próprio Bernardet, posteriormente, acaba por confessar que seu conceito de “classe média” era na época muito difuso. O crítico critica a si mesmo.

Dito isso, são livros a serem lidos com a mesma acuidade crítica com que foram escritos. Nesse sentido, tornaram-se obras clássicas de reflexão, apesar das (justas) objeções.

Inquieto, Jean-Claude, mesmo em seu tempo de professor universitário e ensaísta, busca novos caminhos, sempre no interior do cinema brasileiro. É roteirista de O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, sobre um escandaloso caso de violência policial em Araguari, Minas Gerais. Em plena ditadura, a alusão à tortura era clara.

Em companhia de Person, Jean-Claude escreveu também o roteiro de Os Ruminantes, tirado da obra de José J. Veiga. O filme acabou não saindo. Há um documentário importante sobre esse filme não-realizado, no qual Jean-Claude é o principal depoente. É dirigido por Tarsila Araújo e Marcelo Mello, e tem percorrido o circuito de festivais.

Jean-Claude teve influência em várias obras de cineastas contemporâneos, como Um Céu de Estrelas, Através da Janela e Hoje - todos de Tata Amaral. Em Filmefobia, de Kiko Goifman, envereda por uma consistente carreira de ator. Foi um ponto de viragem. Atingido por doenças múltiplas (Aids, câncer na próstata, degeneração da mácula), Bernardet enfrenta seus últimos anos no set de filmagem, em companhia de diretores jovens, como Goifman, Cristiano Burlan e, mais ultimamente, Fábio Rogério.

Deixa, além dos seus ensaios clássicos, livros de ficção e auto-ficção, como Aquele Rapaz, WET Mácula e Corpo Crítico. Nestes, fala de sua própria experiência com a doença, e denuncia a indústria de sobrevida da medicina capitalista, que tenta manter vivos a todo custo doentes terminais por razões de lucratividade. Em sua fase terminal de vida, mantinha aceso seu sentido crítico implacável. Era capaz de observar em si mesmo a decadência e dela tirar uma lição de profunda humanidade.

Como cineasta, a obra mais importante de Jean-Claude é São Paulo, Sinfonia e Cacofonia, filme de montagem sobre a metrópole, “na qual é impossível viver e da qual é impossível sair”, como ele dizia. Jean-Claude tinha uma visão panorâmica da Pauliceia. Morou durante muitos anos no 30º andar do emblemático Edifício Copan.

*Este artigo saiu publicado no jornal Estadão impresso. Luiz Fernando Zanin Oricchio é jornalista e crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo. Zanin nos cedeu generosamente seu texto para o site do Grupo Cinema Paradiso. Siga seu blog: https://luizzanin7.wordpress.com/

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